Por Fernanda Merizio

O longa-metragem “A Câmara”, dirigido por Cristiane Bernardes e Tiago de Aragão, teve sua première mundial no festival internacional de documentários DOCLisboa’23. O documentário acompanha o cotidiano de mulheres eleitas exercendo suas funções políticas na Câmara dos Deputados durante o governo Bolsonaro.

Eu, Fernanda Merizio, braço da Cine NINJA que acompanhou e também fez parte da produção do DOCLisboa’23, encontrei e conversei com os realizadores no Cinema São Jorge durante o festival para entender um pouco mais sobre o filme.

Cine NINJA: A câmera observa as deputadas com um olhar íntimo e se posiciona onde bem quer e entende. O documentário é profundamente imersivo e sentimos integrar a equipe parlamentar percorrendo os corredores da Câmara dos Deputados com extrema fluidez.

Essa proximidade, de um mundo por vezes tão distante e desconhecido pelo público, gera sentimentos intensos e controversos na sala do cinema. Ora ouvi algumas risadas, ora expressões de indignação, ora percebi que o público compactuou com o sentimento de claustrofobia descrito por Alexandra Dias Fortes – que apresentou a projeção do longa no cinema São Jorge.

Me pergunto de onde saiu essa busca que resultou nesse filme, que me parece tão bem articulado a nível de pesquisa e linguagem? O que vocês esperavam no momento da escrita do argumento e quais foram os resultados da pesquisa? Também fico curiosa sobre o porque de resolverem filmar nesse momento, ou seja, durante o período do governo Bolsonaro – um governo que trouxe tanto conflito e retroagiu nas mais diferentes pautas?

Cristiane Bernardes: Eu sou pesquisadora na área de parlamentos e também servidora da Câmara dos Deputados e no inicio de 2018 eu fui convidada para participar de um grupo de pesquisa com a Emma Crewe, professora e pesquisadora da SOAS, na Universidade de Londres, e também com a Cristina Leston-Bandeira, que é professora e pesquisadora da Universidade de Leeds. Então, a ideia do filme surge quando a gente começa a montar um projeto da pesquisa etnográfica comparativa entre seis países, do qual faz parte o Brasil.

Nós definimos o foco logo de início, que no caso seria a bancada feminina, pois começava a se avizinhar como algo que seria relevante na questão política, mesmo antes das eleições de 2018. E desde o início a gente tinha uma ideia de produzir material audiovisual sobre as pesquisas nos seis diferentes contextos que a gente estava pesquisando, na ideia de ampliar um pouco o público, para que os resultados não ficassem restritos a uma produção de materiais acadêmicos.

Durante o processo da pesquisa eu conheci o Tiago, que também é pesquisador sobre o parlamento na linha de antropologia e cineasta. Apesar de eu ser jornalista, eu não tenho conhecimento técnico em cinema. Então eu me aproximei do Tiago, trocamos academicamente e eu também vi os filmes dele, vi o “Entre Parentes” e achei a proposta interessante. Com o tempo, eu fui percebendo que eu queria mostrar um pouco da Câmara para o público externo e um pouco da atividade das mulheres e como essas mulheres fazem política.

A nossa ideia era ter gravado no meio da legislatura, entre 2020 e 2021, mas houve a pandemia e então não podíamos gravar pois o congresso ficou em trabalhos híbridos e remotos durante 1 ano e meio. Por fim, nós tivemos que gravar em 2022 entre o fim da pandemia e o início do período eleitoral, que foi um período de esvaziamento das atividades internas do parlamento.

Cine NINJA: Percebo pelo filme que houve um período de amadurecimento bem longo, pois é um filme bem arquitetado tanto a nível de imagem quanto com relação à escolha dos personagens, das mulheres que vocês acompanharam.

Cristiane Bernardes: A gente teve um tempo de conversa que foi bacana. Conseguimos entender o que a gente queria com o filme. Tanto o que eu queria como pesquisadora e o que o Tiago tinha como intenção enquanto cineasta e pesquisador. A gente trocou muito nesse período, inclusive com as outras pessoas que trabalham no filme. Entretanto nós acompanhamos o trabalho parlamentar há muito tempo, anteriormente ao filme. Eu por questões profissionais e também por pesquisa acadêmica e Tiago também já vinha fazendo uma pesquisa de doutorado.

Nós conhecíamos e já tínhamos mapeado a bancada feminina. Sabíamos quem já tinha uma posição de destaque, tanto nos seus grupos partidários e ideológicos. Mas também começamos a esbarrar na questão da disponibilidade pois nem todas as atrizes que nós convidamos responderam por uma série de motivos. Portanto, a escolha dessas personagens que estão no filme também fugiu do nosso controle e do controle delas, da disponibilidade delas e às vezes até da vontade delas.

A gente teve que fazer uma malabarismo pra conseguir conciliar as agendas com o tempo de filmagem. Existiam claro algumas personagens que considerávamos essenciais e alguns perfis que considerávamos importantes e tentamos incluir o máximo de deputados em termos numéricos, considerando que a agenda da Câmara é muito complexa. A Celina Leão é uma personagem essencial, porque ela era a coordenadora da bancada feminina naquele momento e a Sâmia Bomfim era a líder da bancada do PSOL, por exemplo. Então elas tinham um papel institucional muito pronunciado naquele momento.

Foto: Cine NINJA/Fernanda Merizio

Cine NINJA: Eu gostaria também saber, de você Tiago, sobre a sua pesquisa e como essa ideia junto com a Cristiane contribui com a sua cinematografia de uma perspectiva autoral.

Tiago de Aragão: Eu estou fazendo uma pesquisa de doutorado sobre deputados bolsonaristas, uma tese que busca entender a performance política desses deputados. Quando a Cris me convidou para esse trabalho foi uma junção de fatores, de um lado um interesse enquanto pesquisador, pois o parlamento é um tema que interessa aos dois como estrutura social, mas porque esse filme é também uma continuidade de uma pesquisa cinematográfica que eu faço. O “Entre Parentes” se passa dentro da Câmara e o “Luta Pela Terra”, em uma codireção com a Camilla Shinoda tem também uma questão de articulação política só que com relação aos povos indígenas. Então existe uma perspectiva de criação cinematográfica sobre os fenômenos políticos em suas diferentes vertentes.

Tivemos uma conversa para fazer um alinhamento entre essas perspectivas como pesquisadores e a perspectiva do cinema. O cinema de “cabeça falante” não é o tipo de cinema que eu faço, que eu gosto e que eu tenho habilidade de fazer. Eu trabalho com cinema observacional e que eu acredito que tem uma proximidade com o cinema etnográfico. Então eu acredito que por diferentes fatores, esse cinema pode ser uma estratégia super interessantes para pesquisa.

Seria, por exemplo, super interessante ter uma deputada falando sobre o trabalho parlamentar, mas a gente fez a opção de acompanhar essa deputada fazendo o trabalho parlamentar. A gente acreditava que essa ação dela teria inclusive mais potência de apresentação para o mundo do que o relato.

É lógico que o relato tem seu interesse e tem sua órbita de elementos que ele consegue trabalhar mas a gente gostaria de mostrar esse universo do parlamento que o cinema observacional ou o cinema etnográfico tem a capacidade de trabalhar. Então o filme é uma tentativa de aproximar essa especificidade da linguagem audiovisual com os interesses que a gente tinha de pesquisa.

A gente já tinha a perspectiva da política do parlamento como um ambiente complexo, de diferentes atores, que não dá para trabalhar de maneira maniqueísta. Mas aí começa uma pesquisa no campo cinematográfico. Como a gente pode filmar isso? Quais recursos vamos utilizar? Quais os espaços, inclusive pensando imageticamente, a gente precisa percorrer? Precisamos percorrer os bastidores, os encontros entre deputadas, as entrevistas? E nisso, a gente tinha uma agenda com muitas imprevisibilidades.

Cine NINJA: A minha impressão foi nesse sentido, de que é um filme com uma arquitetura e delineamentos bem trabalhados no quesito da escolha da linguagem, dispositivos, personagens, espaços…

Tiago de Aragão: Na pesquisa que fizemos, que nos tomou dois meses de trabalho cotidiano dentro da Câmara dos Deputados, pudemos desenvolver uma capacidade de agir em cima dessas imprevisibilidades, dessas coisas que acontecem. E começamos a criar algumas regras. Com esse filme, especificamente, a gente trabalha com estabilizador porque a gente acreditava que, ao seguir uma deputada pelos corredores, não queríamos trazer uma tensão do movimento da câmera, mas uma fluidez dessas pessoas que têm o domínio do espaço percorrem por lá né.

Nas comissões, nós partíamos às vezes para o tripé porque sabíamos que nas comissões cheias só poderíamos filmar de um local específico por conta da limitação do espaço. Então, desse estudo, e junto com toda essa perspectiva de quais deputadas poderíamos e queríamos trabalhar, conseguimos nos preparar para quando chegasse esse tipo de ação, e então conseguimos tomar as melhores decisões.

E eu acho que se trata disso a direção, de tentar tomar as melhores decisões. E era um filme realmente de uma complexidade muito alta, porque as vezes a gente estava filmando uma situação tensa e a agenda com a deputada do dia seguinte tinha caído. Então ao mesmo tempo que a nossa equipe está tendo que lidar uma condição complexa, temos que repensar o dia de amanhã. Então eu acho que isso também faz parte dessa preparação.

Quando a gente junta então o conhecimento do parlamento, do Congresso, de política, com essas noções de como se filmar isso, de quais são as melhores estratégias, aí fica mais fácil seguir. Pois ai se cria um certo dispositivo de como tratar e acompanhar essas personagens, essas atrizes. No Brasil, muitas pesquisas cinematográficas para a realização de documentários são muitas vezes feitas apenas com informações. Essas informações apenas, elas não te preparam para a filmagem.

Cristiane Bernardes: A forma com a qual a política é comunicada é basicamente pelo depoimento. É uma forma discursiva. Então a escolha também passa pela premissa de o filme não ser apenas mais uma oportunidade, ou um palanque para elas se expressarem.

Existe um valor em dar esse espaço de fala e de visibilidade para elas, pois se trata de mulheres, que são uma minoria política. Mas o que queríamos mostrar é que efetivamente as mulheres entram no jogo político com uma série de estratégias, que são similares ou não aos colegas homens e que são marcadas pela questão de gênero.

Então, a gente não queria ser mais um produto no meio do discurso político tradicional, que consiste na elaboração das opiniões, das experiências. A gente queria mostrar a ação e a atividade, até por conta de uma ideia, que nos é comum também como pesquisadores, de que a política passa por um processo de desvalorização entre os cidadãos.

Uma outra coisa que faz parte da nossa pesquisa é questão das relações entre os atores. Como esses atores se relacionam entre si? Como esses atores se relacionam com os representados? Como é que eles se conectam com os eleitores? Como eles se relacionam com os movimentos sociais? Então isso a gente não consegue só com depoimento, a gente precisava mostrar essas relações em operação. Mostrar as deputadas em atividade, o quão frenética é a atividade delas e o quanto elas correm pra lá e pra cá entre as agendas absurdamente lotada de encontros, de oportunidades, de trocas. Queríamos também mostrar como essas relações entre essas atrizes se colocam no tabuleiro.

Fomos muito felizes nessa escolha. Na codireção com o Tiago, que agregou esse olhar observacional, conseguimos o resultado desse filme. É um filme que mostra um pouco do cotidiano das deputadas e de como elas agem nesse lugar de poder que ela efetivamente elas ocupam enquanto deputadas federais. Por que no meu caso, para quem é fascinada e acompanha os parlamentos, pode parecer um pouco óbvio, mas eu acho que a cobertura que a gente tem do parlamento torna isso muito distante da realidade das pessoas.

A gente tinha ideia de iluminar um pouco isso e de abrir uma fresta para além, é claro, desses momentos importantes de cobertura como por exemplo o impeachment, a constituinte, as jornadas de junho, como a invasão. Nestes momentos conflituosos muito agudos, todas as câmeras se voltam para aquele espaço. No cotidiano, o que se vê são os repórteres narrando o que eles acham e a mesa dentro do plenário, a mesa do presidente. Mas você não vê o que está acontecendo e todo o movimento e como elas correm de uma pauta pra outra. Pois são poucas as deputadas eleitas, muito poucas. Então, como trabalhadora do parlamento, eu acho que existe um profundo desconhecimento.

Cine NINJA: A fotografia de uma intimidade muito grande. A Carol, pelo o que eu pude perceber, se colocava onde ela bem entendia pra pegar o que ela estava almejando.

Tiago de Aragão: No trabalho da fotografia, a Carol ela ela tem assim ótimo senso de enquadramento e de posicionamento. A direção também está sempre pautando. Quando a direção assume a câmera, corre-se o risco de se perder no momento do encanto, do que está sendo visto. E nesse filme, é importante jogar com o que está acontecendo. Começa também um processo momentâneo de “montagem” do filme dentro dessas escolhas. E a direção pensa de forma concreta sobre as escolhas e o que isso traz para a linguagem visual.

Foto: Cine NINJA/Fernanda Merizio

Cine NINJA: Existem vários ápices nesse ambiente, que é altamente performático. Para além da sequência do culto, um outro momento marcante que envolve esta questão é quando um deputado se coloca ao lado da deputada Greyce e faz quase uma propaganda política olhando diretamente para a câmera. Gostaria de saber como vocês enxergam essa questão e se ela modificou um pouco da experiência cotidiana de pesquisa de vocês para o momento em que a câmera entra em ação.

Cristiane Bernardes: A performance, no caso dos políticos, tem essa importância porque ela é uma forma de construir a identidade. O problema é que a identidade dos políticos não depende apenas deles, mas da referência do grupo. Eles precisam construir uma identidade coletiva pois estamos falando de representação para os eleitores e inclusive para os oponentes desse coletivo.

Então, quando falamos de identidade política, não se trata de uma identidade individual, por mais personalista que a política pareça às vezes aos nossos olhos. Então eu acho que a performance delas é uma marca essencial da política porque ela se destina a um grupo maior. Elas precisam conseguir transcender o próprio espaço delas para convencer e engajar os outros.

Então existia também essa questão de mergulhar em uma, duas ou três personagens. Quando a gente conversou, pareceria… além de limitado, por não trazer a diversidade total que a gente queria para o filme e por não fazer justiça ao que é o jogo. Porque é um jogo coletivo, complexo. Inclusive é um jogo constantemente em movimento. Elas não sabem exatamente que pares vão estar na reunião. Elas podem até imaginar os deputados que integram a comissão, mas isso não é totalmente seguro. Tem comissões que ampliam essa participação e existem pautas que chamam outros parlamentares.

Os acordos as vezes são contingenciais e muitas vezes o consenso é contextual e dinâmico. Por vezes, na próxima reunião tudo vai ter que ser reconstruído, com novas negociações. Então ocorre esse movimento contínuo de estruturação dessas identidades em um conflito, em um acordo, em uma cooperação ou em uma negociação. Essa é a beleza do jogo político.

Esses atores e essas atrizes são hábeis em mudar as estratégias de performance se adequando a esses diferentes contextos. Uma expressão que a Emma Crewe utiliza é que eles são “shapeshifters”. Ou seja, eles mudam a performance pois são obrigados a se adaptar. É claro que todos nós fazemos isso. Nós temos várias personas e aplicamos cada uma delas em lugares distintos, mas os políticos fazem isso numa velocidade e numa intensidade que é muito maior do que a de um cidadão comum, pois eles são especialistas em performance. Isso é uma exigência da atividade que eles realizam porque eles estão tempo inteiro em diálogo com essa identidade coletiva que eles estão tentando construir. A performance é crucial, é essencial.

Tiago de Aragão: As performances em si, elas contam com a ideia de terem audiências, de terem públicos. Isso no plural. E os parlamentares necessariamente lidam com diferentes públicos e precisam abrir diferentes estratégias de comunicação. Por mais que não seja uma estratégia friamente calculada, eles estão lidando com essa relação com diferentes públicos. Então acaba que esses atores e atrizes têm muita habilidade nessa transformação de acordo com o que está sendo jogado e pautado.

Cristiane Bernardes: Um desafio do filme é mostrar que, ao contrário da acusação que se faz sempre, de que isso tudo é performance e de que é apenas discurso, ou seja, não há ação, a performance é, na verdade, constitutiva. A política se faz por meio dessa performance discursiva que embute uma atividade. Política é um ato de dizer, de nomear, de legislar, de criar conceitos. Essa é a beleza da política e você acusar a política de ser demasiadamente performática ou discursiva é quase um contrassenso.

Tiago de Aragão: Por mais que a gente elabore sobre a dinâmica do parlamento e sobre esse universo social, a gente não vai montar o filme friamente pensando nessas questões. De certa maneira acreditamos que a união do material captado com a nossa visão de mundo, tanto na hora da captação, quanto na hora da seleção das imagens e das situações e também na hora da montagem, essas questões vão naturalmente aparecer no processo final.

A gente vai construindo o filme e pensando nos momentos importantes mas é um processo que respeita muito o material bruto captado. Eu acredito que isso é essencial para se fazer um bom filme. Esses anos de pesquisa e essas reflexões estão tão dentro da gente e isso aparece no filme. E acredito que, se fizéssemos ao contrário, não conseguiríamos realizar o filme. Então é uma crença nesse tipo de cinema e de que essas situações vão acontecer e que vamos conseguir tomar as melhores decisões no roteiro, na filmagem e na montagem.

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