Por João Marcos Albuquerque

O western como gênero se consagrou em Hollywood ao criar um velho oeste mítico, onde a figura do herói, encarnada pelo xerife ou pelo cowboy – homem, branco e hétero – luta nas pradarias, montado em seu cavalo e munido de sua moralidade austera, contra os bandidos “fora-da-lei” mas, também, contra os indígenas – estes seres pagãos, vistos como selvagens, animalizados, destituídos de racionalidade e, portanto, de qualquer senso moral. Mas o que denota o termo indígena, para além da ideologia colonizadora dos westerns clássicos? O termo denota aquele que é nativo ao território. O termo é, também, o antônimo de alienígena. Veja bem: indígena e alienígena são termos opostos.

O western tradicional espelha, portanto, a ideologia dominante da modernidade colonizadora, onde o indígena é visto como o selvagem, como um estrangeiro/externo ao padrão da modernidade, cujo modelo é o homem hétero, branco, cristão, civilizado, colonizador, europeu ou descendente de europeu – o herói da maioria dos filmes de faroeste. Pois bem.

Já de cara Jordan Peele povoa o território e o imaginário western com negros no protagonismo, dando destaque também ao empresário descendente de asiáticos (Steven Yeun), tal como feito recentemente pela diretora Kelly Reichardt, em First Cow, ao escalar Orion Lee, ator nascido em Hong Kong, para interpretar um indivíduo asiático em plena “Marcha para o Oeste”. Ao posicionar estas figuras pouco associadas ao imaginário do oeste americano no núcleo da obra, Jordan Peele se coloca contra o aparato mítico que criou o velho oeste como local privilegiado dos heróis brancos. Peele mostra como os negros, apesar de negados e excluídos das narrativas, sejam elas oficiais ou ficcionais, são tão construtores da civilização moderna quanto os brancos.

Não há uma construção ou criação realizada em solo estadunidense que não tenha tido o sangue, o suor e a inteligência negra, que Jordan Peele traz à tona na figura do jockey negro, tataravô dos protagonistas do filme, montado com as rédeas nas mãos, naquelas primeiras experimentações que deram origem ao cinema – essa invenção legitimamente moderna, fruto da tecnologia e do avanço científico ocidental.

Mas o cinema não é um construto moderno qualquer. O cinema é um olho. Vemos através do cinema. E vemos aquilo que o cinema quer que vejamos. O cinema nos faz ver e nos dá a ver. E por muito tempo, só vimos as mesmas coisas. Como o próprio Peele disse em uma antiga entrevista, associando os atores brancos com a mesmice, o clichê: “Não me vejo lançando um ator branco como protagonista em um filme meu. Não que eu não goste de atores brancos, mas eu já vi esse filme”.

Por muito tempo, vimos a cristalização dos valores da modernidade encarnadas na tela. Isso disciplinou nossa visão, domesticou nosso olhar. O ato de olhar é um ato político por excelência. Todo e qualquer direcionamento do olhar, dentro do cinema, significa a exclusão do que não se encontra dentro do quadro. O que não aparece na tela não é visto, não é percebido – e está a um passo de não existir, já que ver é crer. O cinema, portanto, como um meio visual, se define como aquilo que nos dá ao olhar, mas também, em contrapartida, como aquilo que delibera e nega o que nos vai ser dado ao olhar.

Em razão dessa deliberação, desse desejo de controlar o que pode ser olhado, que os negros, até hoje, precisam direcionar seus olhares para baixo, fingir que não estão vendo o que está ocorrendo bem à frente, quando diantes de qualquer atrocidade ou injustiça. A prática de olhar para o chão acaba por se tornar um ato de sobrevivência – por isso os personagens de “Não! Não Olhe!” não devem olhar para o alienígena caso desejem sobreviver.

Mas o olhar para o chão é também uma postura desejada pelo supremacista branco. Ao negro é negado sua possibilidade de olhar. É a postura do escravizado perante o senhor, postura de submissão. Mas como não olhar para aquele que extermina seus irmãos e irmãs? Como não olhar para o grande alienígena branco, “esse ser territorialista que acha que aqui é sua casa”? Aliás, essa frase é dita no próprio filme pelo protagonista, numa alusão clara ao significante alienígena como significando colonizador, supremacista branco etc. Afinal, não é o colonizador este ser que invade a terra alheia e a chama de sua? Como já dissemos acima, o termo alienígena é o oposto do termo indígena. A alegoria é evidente – inclusive, quando o alienígena* toma sua forma final, fica impossível não notar sua semelhança com as vestimentas do Ku Klux Klan.

Poder olhar sempre foi um privilégio – o privilégio de ver, enxergar, tornar consciente através da visão, uma das provas mais contundentes para se afirmar o que é verdade e o que é mentira, diferenciar o que aconteceu de fato do que é invenção ou fantasia.

O mesmo se passa com o cinema. Fazer cinema sempre foi um privilégio, pois o cinema, além de emitir um olhar, direciona o olhar do espectador. E por isso “Não! Não Olhe!” é tanto um filme sobre o cinema e seus mecanismos políticos sobre o olhar, como um filme sobre a colonização, escravização e os traumas do racismo e da segregação racial, da submissão do negro que, para se libertar, teve de, primeiro, encarar o “alienígena” no olhar.

João Marcos Albuquerque é crítico e curador de cinema. Criador e responsável pelo Filmes Cuti (@filmescuti), Instagram e site dedicado a crítica e curadoria de cinema alternativo.

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*Outro ponto interessante quanto ao alienígena é sua anatomia não antropomórfica, indo na contramão das representações características dos extraterrestres no cinema. A meu ver, mais um golpe exemplar de Peele às ideologias da modernidade, centradas no antropocentrismo.