Agosto Lilás: Os desafios postos para a execução da Lei Maria da Penha
A violência contra mulher decorre de uma sociedade estruturalmente racista e machista que ainda se baseia em relações arraigadas pelo patriarcado
A história de luta dos movimentos de mulheres
Por Renata Souza e Renata Lira*
Neste Agosto de 2023, a Lei Maria da Penha (11.340/2006) completa 17 anos de existência, quase a sua maioridade. A Lei, que decorre de uma recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, leva o nome de Maria da Penha Maia Fernandes, hoje ativista do direito das mulheres, que lutou para que seu agressor fosse condenado.
Ao longo desses anos, foram muitos os avanços e as vidas que foram salvas pela Lei Maria da Penha, importante instrumento de luta dos movimentos de mulheres. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, somente durante o período da pandemia da Covid-19, entre 2020 e 2022, mais de 572 mil medidas foram concedidas para proteção de mulheres e meninas em situação de violência doméstica. Durante o período de isolamento, o número de relatos de violência doméstica aumentou em 50%, chegando a 75% em algumas regiões do Brasil.
Segundo dados da Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro, somente no primeiro semestre de 2023, foram concedidas 14 mil medidas protetivas em um universo de 16 mil ocorrências de violência doméstica. Contudo, as mulheres que corajosamente se predispõem a registrar a ocorrência de violência doméstica enfrentam, ainda, muitos entraves.
Um dos grandes desafios encontrados para a plena execução da Lei Maria da Penha são as queixas sobre revitimização, abusos e negligência ocorridos nas Delegacias de Apoio à Mulher, as DEAM’s. E o que é pior, nem sempre os casos são registrados pela Lei Maria da Penha, mas sim como lesão corporal, ameaça e injúria, mesmo quando, na verdade, foram ocorrências de violência doméstica. Ainda há policiais, sobretudo agentes masculinos, que não estão preparados para lidar com a delicadeza e complexidade que é para uma mulher se expor em uma Delegacia de Polícia, ainda que seja uma DEAM. A grande importância do registro correto é a possibilidade desta mulher ter a medida protetiva deferida.
Mesmo diante de um cenário em que notadamente ocorre a subnotificação dos casos de violência contra mulher, o Brasil registrou 1.400 feminicídios em 2022, refletindo um aumento de quase 7% em relação ao ano de 2021. Mulheres negras são as principais vítimas do feminicídio, um recorte racial nos revela que 62% das mulheres vítimas são negras. No Rio Janeiro, foram 293 casos de tentativa de feminicídio em 2022 e 283 mulheres assassinadas, ocupando o segundo lugar no país. Em 2023, o Brasil já registra 1 feminicídio a cada 6 horas.
A violência contra mulher decorre de uma sociedade estruturalmente racista e machista que ainda se baseia em relações arraigadas pelo patriarcado, nas quais os homens são os mais favorecidos, principalmente homens, brancos, cisgênero e heterosexuais. A cultura de ódio e misoginia foi terreno fértil para o desmonte de políticas públicas para mulheres com drásticas reduções no orçamento público destinado aos equipamentos que acolhem e protegem mulheres e meninas em situação de violência.
O Agosto Lilás nos chama ao debate sobre que outras soluções precisamos encontrar para enfrentar este cotidiano de violência contra mulher. Sobre como podemos seguir combatendo a invisibilidade e a subalternidade nas relações domésticas, políticas, econômicas, culturais e sobretudo sociais entre homens e mulheres. Os desafios são muitos e gigantes, mas não podemos recuar.
No campo jurídico, recentemente, foi proferida decisão histórica do Supremo Tribunal Federal que suspendeu a validade do uso da alegação de “legítima defesa da honra” pela defesa de acusados de feminicídio. Essa decisão, que deveria ser óbvia, somente agora foi reconhecida pela Justiça, fruto de muita luta dos movimentos de mulheres, assim como tantos outros direitos adquiridos ao longo da história.
Sigamos fortes e unidas para mais agostos: é pela vida das mulheres!
*Renata Lira é uma mulher preta, mãe, advogada, moradora de Niterói, mestre em Direitos Humanos pela PUC e doutoranda em psicologia pela UFF. Defensora de direitos humanos, Renata integrou a primeira equipe de peritos do Mecanismos Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro. Renata Lira atuou na Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj e hoje atua na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Alerj, também compõe a coordenação política da mandata Renata Souza.