“Arte é fazer parte, não ser dono” – Emicida

Por Fábio Martins*

Se você já conhece há algum tempo o Design Ativista, algumas das linhas a seguir trarão termos e episódios um tanto familiares. Afinal, o Design Ativista faz cinco anos em 2023.

Fim do artigo? Sobem os créditos? Não! E não somente porque o texto não se detém ao familiar, como é um convite ao auto-estranhamento: neste texto, antecipo uma proposta de um nome mais amplo ao que fazemos no Design Ativista; faço um brevíssimo sobrevoo dos últimos cinco anos de atuação do movimento, como quem tenta ver de fora o que viveu. Feito isto, partirei para outros campos de atuação e potencialidades para além do que já fazemos cotidianamente.

Primeiro, vamos ao assunto do título.

O Que Quero Dizer com “Mobilização Criativa”?

Antes de tudo, o que se aborda aqui é uma forma particular de ativismo, entre as múltiplas maneiras de se fazer ativismo, na medida em que o design ativismo – centro deste texto – possui características próprias, construídas ao longo da história recente e cujas circunstâncias técnicas, operacionais e simbólicas se embaraçam em um novelo particular.

Seria pretensioso e inconveniente para um antropólogo e designer querer explorar aqui estas características ao longo da história brasileira recente, mas cabem ao menos dois apontamentos sobre as particularidades do design ativismo: a) elas derivam de um esforço de organização política recente – que tem como um de seus momentos principais a própria criação do Design Ativista – e b) presumem o entrelaçamento entre a profissão do design, a técnica do design e o ativismo.

Sobre o esforço de organização política recente, não custa pontuar que o Design Ativista nasce entre maio e julho de 2018, na ante-sala de uma das corridas eleitorais brasileiras mais tristes dos últimos anos. Em simultâneo ao projeto de organização de um grupo de designers mobilizados para a campanha do Dep. Guilherme Boulos e da Min. Sônia Guajajara à presidência da república – o Designers Uni-vos –, ocorria a primeira reunião do “Design Ativista Para Quem Não Aguenta Mais”. Esta última, provocada por um grupo de pessoas imprescindíveis para contar esta história: Rafael, Camila, Janara, Juliano e Thiago, representando a extinta Ideafixa e a Mídia NINJA.

Tanto Designers Uni-vos – que durou apenas até o fim do primeiro turno enquanto tal – quanto o surgimento do Design Ativista colaboraram para possibilitar que designers gráficos, ilustradores, cartunistas, chargistas e designers de outras especialidades cedessem um pouco de seu tempo, seu conhecimento, habilidades e equipamentos para a atuação em eleições. Daí o entrelaçamento entre trabalho do design, técnica do design e ativismo, que foi da produção de memes a ilustrações sofisticadas, passando por cards informativos, vídeos em motion graphics e charges.

Mas o que seria “mobilização”, de “mobilização criativa”? O termo recentemente adotado pelo marketing político e eleitoral traz algo do que na esquerda radical convencionou-se chamar “agitação e propaganda” – a agitprop, para os mais íntimos. Não há linhas o suficiente para explorar a diferença entre estes dois últimos termos, mas tomo neste texto a mobilização como uma forma reduzida de agitação, em que a mobilização se reúne um grupo de militantes treinados e ativos, com o objetivo de executar um certo grupo de tarefas – que podem passar pela ocupação de um espaço, reação organizada a uma crise, arrecadação de dinheiro ou produtos, ou a ativação de uma mensagem para grupos mais amplos. Diferentemente da agitação, a mobilização presume uma simplificação da mensagem, das tarefas e das justificativas para a tomada de ação.

Apontadas algumas das justificativas sobre a particularidade do design ativismo e o sentido de mobilização do qual me aproprio para este texto, é possível definir o que quero dizer por mobilização criativa: uma forma de atuação de militância centrada na produção de mensagens políticas, produtos impressos, revelados, digitais e campanhas, a partir de um chamado para a ação, realizado por uma pessoa, organização ou movimento social. Em outras palavras: trata-se de uma forma de mobilização em que os mobilizados são os produtores do que se veicula.

No caso do design, a mobilização criativa, portanto, passa pela produção de imagens. Mas nada impede que ela também seja empregada no contexto do audiovisual, da literatura, das artes visuais, do teatro, ou da música.

Em que ela se difere da mobilização convencional?

Se você chegou até aqui e ainda está em dúvidas do que difere a mobilização criativa da mobilização convencional, posso usar um exemplo muito bem estabelecido na história brasileira: a greve.

Compreendemos esta chamada para ação como uma forma combinada de mobilização e paralisação, na medida em que o trabalho é interditado e pode ou não ser acompanhado de uma marcha, atos públicos e ações diretas. Mas, tomando como exemplo a greve dos tipógrafos, de 1858, o centro desta forma de mobilização está na interrupção ou inviabilização do trabalho – quando não na destruição de maquinário, ferramentas e materiais –, não em sua continuidade ou transformação.

A mobilização criativa, por sua vez, não passa necessariamente pela interrupção objetiva do trabalho, pela distribuição de panfletos, pela ocupação de um espaço público ou pela disputa de versões sobre um fato político em uma caixa de comentários — embora possa se integrar a tudo isso. Ao menos no caso dos designers, a mobilização criativa significa a transformação do trabalho e da técnica do design em ativismo.

Evidentemente, o ativismo pode ser retornado ao domínio do trabalho, em ciclos incontáveis de transformação, mas este é um assunto para outro texto – que, nota mental, pode se chamar “quando o ativismo se torna trabalho, por Fábio Martins”. Neste momento, retomo algumas das experiências do Design Ativista.

As Experiências do Design Ativista, Para Além da Timeline

Parte deste texto vem do desejo de organizar alguns dos eixos de atuação do Design Ativista desde a sua criação, em 2018. Para tal, elenco a seguir algumas das suas principais atividades, baseadas em um critério de recorrência: são atividades realizadas ao menos três vezes nos últimos cinco anos.

Convocatórias

As convocatórias são a forma de atuação mais presente no cotidiano do movimento. A lógica da convocatória, cogito, tem origem no midiativismo, que desenvolveu e fixou algumas etapas de atuação. Estas passam pela chamada para a ação – convocatória –, organização de dados e arquivos – log – e disseminação de conteúdo – publicação. Geralmente, se dão em torno de um tema ou evento específicos e podem variar em quantidade de mobilizados e território de abrangência. São divididas em alguns tipos:

Convocatórias Fechadas: realizadas com pequenos grupos de designers, para uma atividade de pequeno porte, em que há o contato direto com o os produtores, sem que seja publicizado o processo de chamada.

Convocatórias Abertas e Nacionais: chamadas sem restrição territorial dentro do país, geralmente publicadas em todas as redes sociais do movimento e com disponibilidade para múltiplos envios.

Convocatórias Abertas e Internacionais: sem restrição territorial regional, entre dois países ou mesmo global. Podem ser feitas em parceria com organizações de outros países ― o melhor caminho para garantir a eficácia do chamamento ―, ou de maneira integralmente aberta, como no caso da Convocatória Global Contra Bolsonaro e em favor da candidatura de Lula, lançada em 2022 e que contou com colaborações de 17 países.

Grupos de Trabalho

No âmbito do Design Ativista, os GTs configuram uma forma de atuação de prazo determinado, mas que demanda a produção conjunta em torno de um tema ou campanha. Um exemplo foi o GT Covid-19, em que Rafa Palma, Carol Sarmento e Valentine Manso organizaram processos e fontes de conteúdo e reuniram alguns designers para produzirem peças em torno de um único mote, o “#FicaEmCasa”, em reuniões semanais durante o mês de abril de 2020.

Maratonas

As maratonas são realizadas com aspectos similares aos do Grupo de Trabalho, porém com marcadores temporais diferentes – os encontros da maratona –, objetos mais cristalizados – como a entrega de um produto ou campanha – e a mobilização de designers e profissionais de outras áreas, em geral com uma figura decisória guiando o processo.

Inspiradas nos hackathons, as maratonas foram uma inclusive uma forma de trazer mais designers para perto do Design Ativista, alguns presentes até hoje em diversas ações.

Eventos

Os eventos também podem ser considerados formas de mobilização criativa, quando temos em conta o principal evento promovido pelo Design Ativista: o Encontrão. O seu caráter mobilizador reside nas “vivências” e nas oficinas, experiências produtivas para campanhas e projetos iniciados no contexto do evento, mas que podem ser finalizadas posteriormente e reúnem algumas pessoas para o esforço produtivo de identidades visuais, bancos de cards ou objetos artísticos como gravuras em stencil e serigrafia.

Projetos Especiais

Embora pareça genérico, “projetos especiais” dá conta de tudo aquilo que não se enquadra em uma das categorias anteriores. Pode envolver uma campanha, um produto — impresso ou digital —, ou uma oficina e vivência. Geralmente é executado por um grupo restrito de designers, com um briefing estabelecido entre designers e a organização ou movimento social e com um grupo de entregas definido. Exemplo de um projeto especial foi a campanha Janeiro Vermelho, produzida em parceria com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e concretizada pelos designers Cris Vector e Gladson Targa.

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Um feed pode gerar a ilusão de que a grande tarefa do Design Ativista é compartilhar imagens, mas isso não é tudo. O feed é a vitrine que leva ao fundo da loja e é neste fundo onde ocorre o que há de mais potente no movimento.

Os pontos anteriormente mencionados são alguns elementos de uma atuação cotidiana e altamente experimental que já dura cinco anos. Mas isso também não é tudo.

Possibilidades da Mobilização Criativa

Tendo apresentado todas essas possibilidades de atuação, quer dizer que chegamos ao limite das ações? Pelo contrário. É preciso puxar um pouco mais, não somente porque é possível rompe as linhas da obviedade, mas também porque a vitória eleitoral não esgota o chamado à militância, nem resolve todos os problemas — como apontei em uma coluna anterior.

Vamos explorar, portanto, três horizontes para a expansão das práticas da mobilização criativa no design ativismo.

1. Cruzar as fronteiras do imediatismo

Após tantos anos, sabemos a força de uma resposta rápida a um fato político e o quão necessáries designers se fizeram em momentos críticos da história recente, como o primeiro aniversário de morte de Marielle Franco, os incêndios na floresta amazônica, a pandemia de Covid-19 e as eleições de 2022. Ou seja, o imediatismo foi uma força de contra-propaganda quando as estruturas convencionais de comunicação de mandatos, partidos e movimentos não se faziam rápidas ou estruturadas o suficiente para a detenção da onda fascista que se apropriou do Estado brasileiro de 2019 a 2022.

Mas, pela força dos anos, o imediatismo da reação e o cronismo visual se contaminaram com o pensamento de oposição. Agora que esta realidade mudou, a reorganização tática dos designers poderá levar à reorganização do tempo de ação: o tempo da reação poderá abrir espaço para o tempo de construção.

2. Organizar o Local, o Regional e o Internacional

Desde a sua criação, o Design Ativista se deparou com a difícil tarefa da capilarização e expansão. Sendo oposição a um governo fascista, as pautas nacionais mobilizaram muito mais do que as locais e as eventuais pautas internacionais que gerassem alguma comoção.
Ao mesmo tempo, alguns designers tiveram a oportunidade de realizar individualmente ações com algum alcance internacional, sobretudo em projetos vinculados a ONGs e em campanhas eleitorais de países da América Latina. No entanto, este parece ser um momento frutífero para a organização de grupos para a atuação em nível local, regional e internacional.

No local, o momento vem a calhar com a aproximação das eleições para prefeituras e vereanças de 2024, quando se realizará um teste de sobrevivência eleitoral do bolsonarismo. Em nível regional, o fortalecimento de economias, culturas, povos e territórios pode ser apoiado pelo design ativismo e fazer frente à expansão quase irrefreável do agronegócio reacionário.

Internacionalmente, as ações podem deixar de ser individualizadas e passarem a ser coletivas, com formação de grupos de ação em eleições nos países vizinhos e promovendo a troca de saberes contra a internacional conservadora.

3. Para Além da Mobilização: as Comunidades Criativas

A volatilidade e a velocidade das conexões em redes sociais permitiu ao longo dos últimos anos a promoção de verdadeiras ondas produtivas de imagens de protesto e, a cada nova onda, um novo grupo de pessoas era reunido para produzir centenas de peças sobre um determinado tema, de maneira episódica e pontual. Reiterando, foi uma ação fundamental para os tempos de oposição, mas este é o momento propício para aprofundar as relações já existentes, aproximar pessoas e romper a fronteira do presente.

Não é essa a oportunidade para me aprofundar nas comunidades criativas, ideia que mereceria um texto somente para si – mais um pra lista de ideias. Mas estas podem abarcar uma diversidade de ações: produção, editoração e leitura de livros sobre design e política — a exemplo do @clubedolivrodesign —; a disputa por melhores condições de trabalho e um olhar mais sensível para usuários — como a plataforma global @designjusticenetwork —; o fortalecimento de candidaturas profissionais para @designersnegres; a rediscussão sobre os impactos da indústria da moda a partir de um olhar sobre classe, raça, gênero e meio ambiente – como nos casos da @fash_rev_brasil e do @institutofebre.

A forma organizacional de uma comunidade criativa pode ser diversa: coletivo, estúdio, ONG, startup, movimento ou uma página em uma rede social. O que a difere de um portal de notícias ou um ajuntamento pontual de designers tem a ver com a duração e a força das relações: amizades e um passado em comum são construídos; as ações se acumulam e se estruturam ao longo do tempo; os territórios passam a ser impactados pelas ações destes grupos; as trocas passam a ser outras, que não somente aquelas baseadas no capitalismo à brasileira.

Talvez ainda exista um terreno inexplorado nessa ideia de comunidade criativa no design ativismo, evidenciado pela pobre definição que tentei apresentar aqui. Porém, a instauração e a continuidade de comunidades criativas – mais ou menos orgânicas, passageiras ou perenes – insere no horizonte um caminho para a aproximação permanente entre estes cidadãos amiúde afastados do sentimento de classe e que, graças ao design ativismo, viram um caminho para a tomada de posição e para a ação política.

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Este texto, assim como os outros publicados nesta coluna, é um chamado para ação, para o inconformismo. Sim, caminhamos pelo vale das sombras nos últimos seis anos, vivemos e vimos o indizível e, ainda assim, quebramos as correntes do que parecia inquebrável. A derrota eleitoral e a inelegibilidade de Jair foram apenas os primeiros passos para a restauração de um sentido de futuro, do qual os designers podem fazer parte, e farão. Continuem a lutar.

P.s: Este texto também é um abraço em todas as pessoas que participaram do Design Ativista nos últimos cinco anos e com quem eu tive o prazer de conviver, eventualmente em reuniões de madrugada, limpando o chão, desdobrando materiais gráficos ou pensando em novas formas de mobilização. Ju, Taís, Gabi, Carol Anchieta, Morena, galera da Coluna, galera dos grupões do Zap, obrigado por tudo! Que venham mais quantos anos forem necessários pra gente poder viver em paz.

*Fábio Martins é mineiro de Três Corações/MG. Designer, ilustrador, artista visual e mestre em antropologia social (PPGAS-UNB). Integra desde 2018 o Design Ativista.