Julia Katharine reivindica protagonismo de pessoas trans no audiovisual brasileiro
“Não querem naturalizar os nossos corpos”. Em entrevista exclusiva, a realizadora defende editais públicos específicos à comunidade trans.
Por Alexandre Cunha
Ao pesquisar pelo nome de Julia Katharine nos sites de busca, logo você vai se deparar com uma definição que acompanha sua carreira nos últimos anos: primeira cineasta trans a conquistar espaço no circuito comercial. Reconhecida nacional e internacionalmente, tendo filmes exibidos – e premiados – em grandes festivais como o Prêmio Guarani e o IndieLisboa, Julia já gravou o seu nome na história do cinema nacional. Mas a realidade é mais densa e complexa do que títulos e condecorações.
Aos 47 anos, a realizadora paulista está no Recife para a produção de uma série da qual é codiretora e conversou exclusivamente com a Cine Ninja, após sessão do seu filme “Tea For Two”, exibido no Cineclube da Casa Zero. A cineasta critica como a televisão e o cinema nacional abordam corpos trans. “As pessoas transgênero são usadas como token”. Confira, abaixo, a conversa na íntegra.
Cine Ninja: Mais uma vez, o cinema brasileiro está em um movimento de retomada, após os quatro anos de ataques promovidos ao setor pelo governo Bolsonaro. Como você enxerga o momento atual da nossa produção, especificamente sobre a participação da comunidade trans?
Julia Katharine: O cinema brasileiro sempre foi precarizado e a gente vê que não existe um incentivo para as pessoas trans nos editais públicos. Usam muito a ideia de “diversidade”, que é uma palavra tão vaga, que cabe tanta gente. Eu vou me sentir contemplada quando, de 5 longas-metragens, 3 forem dirigidos por mulheres e homens trans. Nos festivais internacionais é a mesma coisa. Você não vê uma mulher trans concorrendo à Palma de Ouro. Você não vê, no Oscar, uma diretora trans entre os indicados. Se nos EUA a coisa já é ruim, aqui no Brasil é 30, 40 vezes pior.
Cine Ninja: Seu filme “Tea For Two”, de 2018, venceu diversos prêmios e passou por vários festivais, como o IndieLisboa e a Mostra de Cinema de Tiradentes. Mesmo com tanta repercussão positiva, você disse que a experiência de fazer o filme não foi das mais fáceis.
Julia Katharine: Foi um projeto muito desafiador, muito complexo. Era meu primeiro filme. A ideia inicial era de um protagonista homem, cisgênero, que se apaixonava pela Isabella, mulher trans. Daí que a gente não achava atores homens, por volta dos 50 anos, que topassem ter cenas de amor com mulheres trans. Isso é escandaloso. Os que topavam, queriam que não houvesse cenas muito explícitas. Gente, isso em 2018, não tô falando isso em 1970. Além disso, fiquei muito incomodada com a transfobia velada que existia no meio audiovisual, nossa, temos uma mulher trans dirigindo um filme. Às vezes, eu conversava com cineastas e era visível nos olhos que ele estava pensando: estou te dando atenção porque você faz parte de uma cota e eu preciso pagar de bom-moço. Mas você vê que a pessoa não está interessada no que você tá falando. Eu chegava nos lugares e as pessoas me subestimavam demais como realizadora, porque há uma novidade no fato de um corpo trans estar nessas frentes.
Cine Ninja: Mesmo depois do sucesso e do reconhecimento do seu trabalho, você não sente uma maior abertura no meio audiovisual?
Julia Katharine: Depois do “Tea For Two”, a minha carreira deu uma virada muito boa. Mas eu não furei a minha bolha para uma bolha maior. Porque a gente só fura essa bolha quando você faz um pacto de silêncio com a cisgeneridade. Quando você é a pessoa que não reclama, quando você é a boazinha, quando você aceita tudo. Eles querem que você diga tudo que eles querem ouvir, não que você conteste coisas. Então eu sempre vou ser a outsider, a que está sempre comendo pelas beiradas, porque eu não faço esse jogo.
Cine Ninja: Impossível não pensar na Rede Globo, por exemplo, que traz a questão trans no remake da novela Renascer.
Julia Katharine: O que acontece hoje no Brasil é isso: as pessoas transgênero são usadas como token. Aí se me perguntarem, você tá feliz com as pessoas trans na TV? Respondo: não, não estou feliz. Não venham com esse papo de que é importante ter visibilidade, esse tipo de visibilidade não me contempla. Renascer é um desserviço pra mim. De novo, é trazer de volta uma história sobre machismo. Outra coisa: a transgeneridade só existe, na TV, na juventude. Você não vê uma pessoa trans de 50 anos, 70 anos interpretando uma personagem numa novela, porque não tem espaço. Enxerga-se a transgeneridade como um fetiche, e aí é bonitinho ver a menina linda, personagem da novela, os homens ficam desejando aquela garota trans, pensando consigo mesmo nossa, essa é passável, essa eu comia. Agora se você propõe colocar uma mulher trans, fora do padrão, para uma personagem numa novela que não tenha a exotificação do corpo, a objetificação do corpo, eles não querem, porque eles não querem naturalizar os nossos corpos.
Cine Ninja: Estamos no segundo ano do governo Lula, tivemos a recriação do Ministério da Cultura, a aprovação da lei de Cota de Tela para o audiovisual. E para a comunidade trans, você já consegue enxergar avanços?
Julia Katharine: Cara, se eu falar pra você que eu acho que o governo Lula fez alguma coisa muito boa para as pessoas transgênero, eu vou estar mentindo. Acho que não fez, ainda. Ainda tem tempo dele recalcular a rota e fazer isso. Sinto falta de um projeto que coloque as pessoas trans dentro do mercado de trabalho, com dignidade. Eu acredito que todo emprego é digno, mas quando se fala em empregabilidade para corpos trans, existe uma ideia muito comum de que pessoas trans precisam ser capacitadas para empregos nos quais elas fiquem invisíveis. Então é assim, o Carrefour está criando uma linha de empregabilidade para pessoas trans, aí você vai ver é pra ser estoquista, a faxineira, é sempre um lugar onde você vai estar invisibilizada. Ainda não vi o Lula também colocar uma mulher ou homens trans para um Ministério. Acho difícil.
Cine Ninja: Você defende editais específicos para as pessoas transgênero? E festivais voltados à comunidade?
Julia Katharine: Eu acho, sim, os editais para pessoas trans muito importantes para que a gente possa concorrer com mais igualdade, com mais chances de termos os nossos projetos aprovados. Já em relação aos festivais, acho que tem que ser todo mundo junto. Podemos criar uma categoria, mas não separar. Essa ideia de segregação me incomoda muito. Mas na política pública sobre editais, eu acho muito importante que a gente pare com essa ideia de “diversidade” abrangendo corpos cisgêneros, transgêneros, não-binários e todo mundo junto, porque no final acaba sempre sendo contemplada mais a cisgeneridade do que as pessoas trans. Isso pra mim não é justo.
Cine Ninja: Você está em Recife rodando um novo projeto. Pode adiantar pra gente um pouco sobre?
Julia Katharine: É uma série criada pela Carlota Pereira, eu codirijo com ela e com o Neco Tabosa. Uma série sobre mulheres trans vivendo aqui em Recife, especificamente no bairro da Boa Vista. Eu espero que seja muito bem acolhida, porque tem sido feita com muito carinho e nós temos as artistas daqui que são mulheres muito potentes, consagradas, como a Sharlene Esse e a Aurora Jamelo. É uma produção da Carnaval Filmes e Jacaré Filmes. A gente ainda não tem uma tela (de exibição) para a série, mas isso provavelmente vai acontecer em breve.