Entre o coração e as trevas de Brasília
Relato e reflexão acerca do Acampamento Terra Livre e seu chamado contra o projeto de destruição de direitos dos povos originários
Por Mari Stockler
Durante cerca de dez dias do mês de abril, o Brasil assistiu a algumas das cenas que reafirmam o nosso traço mais paradoxal: quando a força de atos cívicos corre paralelo à tentativa de silenciamento de movimentos sociais e políticos; quando atos simbólicos e vigorosos reagem a injustiças e ameaças a direitos mais básicos.
Apesar da impressionante falta de divulgação nas mídias tradicionais, o Acampamento Terra Livre (ATL) reuniu em Brasília, entre os dias 4 e 14 de abril, cerca de 7 mil indígenas de quase 200 etnias. Um chamado contra os retrocessos do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro, que mantém firme o projeto de destruição de direitos dos povos originários e da preservação do meio ambiente.
O acampamento teve como objetivos a retomada dos processos de demarcação das terras indígenas, a rejeição do Projeto de Lei 191/2020, que libera a mineração e empreendimentos em terras indígenas, e a garantia dos direitos indígenas ameaçados pelo Projeto de Lei 490/2007, que propõe modificar o Estatuto do Índio no que diz respeito aos direitos territoriais.
No Supremo Tribunal Federal, tramita o julgamento do “marco temporal”, quando os ministros decidirão se prevalece a regra atual para as demarcações de terras indígenas, ou se acolherão a interpretação dos ruralistas, segundo a qual os indígenas só teriam direito à terra se estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, ignorando assim as históricas violações que esses povos sofreram ao longo dos anos.
O STF também julgará em breve o pacote que compõe os projetos de lei 6.299/2002, que libera agrotóxicos; 2.633/2020 e 510/2021, que favorecem a grilagem; e 3.729/2004, que trata do licenciamento ambiental. São pautas que põem em risco o presente e o futuro indígena e também o nosso.
Nestes dias de abril as organizações indígenas fizeram quatro atos, 25 debates com a participação de 130 lideranças, reuniões nas embaixadas da Noruega, Alemanha, Canadá, Reino Unido e Estados Unidos, receberam o ex-presidente e pré-candidato à Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e fizeram denúncias à ONU e ao Parlamento europeu.
O silêncio e a invisibilidade por parte de importantes veículos de imprensa sobre o acampamento e as agendas organizadas pelas organizações indígenas é uma vergonha. Tamanho equívoco choca ainda mais diante da grande repercurssão de uma palestra dada por Sônia Guajajara, coordenadora da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) na Escola Avenues, de São Paulo. Sua palestra desagradou um jovem estudante do ensino médio que, apesar de todos os recursos (a mensalidade nesta escola beira os R$ 14 mil), em sua falta de civilidade achou por bem desqualificar a convidada. Resultado: a “revolta dos herdeiros” ocupou grande espaço na internet, na imprensa oficial e na televisão.
Enquanto isso, na ATL, um telão no palco mostrava a imagem da catedral modernista de Oscar Niemeyer, e a disposição de cadeiras de plástico e os grafismos de alta cultura me intrigavam. Duzentas etnias não é pouca coisa. São culturas, linguagens, hábitos, gestos, músicas e padrões diferentes entre si. Ali, o que experimentei foi um festival de nuances de enorme riqueza em contraponto ao “é tudo índio” do pensamento cafajeste que assola o Brasil.
Fatos políticos
Tive o prazer de convidar para esta viagem Nair Benedicto, uma mestra como Maureen Bisilliat e Cláudia Andujar. Nair lutou contra a ditadura militar, esteve presa e foi torturada, saiu da prisão e fez da fotografia seu argumento. Em tempos analógicos, viajou quilômetros para documentar indígenas, quilombolas, ribeirinhos e os hábitos de populações urbanas do interior do país. Na ATL, Nair, aos 82 anos de idade, passeava pelo acampamento e era reverenciada por jovens fotógrafos em uma troca comovente.
Lá encontramos Sidney Passuelo, sertanista que recentemente devolveu ao governo federal a medalha e diploma de Mérito Indigenista que recebeu do Ministério do Interior em 1987, por relevantes serviços prestados à causa indígena. Fez isto após a mesma honraria ser dada ao presidente da República Jair Bolsonaro, desta vez pelo Ministério da Justiça. Em uma espécie de chacota sádica, Bolsonaro apareceu na cerimônia de cocar na cabeça e se referiu aos indígenas para que se transformem “em iguais, se sentindo exatamente como nós”.
Segundo Passuelo, “a entrega da medalha é um fato político. Devolver é a mesma coisa que aceitar. Eu poderia simplesmente não aceitar. Aquela honraria perdeu a razão. Dada a Bolsonaro não me interessa mais. Em primeiro lugar, os povos indígenas e a memória dos povos indígenas foram ofendidos. Em segundo lugar, estão as minhas motivações pessoais. Eu pensava que fazia parte de um grupo distinto. Isso me fazia cultivá-la. Ao ser entregue para qualquer um, ela perde a razão.”
Nestes dias em Brasília, lembrei-me da excelente minissérie documental de Raoul Peck, intitulada Exterminate All The Brutes (HBO Max), sobre a invenção e as consequências de 500 anos de supremacia branca. Peck diz, à certa altura: “O que deve ser denunciado aqui não é tanto a realidade do genocídio nativo americano, ou a realidade da escravidão, ou a realidade do Holocausto; o que precisa ser denunciado aqui são as consequências dessas realidades em nossas vidas e na vida de hoje.”
Exterminate All The Brutes empresta o título do livro de Sven Lindqvist, que se baseia em uma frase famosa de Coração das Trevas, o romance de 1899 de Joseph Conrad sobre a colonização do Congo e em 1979 adaptado para o filme Apocalipse Now, de Francis Ford Copolla, sobre a guerra do Vietnã.
Retórica da exterminação
Lindqvist questiona “por que Kurtz terminou seu relatório sobre a tarefa civilizadora do homem branco na África com essas palavras: Extermine todos os brutos? Por que Conrad as fez se destacarem como um resumo de toda a retórica exaltada sobre as responsabilidades da Europa para com os povos de outros continentes?” Quando leu o livro de Conrad pela primeira vez aos 17 anos, Linqvist achou que era uma profecia do que estava por vir.
Em sua narração para o filme, Raoul Peck lê as palavras de Lindqvist: “Em todos os lugares do mundo onde o conhecimento está sendo suprimido, um conhecimento que, se fosse divulgado, destruiria nossa imagem do mundo e nos forçaria a nos questionar – em todos os lugares, Coração das Trevas está sendo encenado.”
Para dar um exemplo das reflexões que o documentário traz, a imagem da “sala de situação” durante a operação de caça a Bin Laden, liderada pela administração Barack Obama, chamou-se: “Geronimo” que vem a ser um dos mais importantes nomes da luta indígena contra a colonização dos EUA. A escolha do codinome Geronimo para um inimigo dos EUA não é uma novidade para os militares, que também usam o termo “terra de índios” para designar território inimigo. Segundo Peck, “todas as guerras promovidas pelos EUA reencenam fundamentalmente as guerras indígenas”.
Enquanto acompanhava os atos do ATL em Brasília, lembrei-me também da fotografia que encontrei, datada de 1913, na qual apareciam duas indígenas Guarani e um homem, vestidas à moda da época. Atrás da foto estava escrito: “Aquela moça com a marca + é a Emilia que quer ficar em casa nossa”. Emilia provavelmente era referida como “quase da família” e morou e trabalhou na casa paulista, sem salário ou direitos, pois afinal ganhou um “teto”.
Em um interessante artigo da revista Rosa 5, intitulado Políticas do Verniz, li que “se, há alguns anos, argumentava-se que as culturas amazônicas não seriam tão ‘desenvolvidas’ como outras que construíram cidades ou impérios — à imagem e semelhança do colonizador-arqueólogo —, isso se daria pela falta de evidências materiais. Mas qual evidência material poderia ser maior e mais vasta que a Amazônia?”.
Um levantamento da MapBiomas mostra que, entre 1985 e 2020 , as áreas mais preservadas do Brasil foram as terras indígenas. Nesses territórios o desmatamento foi de apenas 1,6% no período de 35 anos.
Nos últimos três anos, no entanto, sob a administração do atual governo, o desmatamento na Amazônia cresceu inacreditáveis 56,6%, segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). No ano passado, ambientalistas ficaram alarmados com a revelação de que o ritmo da devastação na Amazônia já tem impacto direto e com consequências graves para o ecossistema. A floresta já perdeu parte de sua capacidade de absorver o carbono.
No encontro com o ex-presidente Lula, as lideranças indígenas Célia Xakriabá e Kleber Karipuna leram uma carta: “Estamos aqui porque entendemos a urgência e a emergência que o Brasil e nossos povos vivem. Nossas aldeias, terras e plantações estão sendo invadidas e destruídas com o avanço ilegal da mineração e do garimpo. Casas de rezas em aldeias de todas as regiões do Brasil estão sendo queimadas, crianças violentadas e jovens perseguidos e assassinados.”
Vale a lembrança a Lula, aos demais pré-candidatos e à sociedade civil: no mundo pós-pandemia, o crescimento econômico estará diretamente relacionado à preservação do meio ambiente e à justiça climática. Países que não souberem fazer a transição energética e que não adotem políticas públicas anti-racistas, estarão comprometidos social e economicamente.
O Brasil foi o último país a abolir a escravidão. Espero sinceramente que não seja o último a adotar um modelo que será definitivo para a manutenção deste planeta, até porque o Brasil tem a oportunidade, por conta de nossa matriz energética, de liderar este processo.
Mari Stockler é coordenadora do 342 Artes, 342 Amazônia e MOBILE Movimento Brasileiro Integrado Pela Liberdade de Expressão Artística