Por Igor Travassos

O céu sem uma cor definida, mas com tons que perpassam o laranja, o rosáceo e até mesmo tons violetas. O ar pesado, difícil de respirar. A temperatura, apesar de ser fim de tarde, não cai. O calor faz com que, ao horizonte, a gente veja tudo meio disforme, como aquelas imagens típicas de um deserto escaldante. Silhuetas de crianças e adultos contra a luz, de forma que só dá pra perceber o contorno. O cenário é a margem de um rio, porém seco. Muita areia, mas muito lixo que estava ao fundo deste rio e foi revelado com a secura. Casas e barcos antes flutuantes, agora imóveis, muitos com avarias por se estabelecer num terreno irregular. O cheiro dá embrulho no estômago. Essa cena poderia ser de qualquer filme de ficção científica, sobre o extermínio da humanidade, sobre um lugar inóspito à beira do colapso. Infelizmente, essa situação é a descrição do porto de Tefé em outubro de 2023, agora.

No deslocamento, de Manaus para Tefé, na ação emergencial do Asas da Emergência do Greenpeace Brasil, outro cenário que poderia figurar o roteiro de um filme do gênero: muita fumaça, a maior floresta tropical do mundo com vários focos de incêndio, e os rios secos. Áreas antes navegáveis completamente inacessíveis por causa da confluência do El Niño com o aquecimento das águas do Atlântico Norte, resultando numa estiagem prolongada, uma seca categorizada como evento climático extremo.

Durante o curso de cinema, fazemos algumas aproximações não só com uma área técnica como roteiro, fotografia, direção, edição e arte, por exemplo, mas também com as formas da linguagem do cinema e do audiovisual. Diante das inúmeras discussões sobre star system, kitsch e camp, o cinema contemporâneo brasileiro, alguns se aproximam de um cinema localizado no campo dos gêneros cinematográficos, em especial os thrillers, a ficção científica, o realismo fantástico e o terror/horror. Eu passei distante deste último. Tem algo que não me desperta medo, mas me assusta. Talvez seja exatamente este elemento que leve boa parte dos espectadores fiéis a esse gênero às salas de cinema ou que represente os milhões de plays nas plataformas de streaming, ou o que movimente aquele cineclube especializado.

A questão é que o audiovisual tem estado cada vez mais transversal a partir da contemporaneidade e da complexidade das relações humanas. Não deixamos de fazer filmes e produtos audiovisuais com monstros, fantasmas ou qualquer elemento sobrenatural, mas passamos a incorporar a violência urbana e tornar o apocalipse cada vez mais próximo da nossa realidade. Mas quanto ao fim dos tempos, é possível abrir uma gama de reflexões no campo da filosofia se estamos nos aproximando daquilo que projetávamos na ficção ou se estamos aproximando a ficção daquilo que nós já vivenciamos.

Uma coisa é certa: a crise climática deixou de ser uma projeção ou um cenário futurista. O colapso é iminente. No Brasil, estamos lidando com uma série de eventos climáticos extremos e temos batido constantemente novos recordes em índices que nos dizem que a emergência climática é hoje, e agora. Apenas em 2023, é possível listar as altas temperaturas que bateram recordes, as fortes chuvas no sul do país que devastaram cidades inteiras após um longo período de estiagem, uma seca histórica na região amazônica, deixando lugares totalmente isolados.

A narrativa consolidada no imaginário brasileiro de que estávamos em um país maravilhoso, que, diferente de muitos outros, dificilmente vivenciaria terremotos, furacões ou tsunamis, está se esfacelando a cada dia através da realidade. Esses eventos realmente não nos impactarão tão cedo, mas o Brasil além de viver continuamente uma crise social e humanitária, que apenas ratifica o histórico de desigualdades deste território, vivencia outros tipos de eventos extremos, como a seca, as chuvas, as altas e baixas temperaturas. Eventos de ordem hidrológica, climatológica, geológica, etc, e que impactam milhões de pessoas, em todas as regiões do país.

Cenas como a que vimos com esses eventos extremos permeiam séries e filmes como a franquia Mad Max, criada por James McCausland e George Miller, a animação Uma história de Amor e Fúria, de Luiz Bolognesi, e os icônicos 2012 e O Dia Depois de Amanhã, ambos de Roland Emmerich, e mais recentemente Extrapolations, criada por Scott Z. Burns. Mas repito: a crise climática não é mais um cenário ficcional. Em Muçum, no Rio Grande do Sul, onde registrou o maior número de mortes devido às fortes chuvas em setembro deste ano, cerca de 80% da cidade ficou debaixo d’água. Depois que a água baixou, um registro de caos, desesperança e completa destruição. Também em setembro, na região Norte, e que se estende até agora, estamos vivendo uma seca na região norte do país, que deixou comunidades totalmente isoladas, áreas dos rios Negro, Solimões, Madeira e Amazonas. Rios com grande volume natural de água e que subsidiam relações sociais, comerciais, econômicas e culturais amazônicas, e que agora dão cenário para bancos de areia quilométricos. Ainda em setembro, os termômetros bateram os 43,5ºC em São Romão (MG), mas também tivemos alerta de emergência em nove estados por causa das altas temperaturas. Em Manaus, o pior nível de toxicidade atmosférica do país e o segundo no mundo, em decorrência das queimadas na Floresta. Antes disso, não posso deixar de citar tragédias como a do sul da Bahia, a de Petrópolis, a de Recife, de Roraima e de São Sebastião. Tragédias resultantes de eventos climáticos extremos, mas mais ainda, pela falta de políticas públicas de prevenção e adaptação às mudanças climáticas

Assim como na ficção, a realidade mostra bem como os impactos da crise climática afetam as pessoas de forma desigual. As pessoas já vulnerabilizadas são as que perdem tudo, as que se amontoam nos hospitais com problemas respiratórios, as que morrem de frio ou de calor. E quando analisamos a fundo o perfil dessas pessoas, as mais impactadas, estamos diante de pessoas majoritariamente negras ou indígenas, populações tradicionais, mulheres, crianças e idosos, além de pessoas com deficiência. Cada um desses grupos é atingido de uma forma e por motivos específicos que são fruto desse histórico de negação de direitos.

Existem artifícios cinematográficos que ajudam a despertar alguns sentidos no espectador. A trilha e os efeitos sonoros, o jogo de câmera, recursos de edição e montagem. Como falei lá no início, de algum modo, eu sempre passei um pouco longe do terror/horror por usar estas ferramentas para gerar expectativa e medo. Essa expectativa que desenvolve uma ansiedade momentânea e que é parcialmente encerrada no ápice, com o susto. No caso da realidade, dos eventos extremos, essa ansiedade não se encerra, ela está ali constantemente. Em uma pesquisa inédita do Greenpeace com o Ipec, um dado obtido foi o de que 63% dos brasileiros se sentem inseguros ou muito inseguros em lidar com eventos climáticos extremos, como chuvas fortes, inundações, altas ou baixas temperaturas e seca. Essa sensação de insegurança é relatada por uma parte considerável da população que mora em áreas de risco. E são 4 milhões de pessoas, segundo o Serviço Geológico do Brasil.

No final do filme ou da série fechamos o arco narrativo solucionando o problema, e, normalmente, sobrevivemos. A obra audiovisual nos deixa com certa esperança de que tudo vai ficar bem. E a realidade? Bom, não é de hoje que as soluções são apresentadas. Desmatamento Zero, Transformação Ecológica Justa e Urgente, que significa frear a exploração de novas fontes de petróleo e outros combustíveis fósseis. É preciso mudar a forma como nos relacionamos com o meio ambiente de forma urgente. As pessoas mais impactadas pela crise climática são as que menos colaboraram para este cenário vivido hoje. O que precisamos é que o poder público tome as decisões necessárias e eficazes para que tenhamos novas edições da mesma franquia e muitas temporadas deste seriado que é a vida na Terra. E que seja um lugar em que a gente, sociedade civil e grupos minoritários, seja roteirista desta história. E que não terminemos com a cartela escrito “FIM”.