Chamar as ocupações realizadas pelo MST de “invasões” e colocar os militantes como violentos é a forma mais comum de desqualificar a luta dos sem-terra.

Foto: Gustavo Marinho

Texto escrito por Mônica Mourão e publicado originalmente no Brasil de Fato

Chamar as ocupações realizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) de “invasões” e, assim, acusar os militantes deste Movimento de violentos é a forma mais comum de desqualificar a luta dos Sem Terra. Para quem acompanha a cobertura da imprensa, mesmo que de modo não sistemático, é até um clichê, um exemplo fácil de como a mídia se situa na luta de classes. Em nossas pesquisas, o Intervozes confirma: a cobertura sobre a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do MST, que aconteceu em 2010, usou 192 termos negativos diferentes para se referir ao MST e suas ações; a palavra “invasão” e seus derivados foi a mais usada. Também em 2010, 42,5% das matérias analisadas citaram o MST como autor de violência. Agora, em 2023, como vimos no primeiro texto de análise da CPI, publicado no Brasil de Fato na semana passada, 100% da cobertura dos dias 17 e 18 de abril usaram termos pejorativos para se referir ao Movimento. Enquanto isso: onde estão as matérias sobre os verdadeiros invasores de terra?

No último dia 14 de junho, o projeto “De olho nos ruralistas – Observatório do agronegócio no Brasil” lançou a segunda parte do relatório “Os Invasores: quem são os empresários brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas”. O dossiê revela quem são as pessoas físicas e as empresas cujas terras se sobrepõem aos territórios delimitados pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). São 1.692 casos de completo desrespeito à lei e aos povos originários do Brasil. Quarenta e dois são políticos ou seus familiares e muitos são doadores de verbas para campanhas eleitorais. Eles doaram para 18 integrantes da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) e também investiram na reeleição de Jair Bolsonaro (PL).

Foram 41 fazendeiros com sobreposição com terras indígenas que transferiram R$ 1,2 milhão para a campanha do ex-presidente derrotado.

As informações foram obtidas a partir do cruzamento das bases de dados fundiários do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), com informações do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Mesmo quando trata de questões socioambientais relacionadas à terra (como em reportagem sobre garimpo e reserva indígena no dia 14 de junho), o Jornal Nacional não mencionou o dossiê “Os invasores”. O mesmo aconteceu na edição do JN de 19 de abril, data do lançamento da primeira parte do relatório. Apesar de vir perdendo audiência nos últimos anos (em 2004, tinha uma média de 39,8 pontos no Ibope contra 23,5 hoje), o programa ainda é o telejornal da maior referência no país.

Seus telespectadores, no entanto, não chegaram a conhecer as informações sobre os verdadeiros invasores de terra do Brasil, assim como assinantes do jornal O Estado de S. Paulo, que também silenciou sobre o tema. O Globo, no dia 21 de maio, em matéria intitulada “Ruralistas acusados de cometer delitos ambientais doaram a deputados da CPI do MST”, escrita por Jan Niklas, divulgou levantamento feito pelo próprio jornal, que concluiu que “sete membros da comissão que vai investigar o MST receberam contribuições para a campanha de acusados de delitos ambientais e agrários, que vão de desmatamento ilegal a contrabando de ouro”. Nenhuma menção foi feita ao dossiê “Os invasores”. Já a Folha de S. Paulo deu espaço para a divulgação da primeira parte do relatório, com destaque para artigo escrito por um de seus pesquisadores, Bruno Stankevicius Bassi.

Importante também destacar as matérias publicadas pela Agência Brasil, tanto por ocasião do lançamento da primeira parte do relatório, no dia 27 de abril, quanto sobre a segunda parte, no dia 14 de junho. Em nenhum dos dois casos, a Agência Brasil mencionou a CPI do MST, deixando de lado a possibilidade de ampliar o conhecimento sobre contexto em que ocorre a investigação e as implicações políticas em jogo. A comunicação pública, que vinha sofrendo intensos ataques desde o golpe contra Dilma Rousseff (PT), ainda não foi fortalecida pelo atual governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Desde a participação de Rosângela Lula da Silva (Janja) na TV Brasil até a primeira live do presidente, feita em formato de entrevista para um jornalista desta TV, Marco Uchôa, percebe-se que o governismo ainda não tirou suas garras da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). O principal espaço de participação da sociedade civil na EBC, o Conselho Curador extinto por Michel Temer, ainda não foi retomado.

A live de Lula foi um dos principais assuntos que a imprensa repercutiu em relação ao MST nos dias 13 e 14 de junho. O presidente afirmou que vai realizar a reforma agrária e que não precisa haver “barulho” nem “guerra”, referindo-se às ocupações de terra realizadas pelo Movimento. Todas as versões online dos impressos que analisamos (Estadão, Folha e O Globo) publicaram matérias com desdobramentos desta fala. A associação dos governos petistas ao MST é também uma estratégia antiga de desqualificação do Movimento e de crítica a estes governos: em 2010, o fato de Dilma ter aceitado um boné do MST de presente, embora não o tenha usado, rendeu pauta contrária à então candidata à primeira eleição presidencial.

São também os impressos que têm acompanhado o dia a dia da CPI, cujas reuniões foram retomadas no dia 13 de junho depois de uma semana suspensas. Nesse retorno, bate-bocas entre parlamentares, expulsão de uma militante de esquerda do plenário, tentativa de coagir deputadas progressistas foram alguns dos assuntos abordados. Episódios como esses geram recortes de falas que repercutem nas redes, estratégia bem utilizada pelos deputados bolsonaristas para reforçar sua base de apoiadores. As performances deles na Comissão são propositadamente midiáticas. Na semana do dia 13, porém, também conseguiu destaque a fala do professor José Geraldo de Souza (UnB), em resposta à bolsonarista Caroline de Toni (PL). De decisões concretas, houve a aprovação de requerimento para obter informações sobre todas as CPIs e CPMIs anteriores relacionadas ao MST e à questão fundiária, uma tentativa de culpabilizar o Movimento que, diferente dos fazendeiros invasores, atua dentro da lei.

 

Que especialistas têm valor para a “grande imprensa”?

A pesquisa realizada pelo “De olhos nos ruralistas” foi feita por uma equipe composta por jornalistas, geógrafos, historiadores e um especialista jurídico, que realizou cruzamentos de dados disponibilizados pelo Incra com os dados de cobertura e uso do solo da plataforma MapBiomas – Coleção 7 (além de informações da Funai e do TSE, como já mencionamos). No jornalismo, especialistas são uma fonte considerada bastante legítima: com amplo conhecimento dos temas que estudam, teria uma abordagem científica e ideologicamente independente.

Sabemos, porém, que a isenção e a neutralidade são construções narrativas usadas justamente para criar uma impressão de “verdade”. O papel dos especialistas ouvidos pela imprensa está longe de ser desinteressado, inclusive na escolha feita por ela de quem merece ser ouvido e de quem é invisibilizado.

Na pesquisa sobre a cobertura da reforma da previdência federal realizada também para a coleção Vozes Silenciadas, o Intervozes observou que, entre os especialistas ouvidos pelos jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo, uma média de 64% foram favoráveis à proposta de reforma da previdência do governo Bolsonaro.

Não é de impressionar, assim, a pouca visibilidade dada ao dossiê realizado pelo “De olhos nos ruralistas”.

Pesquisadores que se recusam a ser indiferentes às implicações políticas de seus estudos dificilmente serão considerados fontes legítimas por uma imprensa que se posiciona ao lado dos verdadeiros invasores de terra do país.

*Jornalista, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social