“A saúde Yanomami está em colapso”, diz liderança sobre pior momento de invasões
Garimpo gerou explosão de casos de malária e outras doenças infectocontagiosas, além de recrudescimento da violência contra os indígenas
Diante de tantos apelos dos povos Yanomami e Ye´Kwana e informações refinadas sobre a presença de garimpeiros que invadem ilegalmente a Terra Indígena Yanomami, por que o governo continua fazendo tão pouco?
Ora, não há muito que se esperar de Jair Bolsonaro, presidente que é contra demarcações de territórios, se declara publicamente a favor da mineração em terras indígenas e que com seus discursos inflamados estimula as invasões. Ele até apresentou um projeto de lei, o 191/2020, para legalizar a mineração em terra indígena, assim como liberar grandes obras para a exploração de energia, como as hidrelétricas. O PL segue em tramitação na Câmara dos Deputados.
No ano passado, sob muita pressão e notícias de ataques a comunidades Yanomami, o governo determinou a realização de quatro operações esporádicas, mas mesmo assim, neste mesmo ano, o garimpo ilegal avançou 46% em comparação a 2020.
Esses e outros alertas constam no relatório, feito pela Hutukara Associação Yanomami em conjunto com a Associação Wanasseduume Ye´kwana e apoio técnico do Instituto Socioambiental (ISA). O documento exibe um panorama do avanço da destruição garimpeira na maior terra indígena do país e também apresenta soluções. Ou seja, dá para fazer mais.
Enquanto isso, o Brasil assiste inerte a uma tragédia humanitária. Das 350 comunidades indígenas na TI, 273 são afetadas diretamente pelo garimpo ilegal, impactando a vida de 16 mil pessoas, ou seja, 56% da população total. Estima-se que 29 mil pessoas habitem o território que abrange Roraima e o Amazonas.
O relatório aponta que este é o pior momento da invasão desde que a TI foi demarcada e homologada, há trinta anos.
“Apresenta como a presença do garimpo na TIY é causa de violações sistemáticas de direitos humanos das comunidades que ali vivem. Além do desmatamento e da destruição dos corpos hídricos, a extração ilegal de ouro (e cassiterita) no território yanomami trouxe uma explosão nos casos de malária e outras doenças infectocontagiosas, com sérias consequências para a saúde e para a economia das famílias, e um recrudescimento assustador da violência contra os indígenas’, diz trecho do relatório.
No Acampamento Terra Livre (ATL), a MÍDIA NINJA conversou com o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) do Distrito Sanitário Especial Yanomami e Ye’kwana (DSEI-YY), Júnior Hekurari Yanomami, que representa os Yanomami e Ye’kwana junto ao DSEI-YY. Ele conhece muito bem esse cenário. O conselho foi criado para acompanhamento, monitoramento e controle de ações, bem como para fiscalizar os recursos que estão sendo aplicados na saúde indígena.
“Saúde maltratada”
Júnior reclama do descumprimento da lei. “O governo está sendo muito omisso, irresponsável. O Ministério da Justiça e a própria Funai (Fundação Nacional do Índio), que eram para fiscalizar a TI não estão cumprindo a Constituição Federal”.
Ele narra que é tão intensa a presença dos garimpeiros não há como deixar de notar a grande movimentação de aeronaves que sobrevoam as comunidades.
“Aumentou demais a entrada dos garimpeiros, seja pelo rio, floresta e ar. Acho que 80% estão entrando com helicópteros e aviões, deve ter uma média de 120 voos por dia. Eles passam bem baixinho pelas comunidades quando estão em trânsito para abastecer os garimpos que tiram ouro e cassiterita da TI Yanomami”, testemunha.
Como reforça o relatório, que traz relatos de indígenas de várias comunidades, a situação de insegurança generalizada imposta pelo aumento da circulação de garimpeiros armados nas diferentes regiões da TIY tem causado transtornos ao atendimento à saúde às comunidades indígenas, “com o total abandono de postos de saúde em alguns casos (a exemplo de Palimiu) e, inclusive, a ocupação das pistas comunitárias para a operação e abastecimento do garimpo (a exemplo de Homoxi)”, como aponta o relatório que Júnior entregou também ao pré-candidato à Presidência da República, Lula.
Júnior conta que “onde não existia garimpo, está existindo agora”. E aos prejuízos ambientais somam aos sociais.
“Com a ocupação do posto de Homoxi por garimpeiros, cerca de 615 pessoas estão sem atendimento a pelo menos 7 meses. Eles intimidaram, ameaçaram os profissionais de saúde que coagidos e sem proteção, deixaram seus postos”. A comunidade está sendo muito prejudicada.
“O governo não pensou em como vai fazer para garantir atendimento de saúde. Principalmente para as crianças, que não têm nada a ver com isso. Enquanto isso, tomam água suja, com lama, mercúrio. Não tem mais água. Elas não tomam mais água limpa que a natureza fazia”, desabafa.
Por seu trabalho, de fiscalização, e pelas denúncias que têm feito, recebe ameaças.
“Eles mandam muito recado, dizem que vão me matar se me ver na rua, em alguma comunidade. Essas informações chegam sempre, mas eu não posso ficar calado diante dessa situação. Por que são crianças que estão morrendo. Cresceu demais a taxa de mortalidade, de casos de diarreia, desnutrição, malária, pneumonia. Teve vezes que já vi uma criança só com todas essas doenças de uma vez”.
E alerta:
“A saúde Yanomami entrou em colapso é muito difícil recuperar essa saúde”.
Além do domínio de unidades de saúde pelos garimpeiros, faltam medicamentos, equipamentos e profissionais de saúde. “Então, só nos resta encaminhar os doentes para os hospitais de Alta Complexidade de Boa Vista, na capital, por que aqui a saúde Yanomami é muito maltratada”.
Conforme relatório, também é comum a queixa do desvio de medicamentos reservados para os indígenas para atendimento de garimpeiros. Inclusive, o Ministério Público recebeu denúncias de que garimpeiros em Homoxi teriam desviado vacinas contra a Covid-19. Esses fatores potencializam os danos que resultam da desestruturação e má-gestão do atendimento à saúde indígena realizado pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami.
Como reforçado no relatório, a atividade garimpeira ilegal está associada à maior incidência de doenças infectocontagiosas entre as comunidades indígenas, em especial a malária. Ademais, vale lembrar que a atividade garimpeira está diretamente associada à contaminação de mercúrio, com danos irreversíveis à sua saúde das pessoas das comunidades afetadas.
Há notícias de uma maior incidência de doenças neurológicas entre recém-nascidos nas comunidades Yanomami, mas estas não passaram por um diagnóstico de contaminação de mercúrio apesar de haver orientação normativa nesse sentido.
O DSEI Yanomami possui um contrato de horas-voos e por dia, chega a fazer 4 remoções. E faz ainda o transporte dos poucos mantimentos e medicamentos que têm aos pólos-base ou ainda, levando e trazendo profissionais depois que eles passam 30 dias no território. Segundo Júnior há 78 unidades básicas de Saúde Indígena em 40 regiões. Das 376 comunidades ele já visitou 250.
Saúde da mulher
Sobre as denúncias de exploração sexual de crianças e adolescentes de comunidades da TI, ele é uma realidade de conhecimento público.
“Todas as autoridades já foram informadas, MPF, PF, Ministério da Justiça, Saúde. Não é segredo para ninguém ainda mais que os próprios garimpeiros filmam e colocam nas redes sociais, nos grupos”.
A violência contra as mulheres é detectada pelo sistema de saúde.
“Há muitas adolescentes grávidas de garimpeiros e as que já têm filhos. É muito triste isso. São criadas sem pai e a família que ajuda suas filhas”.
Ele relata ainda que houve crescimento de atendimentos das mulheres por conta da situação desoladora de abusos. “Principalmente nas comunidades onde os garimpos estão instalados. Kayanaú, Parima, Makabei, essas comunidades sofrem muito”.
Júnior ressalta que é preciso que o governo federal haja com urgência. E para isso é preciso vontade política.
Ele relembra que tinha por volta dos 6 anos quando estava em curso a operação Selva Livre, que destruiu pistas de pouso clandestinas e promoveu a desintrusão de garimpeiros na década de 90.
“Presenciei a operação em que o governo federal ordenou que mais de 2 mil agentes da Polícia federal para expulsar garimpeiros. Eram em torno de 40 mil. Eles se concentraram no Surucucu. Lembro que tinha uma base da PF na minha comunidade, então eu presenciei várias ações. E mesmo durante essas operações aconteceram muitos massacres indígenas. Haximu é de conhecimento público, mas tem outras que sofreram também. Eu mesmo acompanhei meu pai e avô para ajudar uma comunidade onde tinham matado mais de 40 pessoas”.
E isso, mesmo com a PF operando. Foram mortos por ódio.
“A PF fez uma limpeza muito grande, mas alguns ficaram. Só que agora é muito pior”. Principalmente, nos anos do Governo Bolsonaro, como aponta o relatório Yanomami sob Ataque. No ano passado, já havia sido registrado um salto de 30% em relação ao período anterior e o novo alerta aponta que em 2021 o avanço foi de 46%. De 2016 a 2020, o garimpo na TIY cresceu nada menos que 3.350%, como indica a Hutukara.
Júnior tem acompanhado boa parte dessa triste realidade que se agrava no governo Bolsonaro. Ele foi eleito presidente do conselho em 2019. Ele começou sua trajetória aos 15 anos, trabalhando como liderança no lugar de seu avô.
“Em 2009 um funcionário da Funai me levou para cidade, para eu estudar. Na nossa nossa comunidade não existe escolas e 99% dos Yanomami não sabe ler. E depois de aprender a ler e escrevre, desde 2010 o pessoal do DSEI Yanomami me chamou para trabalhar como assessor, para ajudar na comunicação com o povo Yanomami”, conta.
“Vou continuar desenvolvendo meu trabalho e denunciando os ataques ao meu povo. Só vou ter paz quando meu povo Yanomami tiver em paz”.
Pior momento da invasão
Como já foi dito, em trinta anos de demarcação e homologação, esse é o pior momento vivido pelos Yanomami.
O relatório Yanomami sob Ataque avaliou o conjunto de operações deflagrado pela Polícia Federal ao longo de 2021 como resposta à crescente onda de ilegalidades associadas ao garimpo no estado de Roraima e reforça que só haverá efetividade na desintrusão, se forem ações forem bem coordenadas e perenes.
“Enquanto bem-vindas e urgentes, os dados sobre o desmatamento do garimpo na TIY observados e os relatos das comunidades apontam que as operações ainda não atingiram o efeito desejado para efetivamente coibir a atividade ilegal e garantir a proteção territorial da TIY contra invasores”, reforça trecho do documento.
Os Yanomami veem a deflagração destas operações como passos importantes para o controle da atividade ilegal. “Entretanto, a persistência do garimpo e a sua ampliação em 2021 atestam que este tipo de ação, realizada de maneira esporádica e isolada, é insuficiente para conter o avanço da atividade”.
Mais fiscalização
“Como indicamos na introdução, o garimpo de ouro é hoje uma atividade empresarial que depende de altos investimentos. Portanto, a lógica por trás da atividade é uma lógica essencialmente econômica, isto é, enquanto os retornos forem maiores do que os riscos, sempre haverá quem queira investir. Assim, é fundamental garantir que os custos de operação do garimpo permaneçam inviáveis para sua manutenção em áreas remotas como a TIY”.
Para tanto, declaram que o Estado precisa garantir que as estruturas de proteção e fiscalização na TIY estejam operantes de forma perene. “Ao mesmo tempo que as pistas clandestinas do garimpo devem ser sistematicamente inutilizadas e os aeródromos que dão suporte ao atendimento de saúde devem ser frequentemente fiscalizados. Em alguns casos, inclusive, é recomendada a presença duradoura de forças de segurança, para evitar que o controle das pistas comunitárias seja exercido pelo garimpo e as equipes médicas não possam promover o necessário atendimento”.
Um detalhe importante da estratégia de proteção territorial é a desarticulação das redes de internet que funcionam nos garimpos da TIY e que permitem que os garimpeiros antecipem uma operação.
Garimpeiros tem livre acesso à internet
Segundo o relatório elaborado com apoio do Instituto Socioambiental, atualmente todos os acampamentos, não só no Uraricoera, contam com antenas de internet, seja ela via rádio ou via satélite. O serviço é oferecido livremente nas redes sociais, e é comercializado por empresas de Boa Vista que chegam inclusive a oferecer seus funcionários para realizar a instalação nos acampamentos.
“Um efeito um tanto quanto insólito desta facilidade é que os próprios indígenas não conseguem adquirir pacotes de internet razoáveis para serem instalados em escolas ou postos de saúde, por que a maior parte dos pacotes de alta velocidade disponíveis nas empresas que oferecem o serviço em Boa Vista já estão vendidos para o garimpo, ainda que ele seja notoriamente ilegal!”.
A facilidade de acesso à internet, habilita a circulação de informação entre os núcleos garimpeiros com a cidade e entre si. Notícias de uma eventual operação se espalham rapidamente pelo WhatsApp.
Diariamente nos grupos de garimpeiros circulam mensagens com avisos sobre a movimentação dos órgãos de proteção, tais como: “helicóptero do exército circula o Uraricoera”; “carro do IBAMA passou pela rodovia 332”.
A recorrência do vazamento de informações sobre operações contra o garimpo indica a existência de conexões com pessoas dentro dos órgãos de fiscalização que têm acesso a informações confidenciais sobre os planos de ação policial. Como resultado, a efetividade das operações é comprometida e a organização do garimpo esbanja resiliência, alerta o documento Yanomami Sob Ataque, que além de apresentar impactos, sugere ações para coibir as invasões.