Contra toda forma de censura: Bayard Tonelli e a trajetória do Dzi Croquettes
Utilizando o teatro, a dança, a música e o humor, Dzi Croquettes entrou para a história ignorando os padrões de gênero e a censura da ditadura hetero-militar instaurada em 1964.
Por Kaio Phelipe
Conversamos com Bayard Tonelli, ator, bailarino, poeta e um dos integrantes do grupo formado por treze artistas. Bayard relembrou a trajetória do Dzi Croquettes, a genialidade de Lennie Dale e como enfrentaram o decreto do AI-5.
Como surgiu o Dzi Croquettes?
O Dzi Croquettes surgiu nos anos 70. A gente tinha vindo da ditadura de 1964, que teve um arrocho em 1968. A gente estava querendo fazer espetáculos, mas havia pouco trabalho nessa área para os homens. Para as mulheres, tinha o teatro de revista e muito mais coisas. A gente tinha muitos amigos que estavam precisando trabalhar. Por isso que a gente resolveu fazer uma coisa só com homens. A referência que a gente teve foi The Cockettes, que nessa época fazia o maior sucesso em São Francisco e era um grupo de quarenta mulheres, viados, tinha de tudo. Era super vanguarda, a coisa mais moderna que existia nos Estados Unidos depois do movimento hippie.
Quem foi Lennie Dale?
Lennie Dale era uma estrela americana que veio para o Brasil bem jovem e ficou completamente apaixonado por esse país. Aqui, ele influenciou a bossa nova, influenciou a montagem de shows, preparou Elis Regina. Ele foi uma vanguarda. Lennie Dale gravou um dos primeiros discos de bossa nova cantando. Ele trouxe essa batida sincopada do jazz para a bossa nova. Ele era uma figura vibrante, um homem maravilhoso, que tinha uma energia vital, se entusiasmava com as coisas e levantava qualquer bandeira. As pessoas se apaixonaram por Lennie. Lennie era apaixonante quando estava bem. Ele era uma figura, uma estrela e nos fez internacionais. No Dzi Croquettes, ele no fez famosos fora do país. Eu brinco que, se não fosse por ele, nós seríamos regionais ou, no máximo, nacionais. Quem nos fez internacionais foi Lennie Dale.
Como foi ser filho de militar durante o período da ditadura?
Ser filho de militar durante o regime militar me deu uma certa proteção porque eu encarava a polícia, se a polícia me parasse. Em Porto Alegre, não cheguei a ter problemas com as forças armadas. Fui ter problema com a polícia quando cheguei no Rio de Janeiro e comecei a virar artista. Mesmo quando morei em São Paulo, não tive problemas lá. Quando vim para o Rio de Janeiro, comecei a perceber a proteçãozinha, que a gente tinha que ficar ali no morrinho da Gal, que era um trecho da praia de Ipanema. Quando a gente saía de lá, sempre dava problema, vinham atrás, reclamavam. Mas eu já estava por dentro de toda podridão desde 1957, quando eu tinha dez anos e comecei a ler no jornal a corrupção do Exército. Eu já sabia que existia essa corrupção, que havia policiais corruptos, militares corruptos. Mas o meu pai sempre foi considerado um homem de caráter, um exemplo, e eu tenho muito orgulho dele e do respeito que ele sempre teve por mim.
Qual é a sua ligação com o Brizola?
O Brizola é super importante na minha vida. Ele foi prefeito e governador. Quando eu era criança, desfilava para ele. Na adolescência foi a mesma coisa. Tenho uma história engraçada: uma vez, ainda criança, eu estava na frente da praça da casa do prefeito e um carro passou, mexendo comigo, com a minha irmã e com as minhas primas. Eu fiquei puto e fui dar um bronca no segurança que estava na porta da casa do Brizola. Fui lá e fiquei perguntando por qual motivo ele não tinha tomado uma atitude. A gente estava ali e ele não tinha ido defender a gente. Aí fui embora com a minha irmã e com as minhas primas. Quando eu estou quase chegando na casa da minha tia, parou um carro e era o Brizola, perguntando o que estava acontecendo e por qual motivo eu estava reclamando. Eu tive o maior cagaço, né? Do nada, o prefeito parando o carro e perguntando o porquê de eu estar reclamando na porta da casa dele. Mas ele foi super educado, me deu razão e tal. Sempre fui fascinado por ele. Em 1961, acampado no Palácio Piratini, em Porto Alegre (RS), lutamos para manter o Jango e conseguimos. Isso foi uma vitória. Eu me senti um guerrilheiro, um vitorioso, mas em 1964, quando veio o golpe, fiquei derrubado, triste e chorando pelas ruas de Porto Alegre. Nos anos 80, o Brizola voltou, dessa vez no Rio de Janeiro. E eu estava em todos os eventos. Brizola é muito presente na minha vida. É meu grande ídolo. É ele que eu amo. Brizola, só você poderia ter salvado esse país!
Como o Dzi Croquettes conseguiu passar pela censura?
A censura, no início, não existia para a gente porque a gente fazia cabaré para milionário. Quando a gente se apresentava no Mr. Pujol, um lugar que tinha no Rio de Janeiro, não tivemos problema. Depois, quando começamos a fazer as apresentações em uma boate chamada Ton-Ton, começamos a atrair uma garotada e os problemas foram aparecendo. O Ton-Ton era uma boate dos delegados de polícia e, de madrugada, eles iam para lá curtir com as amantes. Quando a gente estava se apresentando lá, virou uma coisa, virou um sucesso total e aí eles começaram a reclamar que saía tudo no jornal, daí eles não ficavam mais à vontade. O proprietário pediu para que a gente parasse o show com o maior sucesso na boate. A gente engabelava a censura. Quando a censura vinha, a gente fazia um espetáculo meio infantojuvenil. Quando a censura não estava presente, a gente soltava o verbo, principalmente quando a gente fazia o espetáculo da meia-noite. Mas aí a esposa de um general ficou chocada quando viu a gente no rio de Janeiro, vestindo tapa-sexo, e fez com que o espetáculo fosse proibido. Quando a gente estava quase conseguindo a liberação, o Lennie foi atropelado. Ele estava saindo da Globo e foi atropelado por um ônibus, junto com outras pessoas. Ele ficou entre a vida e a morte. Nessa época, a gente recebia muitas ameaças, diziam que a gente não podia fazer show, reclamavam do nosso jeito de andar, de se vestir. Reclamavam muito das calças e dos croppeds que eu usava. A minha barriga ficava toda de fora, o peito todo peludo e eu tinha um cabelão e deixava ele solto. Uma vez, um caminhão tentou me jogar contra um poste. Tinha muitas ameaças, mas eu tirava de letra. E, por ser filho de militar, nunca tive medo de encarar a polícia. Quando estreamos no Ton-Ton, lembro que o Raul Cortez perguntou “como vocês não foram proibidos?”. Mas recebemos muitas ameaças. O Claudio Tovar teve que se apresentar para um general e foi muito destratado lá dentro, ele ficou chocado. O Claudio foi escolhido para isso porque ele tinha terno e o visual mais dentro do padrão, o cabelo curto. Mas isso foi até errado. Tinha que ter ido um dos que eram filhos de militares, que eram eu, Gaya e Bene.
O que Liza Minnelli significa para o Dzi Croquettes?
Liza Minnelli foi nossa madrinha. Ela estava aqui no Rio de Janeiro e fizemos um espetáculo para ela, Valentino, Regine Promoteur e Lúcia Moreira Salles, que na época ainda não tinha trocado o nome, ainda era Lúcia Curi. Foi um espetáculo à tarde. Foi um barato e ela ficou super fascinada, falava que a gente era internacional. Regine dizia que a gente tinha que ir para a Europa. O Valentino estava deslumbrado. A Lúcia chegou para mim rindo e falou que “o Valentino disse que você é minha irmã”. Eu adorei. Aquela mulher lindíssima dizendo que eu parecia com ela. Depois, quando a gente estava em Paris, a Liza foi fazer um show e o Lennie estava esperando no aeroporto, com outros garotos. Ela ficou fascinada e o Lennie a convidou para assistir o nosso show. Ela se apresentava em Paris para duas mil pessoas e, quando ela acabou, falou no palco que estava convidando todo mundo para assistir o espetáculo dos amigos dela, Dzi Croquettes. A alta sociedade de Paris inteira foi com ela nos assistir à meia-noite. Foi o maior sucesso, a gente estourou. Ela ficou uma semana no hotel com a gente. Liza é nossa madrinha. Tem fotos nossas na parede da casa dela. Ela esteve no Brasil em 2012 e em 2014 e a gente esteve com ela. As pessoas ficavam fascinadas pela gente. Por onde a gente passava, a gente fascinava, as pessoas ficavam atrás de nós. Era uma loucura, não dá para imaginar. A gente brilhava e Paris nos recebia como rainhas. Alejandro Jodorowsky nos propôs coisas incríveis. Ele queria fazer um filme com a gente e Pierre Clémenti em um puteiro. Nós seríamos as putas. Depois, ele queria fazer um grande evento cósmico, uma feira internacional. Nós seríamos viajantes do espaço e levaríamos o público para uma viagem nos Cosmos. Era um grande projeto, mas as multinacionais não se interessaram e acabou não rolando.
Por que o Dzi Croquettes acabou?
Dzi Croquettes acabou porque tudo na vida cansa. O Dzi Croquettes durou, para mim e para o grupo central, nove anos e três espetáculos. Foram nove anos, três espetáculos, espetáculos montados no Brasil, na França, em teatros pequenos, teatros maiores, excursões pela Europa, retornos ao Brasil. Quando a gente estreou no Teatro Rival, para fazer TV Croquettes, Canal Dzi, foi incrível, a gente foi convidado para viajar o Brasil inteiro, São Paulo queria a gente, mas a gente estava exaurido do convívio, das propostas, cada um queria uma coisa diferente e aí chegou a hora de acabar. Então foi o cansaço de relacionamento, de viver em grupo. Mas depois a gente voltou em 1988 e durou seis meses. Foi quando a televisão nos conheceu, foi um estouro. Depois a gente voltou em 2012 e ficamos até 2016. Dzi Croquettes não morreu. Dzi é um mantra. Um mantra esotérico que traz boas vibrações, que o Wagner Ribeiro resgatou do inconsciente coletivo, pois está na língua chinesa e nas línguas do Novo México. Dzi é um mantra das religiões indígenas.