Feministas no século XIX
Mulheres com nível superior completo já são maioria no país
Durante a pandemia de Covid, fechado em casa apenas com Silvana, minha companheira, por sugestão dela, fiz um plano de estudos para conhecer mais a fundo a história da formação do patriarcado. Em dias de reclusão, fui realizando minhas leituras e pesquisa, sobretudo a partir de literatura feminina. Com isso, histórias e referências que eu conhecia superficialmente, mesmo sendo historiador, foram se desvelando. Outras, passei a conhecer a partir daquele momento. Histórias escondidas, silenciadas, das mulheres do Brasil. São muitas!
Nessa série eu apresento apenas algumas histórias em forma de pequenos artigos, como retribuição do que fui conhecendo. Histórias de mulheres extraordinárias. Que sirvam de estímulo para o aprofundamento e novas descobertas. Cada qual daria roteiro para filmes ou séries, livros, exposições em Museus, aulas. No quinto e último artigo, escrevo sobre as origens do patriarcado. O patriarcado é a primeira de todas as opressões, foi quando surgiu a ideia de posse e exploração, primeiro dos homens sobre as mulheres. Depois, dos homens dominantes sobre os demais homens e mulheres. E dos humanos sobre os demais seres da natureza. Apesar dessa dominância, as mulheres fizeram e fazem história, conhecer essas histórias é o primeiro passo para superar a exploração e superar o patriarcado. E superar o patriarcado é libertar a humanidade. Por isso, é tarefa de todas, de todos e de todes.
Espero que apreciem as histórias. Grato!
Célio Turino
Mulheres do Brasil: feministas no século XIX
Dionísia Gonçalves Pinto, ou Nísia Floresta, escritora, tradutora, educadora feminista, nascida em 1810, a primeira feminista brasileira. Desde jovem se rebelou contra o destino que a sociedade patriarcal lhe havia reservado.
Tendo sido obrigada a se casar aos treze anos com um rico proprietário de terras, um ano depois abandona o marido e vai viver com um estudante de direito, Manoel Rocha, com quem tem dois filhos. Perseguidos pelo antigo marido, mudam-se do Rio Grande do Norte, sua província de nascimento, para Pernambuco e depois Rio Grande do Sul. Todavia, seu companheiro morre dois anos após chegarem ao sul do país. A jovem mulher Dionísia tem que sustentar sozinha os seus filhos em uma época que praticamente não havia trabalho formal para mulheres. Ela tinha 17 anos.
Dionísia consegue emprego como preceptora (educadora) de moças de famílias ricas. Anos depois muda-se para o Rio de Janeiro e funda a primeira escola para meninas que, além de educação para o lar e trabalhos manuais para mulheres, também ensinava gramática, francês, matemática, ciências, história e geografia. E participa da criação do primeiro jornal para mulheres, Espelho das Brasileiras.
Foi ela quem traduziu a obra Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens, da feminista britânica Mary Wollstonecraft, precursora do feminismo, ainda no século XVIII, que foi mãe de Mary Shelley, autora da obra Frankenstein. É quando Dionísia passa a assinar como Nísia Floresta Brasileira Augusta (lindo nome!). Entre os pensamentos de Nísia, algumas frases:
“Flutuando como barco sem rumo ao sabor do vento neste mar borrascoso que se chama mundo, a mulher foi até aqui conduzida segundo o egoísmo, o interesse pessoal, predominante nos homens de todas as nações.”
E propugnava:
“A esperança de que, nas gerações futuras do Brasil, a mulher assumirá a posição que lhe compete”
Nísia defendia o direito de as mulheres assumirem as mesmas profissões dos homens, direito à participação na política, podendo votar e ser votada, igualdade entre os sexos, libertação dos escravizados, liberdade de culto e sistema republicano. Foi uma grande conferencista e autora de diversos livros, como Conselhos à minha filha e A lágrima de um Caeté. Ao final da década de 1840 ela viaja para a Europa, mantendo intensa atividade intelectual, incluindo a série de artigos “A emancipação da mulher”. Nísia morre na França, em 1885, e seus restos mortais foram transladados para o Brasil. Desde 1948, Nísia Floresta é o nome do município em cujo povoado ela nasceu, no Rio Grande do Norte. Que a memória dessa primeira feminista brasileira não seja apagada.
Nos tempos da Monarquia, sempre que eram apresentadas propostas no sentido da emancipação feminina, senadores e deputados, todos homens, negavam o alargamento de direitos às mulheres, a começar pela educação, que era diferenciada para meninos e meninas. Ao máximo admitiam algumas concessões para que pudessem melhor servir aos homens. Em debate no Senado do Império, o senador Visconde de Cayru afirmou:
“O uso de razão é mui pouco desenvolvido para poderem aprender e praticar operações ulteriores e mais difíceis de aritmética e geometria […] e vão lutar contra a natureza!”
No que retrucou outro senador, Marquês de Caravelas, aparentemente mais condescendente:
“o que importa é que elas sejam bem instruídas na economia da casa, para que o marido não se veja obrigado a entrar nos arranjos domésticos, distraindo-se dos seus negócios.”
A partir desse debate, desde 1827, a legislação brasileira reservava currículo diferente para meninos e meninas, sobretudo na Matemática, em que as meninas não poderiam aprender nada além das quatro operações básicas. Como argumento definitivo alegavam ausência de professoras que pudessem ensinar matemática mais complexa às meninas.
Mas, se às meninas era vedado o acesso a maiores conhecimentos, como seriam formadas as professoras?
“Se formos nesse andar, não causará admiração de que também se requeira que as mulheres possam ir estudar nas universidades, para termos grande número de doutoras”. Alegava indignado, o senador Visconde de Cayru.
Passados quase duzentos anos desse debate, em 2019, enquanto 15,1% dos homens com idade superior a 25 anos tinham diploma universitário, a quantidade de mulheres com nível superior completo já estava em 19,4% e já são maioria no país. Também no dia 3 de maio de 2022, pela primeira vez em 105 anos de existência da Academia Brasileira de Ciências, uma cientista mulher é eleita para a presidência da Instituição, Helena Nader. Com brilhante atuação científica, a doutora Helena Nader publicou mais de 380 artigos nas mais prestigiadas revistas científicas do Brasil e do mundo, foi presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e é copresidente da Rede Interamericana de Academias de Ciências, tendo recebido as mais importantes distinções acadêmicas. Na posse, ela declarou:
“A sociedade brasileira que acredito é aquela que não mata sonhos e não aniquila a existência de ninguém, seja pela sua cor, sua raça, sexualidade, gênero ou crença.”
Para que as mulheres alcançassem um “grande número de doutoras”, como temia o Senador Visconde de Cayru, foi necessária a decidida atuação de mulheres feministas, que no século XIX e início do XX tinham a clara convicção de que a emancipação social, e particularmente das mulheres, só seria alcançada pelo acesso igualitário à educação. Mulheres como a educadora, escritora e jornalista Francisca Senhorinha da Motta Diniz. Já ouviram falar dela? (eu só a conheci quando da pesquisa para esse texto). Grande feminista nos tempos da monarquia e início da república.
Francisca Senhorinha fundou o jornal “O sexo Feminino“, direcionado à emancipação feminina. Para a época o jornal contava com a considerável circulação de 4.000 exemplares e tratava de temas polêmicos, como a divulgação do movimento feminista na Europa e Estados Unidos, defesa do voto para as mulheres, a abolição da escravatura e da pena de morte, além de questionar a prática do dote que os pais das noivas teriam que doar aos futuros maridos delas. O jornal obteve grande influência, sendo lido, inclusive, pelo Imperador Pedro II e sua filha, Princesa Isabel.
Além de “O sexo feminino”, Francisca Senhorinha criou e dirigiu diversos jornais e periódicos, foi uma grande educadora e defensora da educação pública de qualidade, em especial para as meninas, então privadas de parte do currículo em matemática, ciências, história e geografia, reservados apenas para os meninos.
Entre os escritos dela:
“Derrame-se a instrução pela população desse vasto Império […] Incuta-se no povo o amor à leitura; eduque-se a juventude de ambos os sexos; preparem-se as mulheres para dignas esposas, e ver-se-ão a ignorância, o fanatismo e a superstição, estes três inimigos piores que a peste a fome e a guerra, desaparecerem da face da Terra, batidos e combatidos pela ciência, ficando a humanidade aliviada do peso daquela trindade infernal.”
Fosse melhor ouvida a voz de Senhorinha, o Brasil de hoje não estaria vivendo tempos de tamanha regressão civilizatória e negacionismo da ciência.
E Chiquinha Gonzaga. Ela abriu alas, com chorinho, operetas, polca brasileira, maxixe, marchinhas de carnaval, valsas, tango… Uma mulher que marcou a música brasileira no final do século XIX e início do século XX. Foi nossa primeira maestrina e deu o tom! Enfrentou a sociedade patriarcal e conservadora do Brasil dos tempos do Império. Mulher mestiça, filha de escravizada com militar do Império, compôs a primeira música aos 11 anos de idade, a Canção dos Pastores.
Obrigada a casar aos 16 anos, com um homem dez anos mais velho, com quem teve três filhos. Ainda jovem, decide se separar do marido, que tinha ciúme do piano que ela tocava e que a reprimia em tudo que não fosse o cuidado com os filhos e o lar. Difamada como adúltera, enfrentou anos um processo de divórcio movido pelo companheiro, que a proibiu de ficar com os dois filhos mais novos, liberando a guarda apenas do mais velho, João Gualberto. Chiquinha não se abalou e ultrapassou os espaços reservados para as mulheres à época. Ela participa de rodas de choro e compõe, sustentando-se através do seu trabalho com a música. Seu primeiro sucesso foi “Atraente”, cuja partitura era vendida nas ruas.
Mulher nacionalista, pioneira na música popular brasileira, dava nomes indígenas às suas composições: Timbira, Tamoio, Tupi, Tupã, Ary, Caibimpará… Também abraçou com afinco a causa da Abolição. Quando o violão ainda era considerado um instrumento musical de valor menor, regeu um recital de violões no Teatro Imperial São Pedro, em 1889. Ao final do Império ela já era referenciada como Maestrina, termo que passou a existir a partir dela, pois não havia palavra feminina para maestro.
Chiquinha abriu alas com suas atitudes pessoais, casou-se e separou-se de dois maridos. Aos 52 anos de idade, em viagem à Europa, casa-se novamente, com um jovem português trinta e cinco anos mais jovem que ela, permanecendo com ele até o final da vida. Chiquinha abriu alas na defesa de causas sociais e libertárias. Foi pioneira na defesa da música popular brasileira e na defesa dos direitos autorais de compositores e autores, havendo fundado o SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais).
Sua vida foi um Forrobodó, como no título de seu maior sucesso teatral. Forrobodó também no Palácio do Catete, gerando um escândalo à época, não por ela, mas por outra mulher que merece ter sua história melhor contada, outra mulher à frente de seu tempo, a caricaturista Dona Nair de Teffé, então esposa do presidente Hermes da Fonseca. Em 1914, Nair de Teffé decide levar a música popular brasileira ao palácio presidencial e toca, ela mesma, em violão, considerado um instrumento menor, a música Corta-Jaca, de Chiquinha, gerando muitos protestos e artigos escandalizados com a ousadia da Primeira-Dama.
De geração em geração, as mulheres foram conquistando seu lugar. Se atiraram e tentaram outras cem vezes. E continuam tentando, alargando e ampliando o lugar de respeito que merecem, na vida privada e na esfera pública, no acesso à educação e nos direitos da cidadania. Em um texto de 1919, intitulado “Em que consiste o feminismo?”, Bertha Lutz, sintetizou o pensamento das primeiras feministas brasileiras:
“O feminismo não procura, é claro, negar as diferenças psicológicas e fisiológicas entre o homem e a mulher e reconhece a influência sobre as que, sendo verdadeiramente irredutíveis, devam ter relações individuais e sociais. Não acredita, porém, que elas indiquem superioridade, de um lado, inferioridade, de outro, e assim entende que apenas devem ser consideradas nos casos em que de fato tenham importância, podendo ser deixadas de lado em outros casos nos quais seu papel é insignificante, ou mesmo nulo”
Essas foram as feministas que abriram alas no século XIX. Registro que muito me auxiliou a leitura do livro Lute como uma garota – 60 feministas que mudaram o mundo, de Laura Barcella e Fernanda Lopes. No próximo artigo escreverei sobre as Sufragistas brasileiras e sua luta pela conquista do voto feminino.
Quem quiser escutar essa história acompanhada de música poderá ouvir o podcast no canal do Instituto Casa Comum no Spotify: