Pela diversidade da vida: o grito de paz é contra a guerra química e a política da fome
Em mais uma rodada de audiências do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) em Defesa dos Territórios do Cerrado, agora no eixo de Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade, os povos do Cerrado clamaram pela vida, em sua diversidade de modos de expressão e cultura.
Por Naiara A. Bittencourt*
Em mais uma rodada de audiências do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) em Defesa dos Territórios do Cerrado, agora no eixo de Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade, os povos do Cerrado clamaram pela vida, em sua diversidade de modos de expressão e cultura.
Reconhecendo o Tribunal Popular como potencialidade “de afirmação dos direitos dos povos expostos a violações graves e sistemáticas por parte dos atores públicos e privados, nacionais e internacionais”, os povos do Cerrado, em seis casos apresentados, relataram denúncias em três dimensões: a) a Guerra Química potencializada pelo uso de agrotóxicos e transgênicos que trata o Cerrado como Zona de Sacrifício, aliado ao Racismo Estrutural contra os povos que o habitam; b) a apropriação privada das formas de vida e do conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético do Cerrado; c) a desestruturação das políticas de promoção da soberania e segurança alimentar que geram, em verdade, uma política da fome e da miséria.
Costura Narrativa: o quadro de violações aos povos do Cerrado
Como uma teia de retalhos, os casos narrados na audiência do TPP explicitam o mesmo cenário de violações. Todas as narrativas trouxeram a necessidade primordial da garantia do direito ao território frente às várias ameaças que sofrem de expropriação e espoliação. Este é o eixo do direito à soberania alimentar e à sociobiodiversidade: a proteção e garantia do Território, este identificado pelos povos como espaço, tempo, cultura e corpo.
As violações aos territórios são expressões do racismo estrutural e ambiental e do colonialismo molecular, que autoriza zonas de sacrifício. Há corpos e territórios com autorização institucional – seja pela ação ou omissão – para contaminação, intoxicação e que podem ter seus saberes e conhecimentos apropriados e patenteados. A re-existência dos povos é, portanto, a luta pela vida e contra a necropolítica: a política da morte.
Os agrotóxicos, associados às sementes transgênicas, são operados como verdadeiras armas químicas, destruindo pela deriva técnica, acidental ou intencional, a soberania e diversidade territorial.
Os conhecimentos sobre a biodiversidade e as formas de vidas são aprisionados, patenteados e expropriados por grandes corporações que encaixotam, na forma mercadoria, o que é bem de uso e benefício comunitário.
A expulsão e cercamento territorial também se explicita nos casos relatados com a política da fome e a desestruturação de políticas públicas para camponeses, agricultores familiares, povos indígenas e comunidades tradicionais, somadas ao fato da impossibilidade da convivência dos sistemas agrícolas tradicionais e agroecológicos com grandes monocultivos envenenados, já que se verifica grande escoamento de insetos e fungos para as culturas sem veneno.
A declaração do júri: insurgência na costura dos direitos dos povos
A partir da costura das violações, o corpo de jurados do TPP abordou diversas dimensões para a construção ou efetivação de direitos dos povos, ao que lemos em três grandes blocos, com base nas teorias críticas do direito: a) o direito posto relido ou direito já instruído, mas sonegado aos povos; b) o direito já instituído internacionalmente, mas ainda não incorporado pelo Brasil; c) o reconhecimento de direitos ainda não declarados formalmente ou instituintes.
O primeiro eixo se refere à adequação do Estado brasileiro à legislação vigente e aos acordos internacionais já assinados e ratificados pelo país. Isto é, um direito já existente, que está posto, mas deve ser relido ou efetivamente garantido aos povos. Depende, portanto, de ação do Estado brasileiro ante a ausência de fiscalização e responsabilização de agentes violadores ou mesmo de releituras ou interpretações ante as contradições de nosso sistema jurídico formalizado.
Algumas dessas normativas são o Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e Agricultura, em especial o artigo 9º, que trata sobre os direitos dos agricultores; o artigo 48 da Lei de Sementes e Mudas (Lei 10.711/2003), que proíbe que as sementes crioulas sejam excluídas de programas ou políticas públicas; a Instrução Normativa 02/2008, do Ministério da Agricultura, que proíbe a aplicação noturna de agrotóxicos ou em condições meteorológicas distintas; a Lei dos Orgânicos e a Política Nacional de Agroecologia; os princípios e dispositivos da Constituição Federal e da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005), e o Protocolo de Cartagena, que determinam que qualquer produto desenvolvido com modificação do genoma, mesmo que o produto não contenha material recombinante, deve passar por avaliação quanto aos riscos à saúde e ao meio ambiente e, se liberados comercialmente, devem ser rotulados e monitorados; a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e o Decreto 6040/2007; a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB) e, em especial, os artigos 216 e 225 da Constituição Federal.
Já no segundo eixo se encaixam as recomendações já consolidadas, mas não aplicadas, ou mesmo Tratados, Convenções e Declarações não aderidos pelo Brasil. Isto é, um direito já instituído, mas não incorporado, ainda sem adesão interna, como é o caso da aplicação das recomendações dos Relatórios Direito à Alimentação e Resíduos Tóxicos da ONU, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses, Camponesas e Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais e o Acordo de Escazú.
O último eixo e talvez o mais importante deles, é o reconhecimento do Júri aos direitos dos Povos do Cerrado ainda não declarados no nosso sistema jurídico formal. São direitos instituintes, fundamentais, existentes, mas não positivados formalmente. É o caso do direito de combate ao ecocídio e de afirmação dos direitos da natureza, dos territórios livres de agrotóxicos, transgênicos e mineração e o direito de veto aos Povos Indígenas, comunidades tradicionais e camponeses aos empreendimentos e medidas que impactem seus modos de vidas e territórios, para além do direito de consulta já garantido formalmente; o direito ao acesso integral à terra e aos territórios, com garantia de retomadas; o direito ao fim do adoecimento de corpos e territórios; e o direito à verdade, memória e justiça em sentido amplo e efetivo nas várias escalas.
Estes eixos combinados e costurados exemplificam a dimensão de acesso à justiça, efetivação e reparação de direitos humanos, com a concretude da relação entre território, soberania, biodiversidade e alimentação adequada.
Recomendações e possibilidades de incidência a partir da posição do Júri
Entendendo que os depoimentos nas audiências e a declaração preliminar do Júri do Tribunal Permanente dos Povos devem ser internalizadas no sistema jurídico e político brasileiro, os povos recomendaram e sugeriram formas de abordagem e incidência dos resultados do Tribunal que também possam impactar os tomadores de decisão nas várias esferas de poder do Brasil.
Ao Congresso Nacional se recomendou o rechaço do “Pacote da Destruição” e da garantia dos direitos povos e da Terra, como a não aprovação dos projetos de lei que flexibilizam o licenciamento ambiental, a mineração em Terras Indígenas, o Pacote do Veneno, além de rever o marco legal da biodiversidade brasileira e do acesso à repartição de benefícios sobre o conhecimento tradicional associado, para além da lógica monetária e controle corporativo. Também se recomendou a retirada de pauta do Projeto de Decreto Legislativo que propõe a autorização ao Presidente da República para denunciar a Convenção 169 da OIT. Além da aprovação da Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNARA), do fim da pulverização aérea de agrotóxicos e a regulamentação da pulverização terrestre de agrotóxicos, de modo que haja a determinação de distâncias mínimas razoáveis.
Ao Governo Federal recomendou-se que reestruture as políticas de combate à fome, reative a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica e a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais; que restaure o extinto Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e a Política para Produtos da Sociobiodiversidade. Ainda, que reconheça a insuficiência da atual norma que regulamenta a distância de 100 metros entre plantios de sementes de milho crioulas e transgênicas e edite nova normativa de fato protetiva (RN 04/07, editada pela CTNBio) e que proceda ao banimento dos agrotóxicos não autorizados ou cancelados em seus países de origem de exportação.
Ao Sistema de Justiça recomendou-se que proceda à responsabilização de toda a cadeia de agentes violadores, desde a empresa fabricante de agrotóxicos e sementes ou detentora de direitos de propriedade intelectual aos fazendeiros lindeiros, pulverizadores e o próprio Estado por omissão. Além de recomendações à apreciação cuidadosa dos casos de violação, com aplicação da teoria do risco integral e inversão do ônus da prova para garantir o acesso à justiça das comunidades. E ao Supremo Tribunal Federal, recomendou-se que tome decisões que protejam a natureza, os povos e os territórios nas ações que tratam sobre agrotóxicos e transgênicos (como a ADI 5553, ADPF 667, ADI 6137, ADI 3526).
A todos os estados e municípios brasileiros foi recomendado que aprovem leis regionais e locais de promoção da vida, saúde e natureza e edifiquem políticas estaduais e fortalecimento de mercados locais, com fortalecimento da educação do campo e no campo.
É assim que clamam e gritam as expressões, vozes, demandas, denúncias, anúncios, reivindicações, em processo tão diverso como tem sido o Tribunal Permanente dos Povos em Defesa dos Territórios do Cerrado, que respeita o tempo e espaço da sociobiodiversidade em seu âmago.**
*Advogada na organização Terra de Direitos. Doutoranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná. Integrante do GT Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia e da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida.
**O texto contou com contribuições para formulação de Diana Aguiar, Joice Bonfim, Larissa Packer, Mariana Pontes e Fran Paula.