Durante a pandemia de Covid, fechado em casa apenas com Silvana, minha companheira, por sugestão dela, fiz um plano de estudos para conhecer mais a fundo a história da formação do patriarcado. Em dias de reclusão, fui realizando minhas leituras e pesquisa, sobretudo a partir de literatura feminina. Com isso, histórias e referências que eu conhecia superficialmente, mesmo sendo historiador, foram se desvelando. Outras, passei a conhecer a partir daquele momento. Histórias escondidas, silenciadas, das mulheres do Brasil. São muitas!
Nessa série eu apresento apenas algumas histórias em forma de pequenos artigos, como retribuição do que fui conhecendo. Histórias de mulheres extraordinárias. Que sirvam de estímulo para o aprofundamento e novas descobertas. Cada qual daria roteiro para filmes ou séries, livros, exposições em Museus, aulas. No quinto e último artigo, escrevo sobre as origens do patriarcado. O patriarcado é a primeira de todas as opressões, foi quando surgiu a ideia de posse e exploração, primeiro dos homens sobre as mulheres. Depois, dos homens dominantes sobre os demais homens e mulheres. E dos humanos sobre os demais seres da natureza. Apesar dessa dominância, as mulheres fizeram e fazem história, conhecer essas histórias é o primeiro passo para superar a exploração e superar o patriarcado. E superar o patriarcado é libertar a humanidade. Por isso, é tarefa de todas, de todos e de todes.
Espero que apreciem as histórias.
Grato.

Célio Turino

Mulheres do Brasil: a criação do Patriarcado

Çatal Hüyük, uma cidade construída em forma de colmeia. Pequenas residências no mesmo formato, umas ao lado das outras, com mobiliário comum. Detalhes a indicarem que não havia distinção entre os moradores. Na cidade não havia ruas, nem praças, nem palácios. As pessoas entravam pelo telhado, descendo por uma escada. Na cidade colmeia, formada há 8 mil anos, a quantidade de homens e mulheres enterrados com honras era equivalente, assim como o status entre os sexos, conforme demonstram achados arqueológicos.

Localizada na região da Anatólia, na atual Turquia, Çatal Hüyük abrigava aproximadamente 8.000 habitantes e foi uma das mais antigas cidades construídas pela humanidade. Uma cidade em que mulheres e homens tinham o mesmo papel social, sem dominação de um sexo sobre o outro.

Achados arqueológicos revelam uma riqueza considerável, com tapetes de junco, tecidos, recipientes de madeira, objetos feitos de obsidiana. Nas paredes das casas em forma de colmeia, uma grande quantidade de santuários, pinturas, estátuas e ornamentos, também desenhos e pinturas de touros, carneiros. Nas imagens humanas, muitas mulheres em ação, cenas de parto, muitos seios emoldurando as imagens, pinturas com mulheres participando de rituais e caçadas. Entre as pinturas, símbolos de vida e morte, leopardos (representando a caça) e abutres (a morte). Muitas esculturas e imagens de deusas. Rodeando as Deusas, grãos de alimentos, verduras e flores, representando a abundância. Também pinturas e desenhos de homens e mulheres se abraçando, em cenas de carícia. E nenhuma imagem de deuses homens.

Interessante perceber que, do outro lado do mundo, na Serra da Capivara, no Piauí, o mais antigo registro de assentamento humano na América do Sul, também há imagem de homem e mulher se beijando, sem relação de subordinação ou opressão. Daí a pergunta. Se nos primórdios havia uma relação de igualdade e equilíbrio entre homens e mulheres, como foi possível chegar à situação atual?

A dominância masculina tem uma historicidade.

Para compreendê-la é necessário abandonar as explicações de causa única. O patriarcado não é eterno, imutável, a-histórico. Quando, nos artigos anteriores, busquei ressaltar processos de protagonismo feminino, tendo o cuidado de apresentar nomes de mulheres, muitas vezes esquecidas, invisibilizadas e silenciadas, meu objetivo, como homem, registro, foi o de puxar esse fio da memória. O início de uma anamnese social a ir recompondo o papel social das mulheres nos processos históricos. Não para que apenas as mulheres conheçam e reverenciem os nomes apresentados, mas para que essa descoberta e diálogo se estabeleça também com os homens.

Houve diversas maneiras de transição para o patriarcado, e de sua manutenção, em diversos formatos, até os dias atuais. Cabe compreender o papel social da mulher ao longo da história e o que isso tem a dizer sobre as atuais relações. Sexo é uma determinação biológica, mas gênero é uma construção social. E nem sempre sexo e gênero se combinam e são compatíveis em um mesmo corpo. A história pode nos explicar como a dominação dos homens sobre as mulheres foi se estabelecendo.

Sob a evolução dos primatas, como resultado do prolongado e frágil processo de crescimento da criança humana, a primeira relação entre pares foi entre mãe e filho. Diferente de outros animais, crianças humanas não nascem prontas para a locomoção ou busca de alimentos, sequer podiam se agarrar às mães como os macaquinhos, pois os dedos das mãos e pés não são flexíveis, não tem garras. Frágeis e imaturas, com a cabeça menor (para facilitar a passagem pelo canal vaginal), crianças requerem cuidado por muito tempo. Imaginem uma condição dessas no tempo das cavernas ou sob o neolítico.

Daí a adoração da Deusa-Mãe e a inexistência de deuses masculinos no período. Naquela época, na chamada idade da pedra, no paleolítico ou neolítico, a expectativa de vida pouco ultrapassava 30 anos. Da condição materna dependia a sobrevivência dos grupos humanos. Ser mãe foi a primeira divisão social do trabalho. Não foram diferenças de força ou resistência que impuseram essa divisão de funções, em que homens saíam para longas caçadas e às mulheres e crianças cabia a coleta de alimentos e a caça de pequenas presas, mais próximas à habitação, mas às diferenças reprodutivas e da capacidade de amamentação.

As faculdades humanas, a formação do pensamento, do caráter e da identidade dos indivíduos, se deu nessa relação entre Mãe e Filhos, promovendo uma interação humanizadora. Simone de Beauvoir especulou que essa divisão inicial do trabalho está na origem da desigualdade entre sexos. Por essa divisão, à mulher coube o trabalho repetitivo e sem fim, no que atualmente se define como a economia do cuidado (com a casa, a prole, os idosos e os mais frágeis no núcleo familiar), mais relacionada à imanência, à interioridade. Enquanto aos homens eram estimulados os exercícios da bravura, das longas caçadas, do ir além.

Elise Boulding, antropóloga, oferece uma interpretação diferente. A partir de diversos estudos antropológicos ela percebeu que havia um compartilhamento igualitário do trabalho, em que cada sexo desenvolvia suas habilidades conforme a necessidade de sobrevivência do grupo. A coleta de raízes, frutos, castanhas e demais alimentos, mais atribuída às mulheres, exigiu conhecimentos aprofundados de ecologia, propriedades alimentícias e medicinais das plantas. As mulheres sob o neolítico eram as guardiãs do fogo, inventoras de recipientes de argila, palha e tecido.

Cabia às mulheres a guarda dos alimentos para os tempos de escassez, os segredos da química das plantas, transformando-as em tinturas, fios, medicamentos. Eram conhecimentos fundamentais para a continuidade do grupo, que, ainda frágil, poderia desaparecer. Daí o culto às Deusas. Assim, as sacerdotisas das deusas criavam histórias, rituais e ritos, música, dança e poesia. Se os homens viajavam para longe das cavernas, quem contava as histórias através das pinturas rupestres, eram elas. Bem como a garantia de alimento, uma vez que 80% da subsistência dos primeiros grupos humanos era suprida pela coleta e apenas 20% pela caça de grandes animais, atribuição masculina.

Por essas características de organização social e mobilidade, foram as mulheres que determinavam os movimentos dos grupos e o local de morada. Ferramentas também eram confeccionadas em comum, por mulheres e homens. Quando, então, ocorre a mudança e os homens se fazem prevalecer sobre as mulheres?

No Gênesis, a mulher nasce do corpo do homem e a expulsão do Paraíso ocorre por culpa de Eva. Essa expulsão significou o fim da vida coletora-caçadora, e a partir de então o trabalho seria árduo, assentado na agricultura e na criação dos animais. O fim da vida selvagem, conforme aponta a psicanalista mexicana Clarissa Pinkola Estés, em “Mulheres que correm com os lobos”, marcou esse momento, que é também o de afastamento em relação à Mãe Natureza. Daí ela propõe o resgate da mulher-loba, a mulher em busca de sua raiz selvagem, indomesticada. Claude Maillasoux, antropólogo, citado na obra, afirma:

Nada na natureza explica a divisão sexual do trabalho, nem instituições como o casamento, conjugalidade ou descendência/linhagem paterna. Tudo é imposto à mulher através de coerção, todos são, portanto, fatos da CIVILIZAÇÃO que devem ser explicados, e não usados como explicação”

O patriarcado foi e segue sendo um golpe contra a Natureza e se estabelece na origem da cultura, na virada entre o mundo selvagem/natural para o mundo agrícola/civilizado. Assim como na Bíblia, na Grécia de Homero, a passagem do mundo da terra inculta, não domesticada, associada ao feminino, é também suplantada pelo mundo dos homens, na passagem em que as Sereias, com seu canto, tentam impedir Odisseu de seguir navegando para a civilização. A partir de então, a mulher, e a Terra, foram submetidas à exploração sem limites.

A raiz do patriarcado está na propriedade privada, sobre a terra, sobre as mulheres, sobre a prole e os outros homens. A propriedade sobre tudo. O que está no solo e abaixo dele. Sobre o ar e as águas, sobre os bosques e os animais, sobre as máquinas e sobre as gentes. A propriedade sobre o futuro.

Patrimônio, do latim Patri, pai, a herança do pai é a base do Patriarcado. Patri, patriarcado, patrimônio. A Propriedade como fim, como forma de acumulação e transmissão, como meio de exploração e controle. Aquilo que é fecundo, que dá vida, atributos femininos, passou a ser invejado, ambicionado e expropriado de seu sentido vital. Foi o que os homens fizeram com as mulheres na gênese das civilizações. Foi o que fizeram com a natureza.

Retomar o equilíbrio e a equidade nas relações entre mulheres e homens é chave para uma vida emancipada e verdadeiramente livre, para homens e mulheres. Não só entre estes, mas para uma retomada na relação humano-natureza, em que a Terra é Mãe, Mulher, Pachamama, Gaia, Nossa Senhora. Mãe acolhedora e dadivosa.

Ainda há tempo para retomar essa relação. Mas o tempo está se esgotando. O colapso climático bate à nossa porta. Por isso a Revolução feminista se reveste de ainda maior relevância, porque não é uma revolução sexista, das mulheres contra os homens, mas uma revolução da igualdade, da emancipação humana e do reencontro dos humanos com os seus sentidos mais profundos. O mundo das ganâncias desmedidas tem que acabar antes que se volte contra todos, todas e todes. Acabar com o patriarcado tem esse sentido.

Exploração, acumulação e dominação foram lógicas impostas a partir da predominância do patriarcado. Patriarcado que impõe seus interesses e ideologia a instituições como a família, as leis, as religiões, os sistemas de ensino. O trabalho das mulheres, voltado para o cuidado, sequer é reconhecido como trabalho até os dias atuais. Mas alguém tem dúvida de que esse é um trabalho fundamental, um subsídio de vida e às atividades econômicas ditas produtivas?

O poder feminino de dar vida e sustentar a vida, segue idolatrado por homens. No entanto, até há alguns anos, mulheres em busca de emprego necessitavam apresentar exame de urina para comprovar que não estavam grávidas. Ainda perduram humilhações, sujeições, desigualdades, opressões. No Brasil Colônia a Lei permitia que maridos assassinassem suas esposas pela simples suspeita de adultério. Em 2021, ao menos um caso de feminicídio é registrado a cada sete horas no Brasil, 1.319 mulheres foram assassinadas simplesmente pela condição de ser mulher, houve 56.000 casos registrados de estupro, incluindo meninas vulneráveis. Na política o Brasil é um dos países mais desiguais na relação entre homens e mulheres eleitas. Também na renda do trabalho.

Mas as mulheres jamais fugiram à luta. Seguem consciente, promovendo mudanças sociais e políticas, não somente para as mulheres, mas para todos os integrantes da sociedade. Do acesso à educação formal, pública e de qualidade, conforme propugnavam as primeiras feministas, ao direito ao voto, conforme a luta das sufragistas. As liberdades civis, o acesso a posses independente da tutela do homem. Direitos trabalhistas. Autonomia legal. O divórcio. E o mais elementar de todos os direitos, o direito ao próprio corpo e à capacidade de decidir sobre a maternidade, ou não. Foram e são muitas lutas, passadas e vindouras.

A ideologia patriarcal se impõe naturalizando a opressão, como se essas formas de dominação e desprezo fossem eternas e imutáveis. Compreender e desnaturalizar o patriarcado é fundamental para uma existência igualitária entre os humanos. Não se trata de uma simples peleja entre homem e mulher, mas de um desafio fundamental para a superação das opressões e a edificação de uma vida emancipada, para todos, todas e todes. Se libertar do patriarcado é libertar a humanidade.

Durante a pandemia eu resolvi estudar esse tema, por estar em casa sem poder sair, eu e minha companheira. De leituras inicialmente diletantes, escrevi essa série de artigos, que também deram base para a série de podcasts que produzimos pelo Instituto Casa Comum, a Musicada História, apresentada pelo amigo André Mastro. Publicar os artigos agora, tem, para mim, o sentido de jogar sementes ao vento, desesconder histórias, algumas que só fui conhecer durante a pesquisa, e instigar para que outras e outros peguem essas sementinhas e as difundam ainda mais.

Ter sido criado por mãe solo e avó, também me ajudou nesse interesse, a elas, já falecidas, dedico essa escrita. Aqui apresentei uma parte ínfima parte das muitas histórias escondidas sobre as valorosas mulheres desse nosso vasto país. Graças à luta feminina essas histórias começam a aparecer e começam a ser contadas. Des-esconder histórias é o primeiro passo para o desmonte da estrutura de dominação que oprime a maioria, homens inclusive. Que muitas meninas e meninos conheçam essas histórias.

E muitas outras histórias de mulheres poderiam ser contadas por aqui. Essas mesmas, ainda há muito a contar sobre elas. Outras, que ainda serão contadas, entrelaçando histórias de homens e mulheres. Tantas histórias sem fim, escondidas lá no fundo de nosso baú de memória. Histórias das mulheres do Brasil e do mundo.

Para escrever esse artigo utilizei por referência os livros A CRIAÇÃO DO PATRIARCADO – História da Opressão das mulheres pelos homens, de Gerda Lerner, e Mulheres que correm com lobos, de Clarissa Pinkola Estés.

Quem quiser escutar essa história acompanhada de música poderá ouvir o podcast no canal do Instituto Casa Comum no Spotify: