“Ser um jornalista preto na Globo me permite oferecer versões e futuros para os que estão chegando”, diz Marcos Luca Valentim
Em entrevista ele fala sobre como se tornar um pai presente pode mudar a vida de uma criança preta e interromper uma corrente histórica marcada pela luta das mães solo
Para muitos meninos pretos que moram em comunidades, ser jogador de futebol é um sonho que eles compartilham entre si, seja pela vontade de vencer na vida como um atleta profissional, seja pelos conselhos dos pais que ainda acreditam que este é único caminho viável para o sucesso, até porque parece que as outras profissões passam longe de uma possibilidade concreta. Para Marcos Luca Valentim, jornalista e editor de esportes do grupo Globo, é necessário fazer um movimento contrário a este tipo de estereótipo, que coloca os talentos pretos em um único nicho.
Valentim entrou na Globo como editor de texto em 2016. Atualmente, além de editor, exerce as funções de comentarista do programa Redação SporTV e apresentador do boletim GE em 1 Minuto. Em 2020, criou o Ubuntu Esporte Clube, primeiro projeto audiovisual da Globo feito apenas por jornalistas negros. Em 2021, ganhou o prêmio Mundo Negro na categoria Jornalismo. Conquistou duas vezes, em 2022 e em 2023, o Prêmio Ubuntu de Cultura Negra na categoria Comunicação. Antes de chegar à Globo, passou pelas redações do SBT, do Jornal do Brasil, da RedeTV! e da revista Tatame.
Na entrevista de hoje, além de todas essas pautas fundamentais, ele também fala sobre paternidade e como se tornar um pai presente pode mudar a vida de uma criança preta e interromper uma corrente histórica marcada pela luta das mães solo.
Leiam com muita atenção. Marcos Luca Valentim, além de um brilhante jornalista, é um poeta do cotidiano e tem muito a nos ensinar.
André Menezes – Como é ser uma liderança do grupo-étnico racial da maior emissora do Brasil, que é a TV Globo?
M.L Valentim – É desafiador, óbvio. Mas é muito estratégico. Eu sou um dos líderes. É sempre importante frisar e conversarmos a respeito de lideranças, porque costumamos canalizar numa pessoa única, e se pensarmos na história, no Brasil, no mundo, pessoas negras que se posicionaram, se colocaram na frente do debate racial, todas, sistematicamente, morreram ou tentaram matar. Foram presas ou tentaram prender. Silenciadas ou tentaram silenciar. Uma pessoa é um alvo fácil. Quando caminhamos em bando, é difícil fazer isso com duas mil pessoas. A Renata Novaes, uma amiga minha, que também trabalha na Globo – geograficamente explicando: onde eu trabalho, no Rio, tem três locais dentro da emissora: jornalismo, que é no Jardim Botânico, e o entretenimento, que fica nos estúdios, lá em Curicica. E onde eu fico, no esporte, tem Esporte da Globo, GNT, Canal Brasil, OFF, Multishow, todos os canais da casa. A Renata criou um grupo no WhatsApp e me chamou pra falar assim: “Marcos, vamos botar uma gente preta aqui dentro”. Então, literalmente, a gente andava pelos corredores, no horário de almoço, de chegada, de ir embora, captando gente. A gente falava: irmão, tem um grupo assim, você sabe, quer entrar? Quero. E botava as pessoas ali. Então foi nessa unha. O que aconteceu? O grupo explodiu. Passamos a marcar encontros na Globo. Então marcamos um café pela primeira vez. Tínhamos, sei lá, 180 pessoas no café. A galera passava e perguntava: o que está acontecendo ali? O que é isso?
E, obviamente, o ponto de encontro sempre era de dor. Reclamação. Pessoas se sentindo sozinhas nas áreas em que se encontravam. Eram focos de resistência. Então, junto a isso, a Globo viu um desenvolvimento espontâneo acontecendo. Viu? Olha, é importante a gente estar junto, né? E criou a área de diversidade, trazendo Kellen Julio, que é uma mulher negra, gerente de diversidade e inclusão da casa. Então, a gente passou a não só existir enquanto força espontânea, mas com a força institucional. E ter ferramentas institucionais. A gente pode fazer palestra, convidar pessoas para falarem com a empresa, para administrar um seminário, para fazer uma feira. A gente fez um baile black. Então, assim, arrumamos algumas ferramentas para a gente poder fazer as coisas. Já estavam sendo feitas por nós mesmos e, óbvio, por quem veio antes de nós, só que de outras formas. Então, hoje, estar na Globo, ser uma das lideranças, não é o fim nem o começo: é o caminho.
André Menezes – Quais caminhos são possíveis dentro das redações para que mais jornalistas pretos possam ocupar cargos de liderança?
M.L Valentim – Eu acho que é oferecer futuros. Quando eu entrei na faculdade, existia uma ideia muito romântica do que é ser jornalista; era algo meio assim: quando você se formar, você vai cair de paraquedas na bancada do Jornal Nacional. – Tchau Bonner, agora é comigo! Tem muita coisa no jornalismo, muitas áreas, muitas performances, muitas especialidades. O jornalista conta formas, conta histórias e forma opinião. Só que se pegar o escopo jornalístico brasileiro, ele é formado por pessoas brancas.
Não muito tempo atrás, tem uns 5 anos, eu vi no Facebook, quando eu usava o Facebook ainda, esses grupos, que tem vários grupos de profissões, grupos de jornalistas, a pessoa divulgou assim: tem uma vaga na TV assim e “assada”, e procura pessoas de boa aparência. O que é a boa aparência? Não é a sua, não é a minha. Então, você dialoga com o público específico. E o jornalismo, como falei, conta uma história, relata fatos, mas ele oferece também futuro. Porque se você, nós, somos condicionados a achar que a vida é assim, que a única forma de ascender é essa, que só pode ser um homem negro assim, você não se forma: você se formata e se enclausura no modelo.
Então acho que, estar na televisão, ser jornalista, você oferece versões; oferecendo versões, você oferece futuros, que é um direito de poder ser várias pessoas. Então, resumidamente, acho que estar onde eu estou, como jornalista da Globo, é ofertar futuros. O que eu vi na Glória Maria, por exemplo, que era uma das maiores potências que eu tinha. E era só ela. E hoje tem várias pessoas. Não é o fim, falta muito a ser feito ainda. Mas é o caminho, como eu falei.
André Menezes – Falando agora um pouco de família, como é ser pai de dois lindos meninos pretos?
M.L Valentim – É uma responsabilidade. É claro que quando se fala de ser pai, de ter filho, há uma ideia romântica que não pode ser destruída, porque é romântico, é lindo, mas você botar no mundo, no Brasil, uma criança negra… Muitas vezes eu me sentia egoísta. Será que só vale o que eu quero? Porque eu quero ter filho. Minha esposa quer ter filho, mas essa criança vai passar por coisas que ela não passaria se simplesmente ela não existisse. Entende? Minha esposa é uma mulher negra que veio de uma comunidade e hoje é dentista. Ela é mestre no que ela faz. Mestre em odontologia. Ela é um exemplo para mim, de muita coisa. Eu admiro muito a minha esposa. E ter filhos vindos dessa mulher, vindos de mim, é desafiador pelo seguinte: eu posso falar, mostrar, tudo que eu planejo fazer com eles. Talvez, eles não absorvam. Talvez, tudo que eu fale sejam só frases pra eles, talvez eles ignorem o que eu fale. Então, é a incerteza. É ser apaixonado pela incerteza. Ser pai é ser apaixonado pela incerteza. Nada te garante que vai ser bem feito, que vai ser bem-sucedido. Mas você vai fazer gostando. Sem saber o futuro, sem saber o fim disso. Mas você gosta daquilo ali. E a preocupação é conseguir botar esses dois meninos negros no Brasil para que eles saibam quem eles, são não só em questão de autoestima, mas como a sociedade enxerga eles.
Nós, homens negros, somos um corpo bélico. Somos vistos como problema, violência. Meus filhos vão ser vistos assim pela sociedade. Eu quero que eles saibam que vão ser vistos assim, mas não se coloquem só nesse lugar; que eles se ofereçam outras possibilidades de homem, de masculinidade. Coisa que a gente não podia discutir, que era mimimi, que era besteira… Que eles discutam isso entre si para avançarem com a saúde mental em dia. Eu quero que eles possam ser… E ser. Simples. Só isso.
André Menezes – Qual conselho você daria para essa nova geração que não consegue mais criar relacionamentos sólidos e duradouros, fazendo com que muitas mães solos criem seus filhos sem nenhum apoio dos pais?
M.L Valentim – Meu pai e minha mãe se separaram quando eu tinha 4 anos de idade. Mas minha mãe e meu pai são muito amigos. Meu pai sempre ia lá em casa. Sempre estava presente. Só que hoje, eu, sendo pai, eu vejo que não tem como… Você pode ser presente, lógico. Não é obrigado a estar casado com a pessoa para sempre, mas o dia a dia é pesado. O dia a dia é complicado. Qual o conselho? Minha mãe foi mãe solo a vida inteira. Eu tenho um irmão, por parte de mãe, e mais dois irmãos, por parte de pai. Somos 4 meninos, sou mais velho dos 4, da negada toda. Minha mãe foi mãe solo. Eu vi acontecer com ela. Por mais participativo que meu pai fosse, mas o dia a dia era com ela, não tem jeito. O dia a dia é a mãe. O B.O. é a mãe. Mesmo eu sendo um pai casado com a minha esposa e com os meus filhos, ainda assim a figura da mãe é uma instituição. O desafio maior de solidificar uma família, de avançar enquanto família, por conseguir avançar enquanto povo, é se dar. Se dar ao gerúndio que é o dia. É um continuar, é um continuando. É o momento que você vai sempre colocar à prova a tua amizade com a tua companheira ou companheiro. Porque quando tudo estremece, quando o medo invade, quando dá problema, quando tudo falha… Você se apega na amizade. É a amizade que vai garantir a travessia. Então se você não for amigo de quem está com você, esquece, irmão. Esquece. Ah, mas eu gosto dela, eu a amo.
Eu não dou as costas para um amigo. Eu nunca darei as costas para minha esposa, se ela é minha amiga. Se não for mais esposa, se não for mais a pessoa com que me relaciono conjugalmente, ela ainda assim é minha amiga. Eu não dou as costas para um amigo meu, logo, eu não vou dar para minha esposa. Então eu acho que no fim do dia, você vai olhar e falar: essa pessoa é minha melhor amiga. Pode não ser tua única confidente. Você pode, você deve ter vários amigos, mas a amizade, pra onde você pode recorrer, quando tudo tiver um tsunami e você quiser atracar num cais tranquilo, é ali, na tua companheira. Eu acho que isso é o fundamental para qualquer formação, de qualquer forma de família. Ser amigo de quem está com você.
André Menezes – Para finalizar, qual legado você quer deixar?
M.L Valentim – Eu acho que uma ideia é um legado. As pessoas às vezes acham que legado é ter uma estátua, ou fazer uma coisa enorme, revolucionar – E tem que revolucionar, sim, muitas coisas. Mas uma ideia já é um legado. Então se, quando eu ouço conversar com alguém, a pessoa fala, Marcos, o outro me fez ver isso, me fez pensar aquilo, isso é um legado. Ninguém te sequestra uma ideia, a ideia vai te mover, vai te modificar, vai incentivar outras coisas. Se você pode modificar a forma como um ser humano pensa, você está mudando um motor e colocando em outra direção. Esse motor que troca o mundo, esse motor que vai mudar o mundo. O mundo dele.
Tem uma música do Djonga que ele fala assim: “se cada um é um universo, quem salva uma vida salva o mundo inteiro”. Se você salva uma pessoa, salvou o mundo, cara, daquela pessoa. Isso é um legado.
Para os meus filhos, além disso, o legado que eu quero deixar, é dinheiro, irmão. Ideologicamente, claro, quero que eles pensem, quero que eles tenham lucidez acima de tudo. Não precisa pensar igual a mim; lucidez. O legado é dinheiro. Quero que eles tenham dinheiro. Não podemos ignorar que a gente vive no capitalismo e o dinheiro manda no mundo, irmão. Que eles tenham dinheiro para orquestrar, colocar em prática as ideias que eles tiverem. Eu trabalho e minha esposa trabalha para isso. Agora, de modo geral, quando eu não for mais carne, quando eu não estiver mais aqui… Espero que eu seja pelo menos uma ideia. E queria deixar uma ideia: que a gente converse. A gente conversa muito pouco. Enquanto humanidade, enquanto gente preta. A gente tem muito melindre de coisas que colocaram na nossa cabeça, muitos gatilhos mesmo sobre alguns assuntos. Dinheiro é um deles. Afeto é outro, comunhão, parceria, sensibilidade. Como é que a gente pode cobrar da gente saber se expressar se a gente não foi criado para isso? A gente foi criado para ser duro.
Então, de modo mais direto possível, quando eu me for, eu quero ser uma ideia. Não se mata uma ideia. A ideia muda mundos.