Por Fernanda Merizio

O projeto de longa-metragem O Oráculo do Templo Escarlate, de direção de Ralph Nunes e Pedro Maia de Brito, foi contemplado com o prêmio Selina de melhor projeto em fase de escrita ou desenvolvimento do projeto Arché no Festival Internacional de documentários DOCLisboa’23. O projeto deriva do curta-metragem intitulado Tudo que vi era o Sol, dirigido também por ambos em conjunto com Leonardo Amaral, que foi apresentado na Competição Internacional do festival.

Fernanda Merizio, o braço da Cine NINJA que acompanhou e também fez parte da produção do DOCLisboa’23, se encontrou e conversou com os realizadores durante o festival para entender um pouco mais sobre o curta e sobre o projeto do longa.

Cine NINJA: Eu gostaria que vocês falassem um pouco sobre o curta Tudo que vi era o Sol. Onde ele se passa? Que descrevessem os personagens e falassem um pouco sobre a pesquisa de vocês.

Ralph Antunes: Tudo o que vi era o Sol se passa na minha cidade natal Itaúna, no interior de Minas Gerais, no bar da minha avó, onde eu nasci e cresci. É um botequinho bem pequenininho que ela tem já há 50 anos e onde circulam trabalhadores braçais e o proletariado daquele bairro. E ali tem uma cadeia econômica que gira em torno da mineração e da estação de minério de ferro. Esse foi o mote que eu propus pros meninos na época. E aí a gente foi lá fez o curta, gostamos muito do resultado da pesquisa que rendeu bons frutos.

Pedro Maia de Brito: Esse filme aí é um filme sobre o bar da vó dele e sobre a vó dele nesse lugar. Justamente por conta das peculiaridades que guarda uma senhora de quase 90 anos de idade. Enfim, uma questão também de um encontro que isso traria dele com a família e com a própria cidade.

Mas a partir do momento que a gente chega aí para tentar entender esse filme já em campo, a gente sente uma potência tão grande com o contato com as pessoas que frequentam o bar. A relação que a gente estabelece é de uma cumplicidade e de uma troca. A gente tá no bar também bebendo enquanto se filma. E a gente, na verdade, descobre outras potências. Ou seja, até de um sentimento um pouco místico e sobrenatural que guarda o espaço. E o filme, ele tem um caráter um tanto mediúnico de uma medida que a gente tá ali quase que vendo os fantasmas que existem no espaço através do filme e criando histórias sobre esses fantasmas como se estivessem ocupando os corpos das pessoas. Então, de alguma medida, o filme está entre duas dimensões.

Cine NINJA: E então o projeto O Oráculo do Templo Escarlate foi uma continuidade dessa vivência?

Pedro Maia de Brito: Enquanto a gente tá nesse processo de filmagem do curta, através do tio dele, a gente chega em um sujeito que se ouvia falar mas que a gente não conhecia né, o José Damasceno. A gente filma com ele para o curta mas isso não entra pro material e isso se torna uma pesquisa que a gente guardou e há alguns anos a gente tem a vontade de retomar. E aí voltou esse ano a encontrar com ele e a conversar e a gente foi entendendo que ele tem essa relação muito concreta com os sonhos. E a Kátia, que é um personagem já do curta, é uma pessoa por sua vez mais reservada mas que tem uma para atividade muito grande através dos objetos.

Ralph Antunes: A vida nesse espaço é muito curiosa, muito interessante. Existe uma espécie de suspensão temporal nesse espaço, me parece. A gente circula por ali e coisas acontecem. Coisas muito muito específicas daquele espaço. Então a gente tá tentando de alguma maneira dar vazão para isso. O Zé Damasceno – o oráculo – é um cara que tem uma história muito peculiar assim né. Ele tem uma capacidade de adivinhação de sonhos e ele ajuda as pessoas lá do bairro a ganharem no jogo do bicho. Então a gente quer trazer essa dimensão dessa cultura popular que está muito entranhada nesse bairro especificamente. Porque o bar da minha avó também é um lugar do jogo do bicho né? É uma casa de aposta e sempre foi talvez o núcleo mais central do jogo do bicho em Itaúna. Sendo que a cidade toda vive muito ao redor do jogo. Isso sempre me chamou muita atenção porque é parte do imaginário popular daquelas pessoas que por eles circulam né. 

E o Zé é essa pessoa que centraliza isso de uma maneira muito especial porque ele realmente tem uma capacidade de lidar com a interpretação de sonhos e com essa coisa meio esotérica misturada com o jogo do bicho. E aí a gente tá tentando costurar com a Kátia, que é uma catadora de recicláveis. É uma pessoa que circula pela cidade inteira de todo mundo conhece ela também. Ela é uma andarilha e ao mesmo tempo uma colecionadora de coisas “inúteis”. A casa dela também é muito especial, muito atrativa visualmente para gente. Você chega lá e tem uma pilha de TVs e uma pilha de rádio tocando, cada um numa estação diferente. Então ela também é uma personagem que está numa temporalidade outra. A gente começa a conversar com ela, e ela dá um clique. E assim ela volta para um passado muito distante ou para um futuro muito distante também. Ela não faz distinção do que é ontem, hoje ou amanhã. Ela tem uma capacidade e relata visões também muito interessantes. Então existe esse universo onírico, nesse bairro especificamente, que queremos levar para o cinema.

Então tem essa motivação que eu trouxe para Pedro né e ele entendeu muito bem tem me ajudado. Ele é um parceiro criativo. Além de escrever dirigir comigo, ele também faz a fotografia. Então ficamos essa vontade de abordar esses outros personagens que a gente já tinha de alguma maneira conhecido mas que não ficaram tão presentes no curta Tudo que vi era o Sol. Então o O Oráculo do Templo Escarlate é quase que uma derivação, mas agora como uma outra proposta estética e um aprofundamento maior nesses outros dois personagens.

Pedro Maia de Brito: A gente chama a casa da Kátia de museu dos objetos “aparentemente inúteis”. Então é justamente isso. Ela dá um outro significado a esses objetos que vem muito da sua subjetividade. Ela utiliza esses objetos “aparentemente inúteis”. Inúteis para os outros né, e não para ela. Então como ela trabalha com reciclados, ela entende que aqueles objetos não estão ali para serem reciclados mas estão ali para ser utilizados. Ela faz uma espécie de triagem disso.

Ralph Antunes: E essa questão tá dentro da cadeia econômica da cidade de uma maneira muito forte. Existe essa cadeia produtiva de “catar e vender”. Tem uma ruas lotada de “ferro velho”. Mas a Kátia está em menor escala. 

O meu pai também passou em algum momento a entrar um pouco nessa cadeia produtiva. No Tudo que vi era o Sol, o meu pai é o senhor está no balcão do bar. Ele também passou a comprar e revender, tanto latinha como fio de cobre. Existe uma clandestinidade, pois certamente existem pessoas que roubam fiação. Então existe também uma contravenção, não apenas do jogo do bicho, mas nessa própria cadeia produtiva da reciclagem e do “ferro velho”, que também nos interessa tratar.

Pedro Maia de Brito e Ralph Antunes. Foto: Aline Macedo

Cine NINJA: E como foram as discussões em torno do O Oráculo do Templo Escarlate no projeto Arché do DOCLisboa?

Ralph Antunes: Foram oficinas nas quais a gente tentou entender como articular esse essa base que é tão concreta, que é documental, com esse universo onírico. Como fazer esses “clicks”, essas inflexões e levar essas pessoas, que podem ser observadas pela sociedade com uma certa banalidade, como pessoas do cotidiano daquele bairro, mas que ao mesmo tempo estão numa outra dimensão temporal.

Estamos escrevendo cenas para entender como potencializar essa nossa abordagem documental para que possamos também experimentar em alguma medida…

Cine NINJA: Vendo Tudo que vi era o Sol, eu entendi que vocês estavam buscando uma linguagem pra dar conta de todo um universo complexo que envolve essas pessoas numa tentativa de lidar com uma realidade concreta e material e com o sonho. Ou seja, elas fazem parte dessa cadeia econômica de forma concreta mas também são atores de cultura popular desse território, e existe todo um mundo subjetivo de cada sujeito… Eu achei interessante que eles também atuam durante o curta e me pergunto como foi dirigir essas pessoas. O que é deles e surge no momento da filmagem? O que foi escrito? Como vocês pretendem lidar com isso nesse novo projeto?

Pedro Maia de Brito: Na verdade o ponto é que o curta se situa na justa intercessão entre o documental, o experimental e o ficcional. Existem três círculos que se entre-cruzam. E eu não acho que eles atuem. Eu acredito que há intervenções nossas, mas são intervenções dentro de um registro documental. Porque não tem ensaio, não tem roteiro. A gente no máximo faz provocações, mas não uma direção no sentido de atuação, do drama. Não tem drama…

Cine NINJA: Digo em uma leitura que, frente a câmera, mesmo no universo documental existe uma performance…

Pedro Maia de Brito: Mas eu acredito que isso não é da ordem do drama. A intervenção é sobre onde está a câmera e como o filme foi re-trabalhado sonoramente. Então o que soa dramático é mais sobre essa intervenção do que quando estamos em campo, enquanto se filme.

Ralph Antunes: Respondendo de forma mais objetivamente a sua pergunta. Eles tem uma dimensão performativa. Mas a gente tenta encontrar esse limite de construir uma intimidade suficiente pra se encontrar em um espaço e filmar. Mas é um processo que ele é muito orgânico mesmo, documental. 

E aí agora a estamos indo um pouco mais além dessa proposição. Existe agora no longa o exercício que a gente estava fazendo aqui na residência que é de traçar mesmo o que é o substrato concreto, ou seja, de entender quem são os personagens, o que eles fazem, como é que eles vivem e o que é de interesse nosso de romper, furar esse substrato documental. Mas a gente acabou de chegar na conclusão também que é imperativo para a gente de não abrir mão desse processo documental porque é a partir dele que a coisa se transforma, não o contrário. Não queremos chegar com a proposta de realismo fantástico, com a coisa pronta. Queremos que a nossa presença chegue em um ponto que a gente vai ligar a câmera e a coisa vai acontecer. Por isso que, quando a gente foi defender o projeto, a gente falou que realmente precisamos de tempo e que não adianta a gente acelerar. E aí esses clicks eles vão aparecendo na pós-produção. 

Pedro Maia de Brito: Em suma, o que é aparentemente ficcional, ou mágico ou dramatúrgico é uma linguagem que ela não está surgindo em campo, mas justamente no antes e depois. Em processo é essencialmente documental. E não existe um roteiro, não existe uma intenção passada. O que acontece é documentado. E aí a intervenção é uma relação entre fotografia, montagem e som. São estes 3 elementos.

Pedro Maia de Brito e Ralph Antunes. Foto: Aline Macedo

Cine NINJA: Durante a fala de vocês eu percebi um pouco nos personagens uma questão que eu pesquiso, particularmente através do cinema, que é um mundo psíquico não normativo. Eu penso que vocês, de certa forma, parecem estar tentando dar conta desse “algo”, que talvez até pessoalmente vocês não compreendam. Ou até falando sobretudo da sua vivência, Ralph. Me parece que você, vivendo nesse mundo, e essas pessoas estarem habitando você, de uma certa forma…, me parece que existe um olhar antropológico, no sentido de que, mesmo você tendo vivido envolto dessas pessoas, existe uma distância com relação a esse universo.

Pedro Maia de Brito: Eu não acredito que exista um olhar antropológico da gente no meio disso. Nunca houve nenhum interesse e nenhum olhar antropológico. Acho que tem existe de fato uma mediação, que ela é cinematográfica, mas não científica. E que a relação da gente é muito mais de cumplicidade. E estamos eternamente juntos. Não existe nenhum grau de hierarquização. A gente vive o tempo deles, o tempo do lugar. A gente não impõe. No máximo a gente propõe algo e se for possível acontece. E é por isso que a gente passa muito tempo. A gente tem uma vontade de cena e a gente propõe, mas não existe uma proposta de pesquisa científica ou uma partida muito conceitual das coisas.

Ralph Antunes: Existe uma atração em alguma instância por aquele universo, por aqueles personagens. Talvez de antemão não tenha me vindo à cabeça uma abordagem por esse lado da não normatividade psíquica. Então porque já é algo muito entranhado mesmo, mas agora com você trazendo, essa provocação é super interessante. 

Cine NINJA: Não vejo como um processo de exotização. Muito pelo contrário, percebo que vocês têm um outro olhar. 

Ralph Antunes: Sim, inclusive rechaçamos essa exotização e por isso nosso processo é muito longo. E já compreendemos e já nos foi colocado também nos festivais que são corpos não usuais.

Pedro Maia de Brito: Eu acho que se trata de subversão. E eu não gosto da noção de corpos, mas da noção de gente. Um corpo pra mim está estendido no chão, ali é gente! Na academia e na arte eu sou taxativamente frontal contra essa noção de corpos, que eu acho muito violenta.

Ralph Antunes: Inclusive a gente quer muito que eles assinem com a gente o roteiro, o Zé e a Kátia. Pois existem muito de proposições deles. 

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