‘Não! Não Olhe’ traz imediatismo e consumismo imagético em roteiro simples e grandioso
Longa de terror tem direção do premiado cineasta estadunidense Jordan Peele
Por Dione Afonso
Da mente magnífica de Jordan Peele, o mesmo que criou Corra! (2017) e Nós (2019), Não! Não Olhe parece compor uma trilogia enigmática que redefine o que é o gênero do terror para o audiovisual. Peele não teme o incomum. Faz do gênero uma condição humana aberta ao desconhecido e ao colorido. O que é geralmente visível é destoado e desconfigurado através de sua lente criadora por trás das câmeras. O novo trabalho do cineasta novaiorquino é simples e grandioso na mesma medida. Uma obra aberta que foca na vida efêmera e numa sociedade focada no consumo falível por imagens, beleza, aparências e perfeição. O resultado disso são os monstros alimentados ao nosso redor. Uma indústria que se ampara nesses valores torna-se uma empresa desumana que cria uma rotatividade de descarte cada vez mais veloz.
Não! Não Olhe é um terror mais que terror. É um drama que ultrapassa as linhas do gênero dramático. É um humor comedido. É um suspense que assusta e nos afaga ao mesmo tempo. É quase tudo em todo mundo. É subjetivo e rico em diversas interpretações. Não é possível classificar a obra de Peele e qualquer definição encerraria uma discussão que pode ser mais abrangente e mais acolhedora das questões e anseios do ser humano. O pano de fundo da narrativa revela uma crítica mordaz à política hollywoodiana a respeito do tratamento e dos contratos realizados com suas estrelas. Atores e atrizes que buscam trabalho condicionados pela beleza externa mais que pela capacidade profissional e valores internos.
As cores e o uso das imagens
Isso, sem mencionar as referências cinematográficas e das animações, Peele colore o medo e satiriza a política da imagem em detrimento de uma sociedade que supervaloriza a beleza perfeita. Sem ar, sem respirar, a vida não é possível. Aberta a inúmeras interpretações, uma das que mencionamos aqui é a diversidade de cores, não só nas roupas com um tom alaranjado forte ou um verde florescente, mas também as cores diversas nos bonecos de posto instalados pelo pasto. Peele metaforiza a vida que, sem o ar, se esvai, com o monstro que busca se alimentar daquilo que o insulta, enfrenta e disputa pelo lugar no mundo.
Mais uma vez vemos uma dicotomia com o que sabemos sobre o tom do horror e o gênero do terror. Se o comum é tudo muito escuro e assustador, Peele põe luz, sol, cores, vento, uma miscelânia de felicidade para depois nos abocanhar com o susto e o suspense. A narrativa parece se desorganizar numa sequência lógica. Primeiro, objetos caem do céu; depois parece que uma nave espacial aparece entre as nuvens; aí vem uma nuvem que não se mexe por meses; do nada, um monstro extraterrestre parece se alimentar da terra; monstros? Popularidade? Oportunidade de vender? Crise hollywoodiana? Abdução? Tudo isso, para Peele, não parece ser relevante se a história não provoca nos personagens uma busca por liberdade e igualdade.
Entre interpretações possíveis, a da “idolatria”
Mesmo tendo um pano de fundo também religioso, quando Peele abre o cinema com uma citação bíblica da profecia de Naum, a idolatria que se segue, para além do versículo bíblico, é a do dinheiro fácil, a do trabalho não muito honesto, a do preconceito racial. Uma das narrativas traz uma cena de um longa sendo produzido em que a protagonista é uma mulher loira e branca e, ao que parece, muito rica. Ao se encontrar com o personagem de Daniel Kaluuya, vemos um constrangimento desumano. O adestrador de cavalos para as cenas do cinema é menosprezado e até a chegada de sua irmã protagonizada pela atriz Keke Palmer, que é o oposto do irmão, também não causa boa impressão, ao ser negra e lésbica.
A idolatria que nos acompanha, e que Peele, insiste em mostrar, é a do próprio ser humano que busca uma perfeição ao extremo em que uma sociedade só se faz de brancos, héteros e ricos. O que sai dessa classificação não é digno de humano. É duro afirmar tal teoria, mas é uma interpretação entre as várias que se pode tirar de Não! Não Olhe. Não olhe para as efemeridades da vida. Quase tudo vem e passa. O essencial que fica é a alegria, a felicidade, a amizade, o amor. O personagem de Brandon Perea, o Angel, é um respiro agradável, carismático e gentil na narrativa. Um jovem sem ambição, que busca, nada mais, que uma vida simples, mas bem vivida.