Bolsonaro: o presidente-candidato ou o candidato-presidente?
Por Fábio Kerche Publicado originalmente no Jota Bolsonaro está isolado internacionalmente. Por um breve período, seu governo gozou de algum prestígio durante a administração de Trump nos Estados Unidos e do apoio de um ou outro governo autocrático ou francamente autoritário, e nada mais. Se uma imagem vale mil palavras, o vídeo feito pelo excelente […]
Por Fábio Kerche
Publicado originalmente no Jota
Bolsonaro está isolado internacionalmente. Por um breve período, seu governo gozou de algum prestígio durante a administração de Trump nos Estados Unidos e do apoio de um ou outro governo autocrático ou francamente autoritário, e nada mais. Se uma imagem vale mil palavras, o vídeo feito pelo excelente jornalista Jamil Chade em um encontro do G20 em Roma no ano passado vale como uma síntese de todo um governo: Bolsonaro solitário, perdido no meio de líderes internacionais que representavam 80% da economia mundial, naquele mal-estar que todos já sentimos ao participarmos de uma festa na qual não conhecemos ninguém. Passaram-se poucos anos entre o ex-presidente que era “o cara” e o governante que parecia um inseguro adolescente precisando fazer uma prova para a qual ele não se preparou.
Bolsonaro anda buscando reverter alguns entendimentos sobre sua administração. O mais evidente é tentar ganhar algum fôlego junto ao eleitorado feminino usando sua esposa como uma espécie de detergente de biografia após anos de declarações e atitudes misóginas. Segundo as pesquisas, os esforços ainda não foram suficientes para reverter os números francamente desfavoráveis ao ex-deputado que disse que não estupraria uma colega de legislativo porque ela “não merecia”.
Na última semana, o presidente, assim como buscou fazer na questionável viagem para a Rússia às vésperas da guerra daquele país com a Ucrânia, tenta desconstruir a constatação de seu isolamento internacional. Pelo que a imprensa trouxe de notícias, o presidente foi até o velório da Rainha Elisabeth 2ª para conseguir uma foto que registrasse o ex-capitão como um estadista de destaque internacional. Contudo, como o escorpião que pegou carona com o sapo, Bolsonaro estragou com o plano: no lugar de um contido chefe de Estado prestando solidariedade a uma nação amiga, o presidente fez um discurso na sacada da residência do embaixador brasileiro para apoiadores. Jair Bolsonaro levou a disputa eleitoral para o funeral da rainha que ficou mais de sessenta anos à frente da monarquia inglesa. Um vexame.
A consequência é que mais uma vez Bolsonaro coloca a Justiça Eleitoral em uma saia justa. O presidente Bolsonaro não se contém frente ao Bolsonaro candidato. Não há nenhum presidente anterior que tenha disputado a reeleição ao cargo – Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff – que tenha usado a máquina pública sem nenhuma cerimônia como faz o ex-capitão. Embora tenham ocorrido questionamentos em outras eleições, nenhum foi sobre ações com esse grau de desfaçatez.
O desequilíbrio na disputa pela reeleição que é estrutural – e, portanto, inevitável – ganha ares únicos pelas ações do presidente. Há uma dificuldade inerente numa disputa eleitoral em que um dos participantes é o presidente. Chefes de Estado continuam nessa posição mesmo quando tiram uns dias de folga ou quando participam de uma campanha eleitoral. Todo o aparato de assessores, segurança e transporte não podem ser abandonados durante o mandato presidencial. E é um problema para o equilíbrio da disputa, ainda mais quando o presidente não se auto-impõe limites necessários que nem sempre são expressos de forma inequívoca na legislação.
Há leis que buscam traçar uma linha divisória entre as atividades do presidente e as do candidato. O candidato-presidente deve restituir, por exemplo, o erário público com os já referidos gastos que a locomoção e outras garantias que envolvem a segurança de um presidente da República. Bolsonaro, contudo, confunde tantos os papéis que é até difícil fazer cálculos mais ou menos fidedignos das despesas do presidente e do candidato. Bolsonaro declarou ter gastado apenas R$ 29.900 no ato político em que transformou as comemorações do 7 de setembro…
O comício eleitoral, quer dizer, as comemorações do 7 de setembro reforçam os problemas que o TSE tem enfrentado. Bolsonaro sabe que a Justiça Eleitoral não poderá tirar o presidente-candidato da disputa. E não é somente a falta de tempo para que um processo por abuso de poder seja levado a cabo, mas, principalmente, porque não existem condições políticas para se tirar do jogo eleitoral um chefe de Estado que está em segundo lugar nas pesquisas – o que só reforça o quão extraordinário e absurdo foi a retirada daquele que estava em primeiro lugar nas pesquisas em 2018. Bolsonaro também aposta que, em caso de vitória nas eleições, a Justiça Eleitoral não teria coragem de rever a posição de uma maioria eleitoral. O TSE não tomou essa decisão nem para a chapa Dilma-Temer no auge da perda de popularidade da presidente e em torno do quase consenso de que seu mandato deveria ser abreviado. Aliás, também não decidiu pela cassação da chapa Bolsonaro-Mourão, apesar da esperança de muitos de que isso poderia ocorrer. Bolsonaro está colocando o TSE numa posição desconfortável.
A única saída para o ministro Alexandre de Moraes e seus colegas de Tribunal é suspender o uso na campanha eleitoral das imagens geradas pelo presidente para ajudar o candidato Bolsonaro. A campanha de Lula, por sua vez, está contra-atacando, entrando com pedidos para impedir que o ex-capitão use os eventos e viagens pagas com o dinheiro do contribuinte para irrigar as mídias bolsonaristas. A decisão do TSE de proibir o uso das imagens do 7 de setembro na campanha é um gesto necessário e importante, mas obviamente limitado. Até a decisão ser tomada, em tempos de mídias sociais, imprensa online e TV pública a serviço do chefe do Executivo, as imagens já haviam alcançado os eleitores brasileiros e, para nosso constrangimento, os cidadãos do mundo.
A viagem para o velório da rainha na Inglaterra – acompanhada até do cabelereiro da primeira-dama – e para discursar na ONU em Nova York foi paga no âmbito das atividades presidenciais para uma campanha eleitoral. Se isso renderá frutos para o candidato Bolsonaro, só as pesquisas e as urnas dirão. Para a história do presidente, no entanto, é mais um abuso de poder econômico e político para a ficha corrida de Bolsonaro. No momento não há muito que se possa fazer. Mas, no futuro, como ex-presidente, Bolsonaro pode ser chamado a pagar essa conta. O presidente-candidato, portanto, parece que foi para o tudo ou nada.
Fábio Kerche é doutor em Ciência Política pela USP e professor da Unirio. Foi pesquisador visitante na New York University e na American University. Foi pesquisador titular da Fundação Casa de Rui Barbosa e é autor, entre diversas publicações, do livro A Política no Banco dos Réus: a Operação Lava Jato e a erosão da democracia no Brasil, escrito em parceria com Marjorie Marona.