Alvo de notícia falsa, trabalhadora do sexo manda recado para a primeira-dama
Foto de Lucimara Costa circulou em grupos do WhatsApp com intenção de atingir imagem de Janja da Silva. Não deu certo
Não é de hoje que a direita – a mais e a menos extrema – usam de estratégias misóginas para agredir a mulheres que atuam politicamente na esfera da esquerda. Desde o adesivo no tanque de gasolina que mostrava a ex presidenta Dilma Rousseff de pernas abertas até ataques e ameaças a Manuela D’Ávila e sua filha Laura, temos vivenciado um momento de bastante violência e perseguição a mulheres.
Ultimamente, uma das vítimas mais frequentes, como era de se esperar, é a primeira dama Rosângela Lula da Silva, a Janja. Dentre tantas outras fake news envolvendo Janja, talvez a mais recente seja uma série de posts nas redes sociais acusando-a de ter sido fotografada de lingerie vermelha no dia da posse, portando cartazes em defesa da prostituição. Uma “acusação” que não leva em conta o fato de ser impossível para Janja estar em dois lugares ao mesmo tempo: as fotos foram tiradas no dia 1° de janeiro, dia da posse do presidente Lula.
A extrema direita, ao associar Janja à prostituição, tem como objetivo manchar sua imagem, coisa que só é possível por conta do forte estigma que vivem as profissionais em nossa sociedade. Nós aqui perguntamos: seria um problema Janja defender direitos para profissionais do sexo?
Nas fotos compartilhadas mais de 3 mil vezes desde o início do ano, quem aparece não é Janja mas Lucimara Costta, trabalhadora sexual e ativista ligada à APROSMIG – Associação de Prostitutas de Minas Gerais. Lucimara, que concorreu a vereadora em Ouro Preto em 2020 pelo PC do B, hoje é filiada ao PT e nos concedeu essa breve entrevista, onde falamos sobre política, feminismo e fake news.
Vem conhecer melhor a Lucimara com a gente!
Li que você é de origem muito humilde, nascida e criada em Ouro Preto. Tem alguma lembrança de sua infância que você queira nos contar?
Moramos de aluguel por muitos anos, passávamos necessidades, comi macarrão branco muitas vezes nesse tempo. Aos 7 anos, fui abusada sexualmente, e isso ficou na minha memória.
Você é formada em análises clínicas. Já consegue atuar em sua área ou o preconceito atrapalha na hora da contratação?
Eu comecei a trabalhar na área da saúde como auxiliar de farmácia, foi o PT que me ajudou mas foram 15 anos lutando para ter um emprego, e ainda não trabalho exatamente na minha área de formação.
Você é uma trabalhadora sexual assumida há algum tempo já. Quais são os prós e contras de se assumir?
Lucimara Costta: Ser assumida numa cidade hipócrita como a minha é difícil. Eu moro e trabalho em Ouro Preto, anuncio pelo site aqui. Passei por muitas dificuldades, perdi muitos clientes. Em Belo Horizonte, por ser uma cidade grande, os homens preferem as mais famosas, mas em Ouro Preto, quanto mais discreta a profissional for, melhor. Recebo muitos ataques de bolsonaristas mas muitos elogios das pessoas de esquerda, pela minha coragem e disposição. Como não moro de aluguel, decidi estudar inglês, comecei a trabalhar na área da saúde para ter mais tempo para me dedicar ao curso de inglês, por que é uma escolha: ou eu estudo Inglês ou eu trabalho viajando, cursar Inglês somente para ter um certificado eu não quero, quero ser fluente em Inglês. Sou ativista, técnica em Análises Clínicas, fui candidata a vereadora e sou digital influencer.
Você diz que nunca aceitou a miséria na vida. Isso influenciou na sua escolha laboral?
Eu nasci pobre. Quando adolescente, ganhava muitos presentes em troca de sexo e fui me acostumando a isso. Completei 18 anos, comecei a procurar emprego e não encontrava nada. Sofria muita pressão dentro de casa para trabalhar, discutia muito com minha mãe por causa da minha rebeldia, as coisas chegaram a um ponto em que ela me expulsou de casa. Como eu não tinha lugar para ficar, fui morar na zona boêmia de Belo Horizonte. Mais tarde, construí nossa casa através da prostituição, ajudei minha mãe a sair do aluguel.
O que significa a prostituição pra ti?
Prostituição é uma profissão como outra qualquer, com ônus e bônus. Não é fácil ser prostituta, não é só glamour. Tem os abusos perpetrados por clientes, alguns acreditam que por estarem pagando uma merreca qualquer podem fazer o que quiserem com a gente. Onde há demanda, há procura ou onde há oferta, há procura. A sociedade que nos condena é a mesma que nos alimenta.
Você atuou no trabalho sexual em vários nichos, e hoje atua também como criadora de conteúdo. Que diferença você vê entre o sobe e desce da região da Guaicurus e o trabalho através de sites de anúncios? Você considera que há menos preconceito em relação a quem vende conteúdo do que em relação a quem se prostitui de modo mais precário como nas esquinas ou mesmo no sobe e desce?
No sobe e desce, tem homens de todos os jeitos: cheirosos, fétidos, carinhosos, agressivos. Até mendigos frequentam o sobe e desce. Aceitamos, até por que temos a diária para pagar, então, não podemos escolher. Já o público dos sites é mais seletivo, os homens tem uma condição financeira melhor, aí já tenho um pouco mais de liberdade e atendo quando eu quiser. Atualmente, faço conteúdo adulto (vídeos) para complementar a renda.
Como isso surgiu a ideia de vender conteúdo na tua vida? Teve a ver com a pandemia ou você já fazia antes? Você vê vantagens em ser criadora de conteúdo? Pretende trocar o atendimento presencial pelo virtual?
Acredito que o preconceito sempre existe, se você nasceu mulher vai sofrer algum tipo de preconceito, até mesmo vindo de outras mulheres. Mas eu acredito que vender conteúdos é muito mais seguro em todos os sentidos. Acredito que foi a pandemia que me levou para o lado dos conteúdos, homens sempre me pediram nudes e achei uma forma de ganhar dinheiro com isso. Vender conteúdos também é mais seguro, fisicamente falando.
Durante a pandemia, a APROSMIG fez uma campanha pela vacinação prioritária para as prostitutas, por conta de a prostituição ser considerada por vocês também um trabalho essencial. Você foi uma das principais articuladoras e agitadoras dessa campanha. Obtiveram algum resultado, foram ouvidas pelo poder público?
Tivemos uma repercussão muito grande ao pedir prioridade para as profissionais do sexo na vacinação. Assim que participamos da manifestação, já surtiu efeito. Agradeço a Deus todos os dias por me dar coragem, força e disposição para lutar pelos menos favorecidos. Nós, seres humanos, nascemos para ajudar uns aos outros. A árvore não come seu próprio fruto, a água não bebe sua própria água, nascemos para servir. Todos os candidatos que apoiei, tanto para prefeito quanto deputados e presidente, ganharam as eleições. Depois, você dá uma pesquisada: apoiei o atual prefeito de Ouro Preto nas eleições de 2020 e ele venceu as eleições, apoiei os deputados Leleco e Miguel Angelo, eles ganharam as eleições, e apoiei o presidente Lula, ele ganhou as eleições.
Há quanto tempo você faz parte da APROSMIG?
Indiretamente, eu já fazia parte da APROSMIG desde 2008. Quando eu vacinava, pegava preservativo e tal, em 2014 eu já pegava a carteirinha. Me assumi prostituta desde que saí de casa, aliás, foi um ex meu que contou para minha mãe que eu me prostituía. Fiquei com raiva dele mas ao mesmo tempo, foi um alívio, a partir daí passei a me assumir.
Você foi candidata a vereadora pelo PC do B em Ouro Preto na última eleição. Quais eram suas pautas? Como você percebeu esse talento para a política?
Lucimara Costta: Quando fui candidata pelo PC do B, minhas pautas giravam em torno da defesa das mulheres, mas eu não sabia me expressar, eu não sabia nada sobre política, só atacava o ex prefeito, porque eu via todos ao meu redor sofrendo tanto pela saúde quanto pela falta de água. Perdi as eleições, mas o amor pela minha cidade e a minha popularidade foram crescendo. A partir daí, comecei a participar de várias manifestações: Fora Bolsonaro, vacinação prioritária para prostitutas, Fora Saneouro… Hoje, a política está em mim. Algumas vezes, eu aplico o que eu aprendi nos livros. Outras, peço conselho. Quem me convidou a me candidatar a vereadora foi a Débora Queiroz, filiada ao PC do B, que me viu postando a carteirinha da APROSMIG. A partir daí, entrei na política e nunca mais saí. Eu sei que eu posso fazer a diferença e colaborar para um mundo melhor.
Você pratica dança do ventre? Quais as vantagens da prática para a sua saúde e profissão?
Atualmente, não pratico mais dança do ventre, só faço musculação. A dança do ventre é uma dança super feminina, sensual, sexy, serve tanto para apimentar a relação como para aumentar a auto estima. A indumentária é linda, os movimentos são super lindos, eu indico a dança do ventre como um modo de vida. Já me apresentei algumas vezes e tenho alguns certificados de dança do ventre.
Como a tua família encara o teu trabalho? Foi uma decisão tranquila contar? Como estão encarando esse momento de fama inusitado?
Como eu disse acima, o responsável de contar sobre minha profissão para minha mãe foi um ex. Já meu pai soube por um vídeo meu, da época da minha candidatura a vereadora, onde eu falava que os homens queriam votar em mim em troca de sexo. Essa fama inusitada minha mãe leva naturalmente (risos), ela me chama de doida.
O calor estava intenso, e ir à posse de Lula de biquíni foi uma decisão acertadíssima. Agora, como surgiu a ideia dos cartazes?
A Cida Vieira, presidente da APROSMIG tinha me chamado pra ir na posse do Lula. Não contei pra ninguém daqui de Ouro Preto que eu iria, depois falei pra duas pessoas. Três dias antes, eu procurei um ônibus que saísse daqui, porque imaginei que seria cansativo, porque a APROSMIG é em BH e eu moro em Ouro Preto. Dois dias antes, a Cida me disse que não iria mais porque encontraram mais bombas lá em Brasília, e que as meninas da APROSMIG também não iriam mais. Eu disse a ela: “Pode deixar, Cida, que eu vou e represento todas nós”. Confesso que eu estava com medo, mas pensei: é uma oportunidade única, estarão representantes do Brasil e do mundo lá, eu vou fazer um cartaz. Fiz o cartaz dois dias antes com a frase e mostrei pra Cida. Pensei, ficarei de lingerie.
Tentei subir no palco mas estava cheio, fila imensa pra tudo, eu estava com fome e cansada, pensei comigo: “E agora o que eu vou fazer? O pessoal sumiu, vou tirar a roupa aqui, ficar só de lingerie e pedir alguém pra me filmar.” A primeira pessoa que me filmou foi um cara que eu nem conheço, já as fotos foi o Maneco que tirou. o conheci lá. No trajeto, o pessoal falava que eu parecia com a Janja e pediam para tirar foto comigo.
Assim que eu postei as fotos e vídeos nas redes sociais, os bolsonaristas já compartilharam dizendo que eu parecia com a Janja, eu consegui chamar atenção da família Bolsonaro
Qual a tua avaliação sobre os rumos e desafios do movimento brasileiro de prostitutas nesse novo momento político, com Lula eleito pela primeira vez depois de anos de perseguição política?
O Lula é um ser humano que passou por muitas dificuldades, ele é um homem de luta igual a nós, ele olha por todos nós.
O Governo Lula pretende ser um governo com ampla participação dos movimentos sociais. Você considera que o movimento de prostitutas, atuante no Brasil há mais de três décadas, tem chances de realmente ser ouvido e atuar de modo direto na construção de políticas públicas para a categoria? Que políticas públicas você considera importantes para o segmento?
Lucimara Costta: O movimento de prostitutas terá mais visibilidade agora, porque até então no governo Bolsonaro éramos odiadas. Acredito que com toda essa repercussão e confusão de ser comparada com a Janja, dei mais voz à nossa luta. Se o Lula não conseguir fazer políticas públicas para as putas, nós conseguimos. Uma puta vale por 100 grupos políticos, somos guerreiras, corajosas, ousadas.
Você considera seu corpo um instrumento político – no sentido de impor sua existência e das outras, e de desafiar imaginários e certezas da sociedade a respeito da prostituição?
Eu considero meu corpo político, eu tenho voz não só na prostituição, mas na minha cidade também.
Você realmente é parecida com a nossa primeira dama Janja, o que levou várias páginas bolsonaristas a usar tua imagem para atacá-la, lançando fake news sobre Janja ter sido vista de biquíni defendendo a prostituição, O tema gera polêmicas. Na direita, temos a violência das fake news, tratando os direitos das prostitutas como algo que deporia contra a nossa primeira dama caso os defendesse.
Mas na esquerda, temos as feministas autodenominadas radicais, abertamente antitrans (a ver os ataques intensos que a ministra da saúde sofreu na página do Ministério no Facebook por conta de uma reunião com a ANTRA) e contra a luta por direitos das trabalhadoras sexuais. Como você acredita que Janja se posicionaria a nosso respeito?
Primeiramente, tenho muito orgulho em me parecer com a nossa primeira dama. Acredito que ela olharia pra nossa luta com mais amor, ela é uma mulher mente aberta, anos luz à frente de muitas pessoas.
Deixa um recadinho pra Janja…
Janja maravilhosa, a cada dia eu tenho mais orgulho de parecer com você, essa moça aguerrida, de fibra, não tenho palavras pra descrever essa mulher maravilhosa que você é, sou sua fã.
E uma mensagem de apoio às outras puta ativistas!
Para as putas ativistas, corram sempre atrás dos seus sonhos.
Há dentro do feminismo algumas vertentes que rejeitam o protagonismo e a luta por direitos das trabalhadoras sexuais. Você se considera uma feminista? Por quê?
Eu me considero uma puta feminista que luto por todas as mulheres e que eu sei que o que eu fiz em BRASÍLIA é algo revolucionário.
Você é a favor da regulamentação da atividade?
Lucimara Costta: Se regulamentar a profissão, pagaremos impostos sobre nosso trabalho e só vai melhorar para os cafetões, que terão direito ao nosso corpo. Eu só faço manifestação para acabar com essa discriminação, esse preconceito que as próprias prostitutas têm contra elas mesmas.
A atividade consta da CBO desde 2002, sob o número 5198/05. Você contribui para o INSS como profissional do sexo? Há quanto tempo?
Não pago INSS.
Você já leu o PL Gabriela Leite, sabe o que ele propõe exatamente?
Não tenho participado desses movimentos das prostitutas, por que não estou viajando a trabalho, estou parada na minha cidade, onde sou a única prostituta que participa de manifestações. Eu vejo e sinto o preconceito vindo das próprias prostitutas. Agora, regulamentar como seria, ganharíamos comissão apenas? Teríamos que dividir com cafetões? Estou por fora deste assunto, apesar de ter trabalhado no sobe e desce, depois passei a trabalhar pra mim. Tipo: se eu trabalho, recebo. Se eu não trabalho, não recebo. A parte boa de regulamentar é que se as prostitutas ficam doentes, tem a quem recorrer. A parte ruim é que metade do imposto vai para o Governo.
O PL Gabriela Leite visa principalmente legalizar as casas, o que é muito importante (e isso tira os sites onde a gente anuncia da informalidade também). Escrevi um capítulo sobre o tema no meu livro, uma análise rápida. De qualquer modo, este PL foi definitivamente arquivado, nâo irá à votação. Neste momento, o movimento tem se reunido para debater outro modelo.
Agora, a diária dos hotéis na Guaicurus é muito alta, né? Eu não consegui me adaptar, trabalhei tipo uma semana lá e desisti…
Altíssima, fora que é muito estressante. Às vezes, você se arruma todinha, fica linda, maravilhosa, passa maquiagem, passa batom, o melhor salto, o cara te desvaloriza totalmente. Olha, eu construí a minha casa com o dinheiro do sobe e desce, eu tinha 18 anos, tinha pique, tinha paciência, nossa! Era um mudo diferente pra mim, para e pensa: você, do nada, sai de casa sem dinheiro, sem nada, comia macarrão branco, morava de aluguel, às vezes tinha vontade de comer uma coisa diferente e não tinha dinheiro, e do nada você começa a ter dinheiro.. 100, 200, aí começa a saber fazer dinheiro, aí passa a ter 400, 500 reais por dia, às vezes até mil… por que naquela época, eu já ganhei mil reais, aí você não quer parar. Já ganhei, já fiz muito dinheiro ali no sobe e desce, fiz a minha casa, minha casa não é uma mansão mas é uma casa confortável para mim, só que de uns tempos pra cá ficou muito desgastante.
O movimento compensa mas é bem cansativo.
Mas eu continuo no site Fatal Model sábado e domingo, e todos os dias no Privacy. Às vezes, eu divulgo o Privacy, a melhor forma de vender é não mostrar que está vendendo. Mas mesmo mudando de profissão, lutarei por nós. Por que eu não esqueço de onde vim e pra onde vou.