24 de Março na Argentina: Tristeza não tem fim
Embora a bossa nova seja vista por muitos críticos como música para exportação, o ritmo foi abraçado pelas classes médias argentinas na década de 1960.
Por Julián Reingold
Neste novo aniversário do golpe militar de 1976, há duas novidades: a Argentina volta a sofrer as consequências de mais um programa de choque neoliberal após 100 dias de governo de Javier Milei, enquanto a bossa nova pode finalmente homenagear os músicos Francisco Cerqueira Tenório Júnior, Vinicius o pianista de Moraes, sequestrado e desaparecido em Buenos Aires dias antes do golpe e que inspirou o filme ‘Eles Atiraram no Pianista’, que acaba de ser lançado.
Bossa nova e a classe média argentina
Embora a bossa nova seja vista por muitos críticos como música para exportação, produto das elites brasileiras – onde as paisagens do Rio de Janeiro são apresentadas como vitrine do Brasil para o mundo – esse ritmo foi abraçado pelas classes médias argentinas na década de 1960.
O vínculo cresceu a tal ponto que os shows no ‘café-concerto’ La Fusa de Vinicius, Toquinho Maria Creuza e Maria Bethania – primeiro em Buenos Aires em 1970 e depois em Mar del Plata em 1971 – se tornaram clássicos absolutos. Gravados no Ion Studios, sob a produção de Alfredo Radoszynski, foram os primeiros discos gravados ‘ao vivo’ com público na Argentina, apesar dos riscos financeiros que isso implicava. Esses discos são vendidos na Argentina e em todo o mundo há mais de 50 anos.
Em 1971, Caetano Veloso era praticamente desconhecido do público argentino – então vivia exilado em Londres -, mas Vinicius o apresentou ‘in absentia’ ao público antes de cantar ‘É De Manhã’. Anos depois, Caetano lotaria o Teatro Gran Rex na companhia de João Gilberto para comemorar os 40 anos da Bossa Nova.
Tristeza não tem fim
Mas em 1976 o clima político argentino era muito adverso à alegria tropical do Rio: em março houve um golpe militar que depôs Isabel Martínez de Perón – viúva do três vezes presidente argentino, falecido em 1974 – e estabeleceu um regime de terror que provocou a morte e o desaparecimento de 30.000 pessoas.
Naquele março de 76, poucos dias antes do golpe, Vinicius, Toquinho e sua banda desembarcaram em Buenos Aires para alguns shows no Gran Rex. Ao final da última apresentação, a banda se separou ao sair do teatro, e o pianista Tenorinho retornou ao apart-hotel, mas ao chegar percebeu que estava sem tabaco. O jovem pianista de barba e cabelos compridos desceu para comprar cigarros e nunca mais voltou.
Esta semana não apenas marca mais um aniversário do golpe que estabeleceu a ditadura mais sangrenta da história argentina, mas também marca 48 anos desde que Tenorinho foi sequestrado por grupos de trabalho próximos à Associação Anticomunista Argentina (Triplo A) e posteriormente assassinado na Escola Superior de Mecânica da Armada (ESMA) e desaparecido por um soldado brasileiro no âmbito do esquema de cooperação fascista do Plano Cóndor.
Atiraram no pianista: reivindicando Tenorinho
Diante do desaparecimento de seu pianista, Vinicius acionou seus reflexos diplomáticos e adiou seu retorno ao Rio, ligou para todos os hospitais e necrotérios, tentou apresentar um habeas corpus e até fez contatos dentro da embaixada do Brasil em Buenos Aires, mas não teve sucesso.
No entanto, às vezes a vida se vinga. A história trágica e enigmática de Tenorinho inspirou o filme ‘Eles Atiraram no Pianista’, de Fernando Trueba e Javier Mariscal, que acaba de ser lançado em vários festivais europeus e em salas de cinema dos Estados Unidos.
Esta obra é resultado de quase duas décadas de pesquisas de Trueba, que acompanhou o pianista e sua jornada pela história da bossa nova. Graças à magia da animação, poderemos ver novamente Tenorinho em frente ao piano, enquanto Vinicius canta sorrindo com um uísque na mão.
Onde você está, peronismo?
Em 2019, quando João Gilberto morreu, o escritor argentino Juan Forn publicou uma de suas colunas mais famosas no jornal Página 12 intitulada ‘A Melodia Infinita’. Nessas falas, Forn conta a história de Marc Fisher, um jovem alemão que descobriu a bossa nova em Tóquio e desenvolveu uma obsessão pelo autor de ‘Desafinado’, a ponto de largar tudo para viajar ao Rio com um único objetivo: entregar um violão de cerejeira que estava em sua família há gerações para que o maestro pudesse tocar ‘Hô-bá-lá-lá’ nele. Essa infrutífera aventura policial foi posteriormente resgatada por Georges Gachot em seu documentário ‘Onde esta você, João Gilberto?’.
Hoje a classe média argentina está – mais uma vez – em perigo de extinção devido ao programa de choque econômico aplicado pelo governo de Javier Milei. Em apenas 100 dias, as suas medidas pulverizaram não só os salários de boa parte dos seus eleitores, mas o principal movimento de massas que o viu crescer, o Peronismo, está em crise. E assim como Fischer gastou as solas andando por Copacabana em busca de seu ídolo, hoje a classe média argentina se pergunta com saudade: ‘cadê você, peronismo?’
Como diz o cientista político Julio Burdman, há uma ausência de liderança no peronismo, juntamente com uma grande massa crítica de eleitores e líderes, mas com uma impossibilidade momentânea de que tudo seja ou possa ser coordenado ou liderado por um indivíduo, porque no momento isso indivíduo não existe. Milei veio para quebrar tudo, até os eixos da discussão, ele cria novos tipos de antagonismos e debates, e no espaço pan-peronista não há quem sintetize todos esses eixos. Hoje não há quem consiga unir as correntes, basta esperar que uma nova liderança se resolva, possivelmente através de uma candidatura presidencial.
Milei combina facismo e liberalismo num coquetel perigoso, atacando uma suposta ‘casta’ que pouco tem a ver com o nepotismo da classe política e muito a ver com as classes populares e o consumo cultural de massa – recitais e cinema nacional – num momento onde a cultura foi uma das principais afetadas.
É difícil convencer um brasileiro de que a atual experiência argentina – que está reavivando lampejos de violência política da última ditadura – de que essa experiência pode ser ainda mais cruel que a de Bolsonaro no Brasil, mas na medida em que a batalha continua a ser limitado às redes sociais e não se expande para as ruas, o futuro permanecerá incerto.
E às classes médias argentinas que votaram em Milei pensando que seu destino não depende do bem-estar dos setores populares – e de sua frágil capacidade de consumo, vento favorável da economia nacional -, resta dedicar estes versos de Vinicius com música de Tom Jobim:
A felicidade é como a pluma
Que o vento vai levando pelo ar
Voa tão leve
Mas tem a vida breve
Precisa que haja vento sem parar
Precisa que haja vento sem parar
Precisa que haja vento sem parar
Tristeza não tem fim