Afro Nation: maior festival de afrobeats do mundo é uma verdadeira Wakanda da música
A cantora britânica Jesuton foi a correspondente do S.O.M nesta edição e conta sobre a experiência.
A cantora e compositora britânica – que também tem os dois pés no Brasil-, Jesuton, esteve em Portugal e foi a correspondente internacional do S.O.M durante o Afro Nation, festival de música afrobeats e amapiano, que aconteceu em Portimão, no Algarve, entre os dias 28 e 30 de Junho.
Leia o relato sobre como foi este momento:
Por Jesuton
“Cuidar de mim mesmo não é auto indulgência, é autopreservação, e isso é um ato de guerra política” – Audre Lorde
Já estou de volta em casa depois do Afro Nation, mas alguém tem que avisar isso pra minha mala, que fica na sala, me julgando. Ainda não está desfeita, e não está aceitando muito bem essa volta para realidade.
Com início em 2019, quando viu 20.000 pessoas fazerem a viagem para a Praia da Rocha, 2023 já se mostrou como a maior edição de sempre com esse número dobrando facilmente para 40.000. Festivaleiros de mais de 140 países preencheram as ruas de um Portimão em pleno verão, com temperaturas batendo quase 40 graus.
Minha curiosidade sobre esse evento, que tem como objetivo reunir os principais nomes no afrobeats e amapiano, já surgiu junto com a primeira edição.
No contexto atual, desses mesmos gêneros ganhando espaço e protagonismo nas principais paradas globais, junto com a minha pesquisa pessoal nesses últimos anos, mergulhando cada vez mais fundo nesse mar, não era por acaso que nesta edição ter a presença confirmada virou parada obrigatória para poder me juntar à multidão, e saborear justamente o que era isso tudo para mim mesmo.
O clima de festa já deu palpite no embarque de ônibus que me carregava de Lisboa para o sul. Por enquanto, línguas de diversos cantos do mundo dançaram sem pudor no ar, olhos brilharam com aquele brilho de antecipação que apenas uma viagem muito sonhada e desejada traz. Conversas descontraídas deslanchadas com vizinhos sobre onde vai, quando chegou, o que vai fazer, salpicou o ambiente abafado. E você, e a sua primeira vez?
Ainda assim, diria que nada me preparou para as calçadas de Portimão.
De uma vez instalada num apartamento na própria Praia da Rocha com a minha turma, inclusive, imbatível – a Preta Rara e a Amina Bawa, resolvemos dar um rolê.
Te conto, de cara. De ver tanta gente preta, bonita, arrumadinha, andando, sorrindo, brincando, gargalhando, lacrando, falando alto, fazendo nada, abraçando, comendo, posando, gritando, relaxando – me abraçou de forma mais quente e forte que o calor que já estava fazendo pérolas de suor deslizar nas minhas costas.
Me transportou para a primeira vez que fui para a Jamaica na vida, em 2006. Eu nasci num país branco, isso é fato, mas mesmo assim, eu sinto que eu tive a sorte de ser nascida e criado no bairro de Walthamstow, um bairro humilde no nordeste de Londres, Inglaterra — um povo culturalmente riquíssimo e misturado com pessoal de várias cantos do mundo vivendo numa mistura feroz de temperos.
Mas mesmo assim, na vida adolescente e adulta na faculdade como a única preta no meu colégio na Universidade de Oxford, e durante minhas viagens de pesquisa, e nos meus primeiros trabalhos, eu vejo como o mundo fez uma grande questão de invalidar e alienar minha pele preta em jeitos que muitas vezes não tinha a linguagem para descrever, nem o estômago para digerir.
Saindo dessa infância e uma vida na Inglaterra então, descendo do avião em Kingston, Jamaica, eu lembro como se fosse hoje. A sensação das minhas pupilas crescerem num instante com os fatos imediatamente visíveis: Eu Não Sou Excepção! Eu não sou marginalizada. Não sou diferente do padrão.
É que, erramos o foco.
Só.
Lá na Jamaica, e lá na calçada de Portimão novamente, eu estava presente. Estávamos presentes. O que vi espelhado éramos nós, sem medo de ser e estar. Aqui sim somos a maioria, pensei. E somos lindos.
No Afro Nation, os finais de tarde eram os momentos para ostentar no look e preparar para entrar no festival em si, e de uma vez com pulseira na mão, as filas para entrar eram sempre tranquilas.
Ao entrar no festival, as boas vindas foram logo dadas pelo grave arrebatador do primeiro palco, chamado Piano People, de amapiano. A palavra que dá nome ao gênero vem do Zulu ou Xhosa da África do Sul, que quer dizer ‘os teclados’, sendo o estilo uma fusão de deep house, jazz, lounge com synths e baixos percussivos. Ou, como dizemos em inglês: vibessss.
Dançante, sensual e sempre com a sensação que a festa não vai ter fim, todos os dias amapiano deu a largada a noite com seus baixos reverberando no ar, colocando frio diretamente na barriga.
Areia embaixo do pé, grupinhos de amigos se divertindo e apitando apitos, paqueração sim, senhora, o sol ainda demorando a pousar, com milhares de quadris se rendendo à batida em união.
Musa Keys, Uncle Waffles foram os shows que mais esperei no palco Piano People, e também houve um astral tão altíssimo lá que quando conversei com alguém, me confessou que apenas ficou nesse palco o festival inteiro, e eu consegui entender muito bem.
O segundo palco era o main stage, o palco principal, onde cada dia, ele abriu seu próprio cardápio de sensações. Pensando nos três dias, é impossível não citar o Burna Boy – que tem feito a sua missão pessoal colocar afrobeats no mainstream mundial e hoje em dia lota estádios por onde passa, deixou a pista em chamas. Milhares de pessoas ao meu redor, gritando os refrões chicletes dele junto, “shayooo!” foi o ápice. Se não sabia as letras de cor já, relaxa, você sai do show, já sabendo.
Wizkid também como outro gigante da cena tinha os hits para emocionar e fechar a segundo noite do festival deixando a pista já polvorosa pra os inumeráveis after parties que aconteceram nas ruas principais de Portimão (e as casas e mansões privadas em Portimão para fora, atenção!)
Na última noite, Davido demonstrou porque ele é um dos originais e mais respeitado do gênero com um show que decolou a velocidade de luz. Ostentando com o mega hit ‘Unavailable’ a praia foi a loucura com um show fervente e altamente orgânico. Em tempo, que saxofonista foi esse? Me passa contato por gentileza!? Grata!
Quem surpreendeu lindamente foi o 50 Cent. Ora, rei da pista de r’n’b e hiphop dos 2000, falo por muitos quando digo que o show dele, confiante, hits para dias, robusto, divertido, pesadão num jeito clean e altamente eficiente, agradou demais. Além de tudo, ele carregou uma paixão muito evidente no peito, uma fome para estar no palco, entregando tudo já para ontem. Era para fazer qualquer derreter. Não esperei ver isso em alguém que tem tanta estrada. O brilho dele só se fortaleceu e aumentou com o tempo. Emocionou.
Agora, meu grande destaque tem que ir para Little Simz, rapper, atriz e multi-hyphenate do Reino Unido. Literalmente sozinha num palco gigante, ela preencheu o main stage com a presença e música dela com tanto fôlego que conseguiu também alugar também um triplex de férias nas nossas mentes só porque sim. No meio do set dela, nitidamente emocionada, ela se comentou sobre a alegria e satisfação que sentiu, ao ver tanta gente parecida com ela no multidão.
Fez um discurso sobre auto-aceitação e a importância de reconhecer a grandeza em si, não de um lugar de ego e sim de um lugar de confiança. Ela era afiada, cirúrgica, segura de si em cada fala e gesto. Para mim Little Simz exemplificou e afirmou que mesmo nas gerações nascidas já fora de África: estamos aqui presentes e prontos, temos o que contribuir, sim, estamos assumindo a nossa ancestralidade sim, alimentados pelas nossas raízes como nosso combustível. Finalmente. Tá na hora.
No final, ver tanta gente preta se divertindo em paz virou o grande lema dos três dias para eu e muitos. Uma coisa viva, um mar de energia presente que foi lá fundo e voltou para te envolver e arrepiar com cada movimentação, com cada conversa ou encontro.
Uma conexão visceral com a diversidade imensa, bela e divertida que é ser um corpo preto nesse mundo, com a união entre nossos caminhos que pode acontecer. Meus dias no Afro Nation foi um respiro, um reset, um reforço.
Sabemos que descanso para o corpo preto é revolucionário, sabemos isso sim. Porém de viver isso de forma coletiva, onde por três dias, o foco e objetivo é de explorar isso nas suas inumeráveis manifestações foi um exercício em catarse, no poder incomparável do quilobamento, no poder da gente. Na beleza da gente. Na força da gente.
Como sempre: é só mudar o foco.