De braços dados com a alegria
Crônicas de um carnaval em Salvador
Por Marielle Ramires e Clayton Nobre
Por Marielle Ramires
Cinco dias intensos de carnaval mergulhados na pipoca de Salvador. Meio a dança de corpos livres na multidão, o Brasil vive seu momento de cura e de reencontro com a alegria. Em nossa missão foliã, percorremos os três circuitos oficiais de Salvador, livres das cordas, mas diante delas.
Assim começamos nossa jornada, no circuito Dodô, entre as orlas da Barra-Ondina. O nome é uma homenagem a um dos criadores do trio elétrico e da guitarra baiana, parceiro de Osmar, que deu nome a outro circuito, do Campo Grande, hoje o principal endereço do carnaval da capital baiana.
Na sexta (17/02), nosso primeiro dia, nos deparamos com o templo sagrado do carnaval, o Expresso 2222. Território de Gil e local de saída oficial dos trios elétricos no Circuito Dodô. Ali vimos Léo Santana hitar, Daniela Mercury emocionar, Brown embalar e Anitta e Pabllo Vittar arrebatar. E sentimos pela primeira vez o peso da corda, que separa os abadás da pipoca. Os preços variam de trio e dia, vão de R$ 600 a quase R$ 2.000 a diária.
Na prática, as cordas mais se assemelham aos chicotes que ameaçam a pele. Por vezes ouvimos: “Cuidado com a corda, ela tá vindo”. E assim o fizemos. Se ela se encostasse, sem exageros, dá-lhe chicote. Há quem defenda o fim das cordas, como o caso de Maria Marighella, vereadora de Salvador e hoje presidente da Funarte. Ela pede um modelo de Carnaval sem segregação. “Nós não podemos tolerar que o espaço da rua, espaço tão nosso e coletivo, seja um espaço de partes”, disse ao Bahia Notícias.
Na ladeira do Curuzu, o Ilê abriu seus trabalhos em celebração ao centenário de Agostinho Neto: O Herói da Independência de Angola. Na subida abarrotada de gente, a dança dos corpos mais uma vez se fez presente. Dessa vez, na cadência da multidão subindo a ladeira. Ali entramos em transe com a dança dos passos que iam e vinham, semelhantes às ondas do mar.
Depois de embalada na multidão, só havia um destino possível e era junto ao Ilê. Andei de olhos fechados por vezes, ouvindo os cantos da comunidade negra presente em celebração. E esmagada lado a lado, imaginava a vinda dos navios negreiros abarrotados como nós. Claro que agora era carnaval e o gosto era de liberdade.
Assim mergulhamos também nas ruas do Pelourinho, esse espaço sagrado de memória. Marchamos com os filhos de Gandhy, sob ventos da liberdade soprando na cara. Liberdade duramente conquistada pelos filhos, netos e descendentes daqueles que ali foram açoitados. Mas o Gandhy pede paz. E assim, banhada de alfazema, pipoca e canjica seguimos da Praça Castro Alves ao Circuito Osmar, em Campo Grande.
E encontramos os sons dos poderosos tambores do Olodum. Ali a multidão se dissolveu em dança e canto. Os corpos negros em movimento, as danças que lembravam os passos dos capoeiristas, das mulheres negras deusas do orixalado, das divas do trio, dos braços e mãos erguidas flutuando sobre o tempo. Ali todos éramos só vozes e ritmo. Livres, dançantes. Saudando a chegada da estação, do tempo novo que se debruçou sobre nós.
Mesmo a despeito da presença ameaçadora da Política Militar que quando passa, encurva a multidão.
Ali um lampejo irrompeu meu pensamento, se o carnaval tem dono, ele é das pretas e pretos destes ladrilhos daqui.
Por Clayton Nobre
Há quem diga que os bloquinhos de rua são o melhor do carnaval no país. Na manhã de segunda-feira (20), fomos levados a subir mais uma ladeira para encontrar a Mudança do Garcia. A comitiva reunia os blocos de esquerda com os protestos e cartazes das diversas comunidades baianas, mas com bastante irreverência, sorriso no rosto, canto e sopro. Pois não há carnaval se não houver o sopro.
Com 97 anos em Salvador, o bloco caminhou pelo Garcia, chegando junto à chuva ao Circuito Osmar em Campo Grande, vislumbrando um futuro de batalhas e conquistas, sem nem precisar xingar ex-presidente.
Tomados pela gira de Igor Kannário, entramos na maior pipoca do mundo. Pode-se entender o sentido de pipoca na multidão kannariana, que salta feito milho na panela cumprindo tradição no Campo Grande desde 2015, quando o trio do cantor abriu gratuidade. Desta experiência, voltamos à outra pipoca das mais famosas, a Coruja de Ivete, que carregou com carisma e energia seus foliões no seu Dodô gigante, e o Navio Pirata do BaianaSystem, que arrasta multidão com seu sambareggae.
A madrugada também era de Carnaval. O centro da capital baiana, nas imediações da Praça Municipal, poderia representar uma rápida imagem da mistura dos povos foliões de Salvador.
Alguns homens que restaram do desfile dos filhos de Gandhy, com suas cordas e vestes azuis, circulavam junto ao público do reggae baiano de Zabah. Os pequenos trios de samba davam passagem aos jovens que seguiam a performance do Afrobapho – o after da Batekoo começava a pouco metros dali, na Praça Castro Alves.
Subíamos no Lacerda às 0h30, e ali, no primeiro elevador urbano do mundo, talvez pudéssemos ver uma Salvador que se multiplicava sob sua própria multiculturalidade – eram os sambistas da Arena do Samba, mulheres que poderiam ter vindo do Axé Pelô no Largo da Tieta, os ambulantes, as baianas com saia rodada, os jovens da Batekoo e nós, a ponto de nos perguntar quem somos diante daquele baú de representatividades. Quantas culturas cabiam no Elevador Lacerda?
O centro se transformaria em um espaço de valorização das estéticas e culturas pretas, passeando pelos mais diversos ritmos afrodiaspóricos do Brasil como comentou Mauricio Sacramento, da Batekoo, no Mundo Negro. A Praça Castro Alves mostrava um país onde os diferentes conviviam com um mínimo de ética do afeto.
Em um dos momentos mais corriqueiros da noite, porém marcante, Tícia, um dos nomes da cena jovem contemporânea soteropolitana, interrompia seu show para que o trio do afoxé passasse, agradecendo os ancestrais e os caminhos abertos pela música preta baiana. O aquilombamento e o sentimento de comunidade que o carnaval proporciona nos mostram o horizonte do Brasil que queremos. Com Gil, Caetano, e toda baianidade presente.