Por Lilianna Bernartt

A adaptação de peças teatrais para o cinema não é novidade. Ainda assim, chama a atenção o movimento – ideológico e artístico – de Murilo Benício como diretor em seus dois longas metragens.

Isso porque ambos os trabalhos, cada um à sua proposta e forma, abordam um assunto em comum: a vocação pela arte e a valorização da arte como ofício, tendo o teatro como base.

Em sua estreia, Murilo foi audacioso ao adaptar “O Beijo no asfalto”, texto escrito pelo dramaturgo Nelson Rodrigues em 1960.

O texto já ganhou incontáveis montagens teatrais, adaptações e até mesmo uma versão cinematográfica anterior, no filme de 1981, dirigido pelo cineasta Bruno Barreto.

Ainda assim, Murilo adaptou a obra e como resultado, acompanhamos uma das estreias mais bem sucedidas de um diretor.

No filme, Murilo mistura os dois universos – cinematográfico e teatral – ao mostrar e ressaltar o processo de criação de um espetáculo teatral, com direito a leitura e discussão do texto por parte dos atores, ensaios e ainda, a uma cena maravilhosa – um presente da grande atriz Fernanda Montenegro – em que ela conta a história por trás do texto de Nelson Rodrigues, que foi produzido pelo dramaturgo a pedido da cia teatral de Fernanda, à época.

A obra de Nelson Rodrigues é objeto de acaloradas discussões até os dias de hoje, pela forma como o autor expunha sem pudores a flexibilização da moral e dos costumes em nossa sociedade.

“Pérola”, segundo longa metragem dirigido por Murilo, é a adaptação da peça teatral de mesmo nome do dramaturgo e diretor Mauro Rasi.

A partir da morte de sua mãe – Pérola – Mauro Rasi (interpretado por Leonardo Fernandes) faz uma reflexão sobre sua história familiar. Narrada sob o ponto de vista do dramaturgo, tem como foco Pérola (vivida brilhantemente pela atriz Drica Moraes) uma mulher forte, determinada, que coordena a família com muita vivacidade, bom humor e amor. Acompanhamos a transformação do luto em uma celebração da vida, através de uma família que se ama e que aprende a aceitar suas diferenças – morais, religiosas, sexuais, humanas.

Pérola nos remete também à Dona Hermínia, personagem criada pelo comediante Paulo Gustavo, em homenagem a sua mãe. Assim como Mauro Rasi, Paulo Gustavo atraiu milhares de espectadores ao teatro e aos cinemas, aquecendo ambos os mercados, fomentando e incentivando a produção e o consumo de arte, com salas de cinema e teatro lotadas.

Mauro Rasi foi um dos principais nomes do teatro nacional nos anos 1980/90, responsável pela montagem de diversos espetáculos teatrais que foram sucesso de público e crítica.

A montagem teatral de “Pérola” é um marco na história do teatro brasileiro. Com mais de 300 mil espectadores, a peça ficou por mais de cinco anos em cartaz e foi adaptada e encenada em outros países. Se foi um marco para a época, é quase uma utopia para os dias de hoje.

Murilo Benício, ao acaso (como diz o diretor) ou não, traz ao cinema textos de autores consagrados do teatro nacional, questionadores – sem qualquer comparativo – de valores humanos – íntimos e sociais. E além disso, traz autores-formadores de grandes públicos.

O teatro, assim como o audiovisual, foi extremamente prejudicado pela pandemia da Covid-19. Temos acompanhado o fechamento de diversos e importantes teatros de rua por falta de público e outros tantos, em constante luta por sua existência. A grande maioria, como vem acontecendo com os cinemas de rua, viraram igrejas.

O cineasta Kleber Mendonça Filho, em seu filme “Retratos Fantasmas”, escolhido como o representante brasileiro ao Oscar 2024, exalta a importância histórica sociocultural dos cinemas de rua e chama atenção para a extinção dos mesmos. No mesmo caminho, Murilo chama atenção para a importância da arte, do fazer teatral.

Os teatros e os cinemas de rua são essenciais para a garantia da diversidade cultural, porque através de suas localizações em espaços urbanos diversificados, permitem a reunião de pessoas de diferentes locais de origem.

Teatro Leblon, Teatro Glória, Teatro Eva Hertz, no Rio de Janeiro, são alguns exemplos de importantíssimos espaços teatrais que fecharam. Em São Paulo, o Teatro Brincante, Teatro Aliança Francesa, Os Fofos Encenam, e outras cias estão em risco de fechamento, em razão da especulação imobiliária.

Sendo assim, concluo com a reflexão e expectativa – pessoal e coletiva – de que filmes como “O Beijo no Asfalto” e “Pérola”, além de movimentarem o retorno do público aos cinemas, possam também incentivar a volta do público aos teatros.