O cinema-verdade de Dziga Vertov e o ninjismo nas multidões
O longa-metragem inédito do diretor russo Dziga Vertov, “A história da Guerra Civil” estreou no festival “É Tudo Verdade”
Por Lenine Guevara
Sua produção mais conhecida é o filme ‘O homem com a câmera na mão’ (1929), revisitado por toda campo cinematográfico desde a redescoberta de sua produção pelo cineasta Godard, nos anos 60, que ressaltou a característica de um cinema não representacional, aproximando ao que Vertov nomeava como “cinema-verdade”.
Assim como muitos artistas da agitação e propaganda soviéticas, em 1918, Vertov viajou por todo o país de trem, editando cinejornais e realizando curtas que registraram as campanhas e cercos soviéticos durante a Guerra Civil Russa. A produção acompanhou eventos marcantes dos 3 anos dos conflitos entre 1918 e 1921, causado pela mobilização de forças contrarrevolucionárias, chamadas de Exército Branco, que tinham o objetivo de derrubar os bolcheviques após a Revolução Russa de 1917.
Finalizado e exibido em 1921, o filme foi considerado perdido por muito tempo e sua única apresentação ocorreu durante o 3o Congresso Internacional Comunista, em junho daquele ano.
Cem anos depois, essa produção ressurge como um dos primeiros documentários que acompanham uma guerra civil na história, como afirmou o produtor e montador Nicolai Svolov, ressaltando o caráter cronista de Vertov. Entretanto, ao assistir o documentário, saltou aos olhos menos o caráter cronista de uma história cronológica e mais o perfil de sua linguagem, marcada por uma experiência centrada no movimento das pessoas e máquinas para a composição da narrativa cinético-visual.
Esse modo de construção narrativa acabou imperando na experiência de assistir o documentário ‘História da Guerra Civil’ que foi apresentado sem legendas no Festival É TUDO VERDADE. Assim, para quem não compreende russo ficou falha a narrativa escrita que entrecorta as cenas do documentário em preto e branco e ainda distante do cinema falado.
Os cortes do filme, como em todas as produções de Vertov, tampouco sustentam uma cronologia linear, pois há a colagem de imagens de contextos distintos, que acabam criando um sentido de dramaturgia de movimento. Isso quer dizer, uma linguagem mais próxima à experiência de clipes, que não precisam ter verossimilhança para mudar de um contexto ao outro: por exemplo, mostrar em um primeiro corte uma pradaria, no corte seguinte uma paisagem com neve e logo no seguinte uma praça.
Se pudesse resumir a impressão de 1h 30min de filme, aquelas imagens que ficaram impregnadas na memória seriam das multidões em movimento. Como afirma a documentarista e professora de dramaturgia alemã Kerstin Stutterheim, aquela síntese que permanece na memória é arte.
A maior parte dos quadros do filme são dominados por imagens de coletivos, e o tempo narrativo entrecruza a velocidade com que passam esses coletivos e também a falta de velocidade.
Minutos inteiros de marchas por todo o país invadem o ecrã e impregnam uma sensação comum gerada pela câmera, que pára por largos tempos extasiada com os coletivos diversos a passar. Compreendendo coletivos na linguagem visual não apenas dos lotes e lotes de pessoas e multidões que passam nas campanhas que levam trabalhadores, caixões, soldados, campesinos recrutados, mulheres em trânsito com máquinas, cavalos montados em marcha, mas dos próprios objetos e da cidade. Coletivos de ruínas, de navios, de obras em reconstrução, de largos e praças, como também de interação pessoas/objetos, com os diversos momentos em que paramos a contemplar o manuseios das máquinas de guerra.
As campanhas soviéticas e o ineditismo dos movimentos de multidões não apenas de soldados, mas de toda uma república que estava em formação no início do século XX, parecem ter influenciado essa busca que Vertov nomeou como “cinema-verdade”, em que os efeitos da edição não sobrepõe a realidade do movimento que está sendo filmado no tempo-real, o que imprime um tom documental que se sustenta mais no acontecimento do que na edição de seus criadores. Não parece tão distante assim das técnicas que aprendemos de ninjismo para as filmagens de marchas, atos que envolvem coletivos e multidões e de como gerar a imagem de maneira implicada, que dê vazão ao acontecimento em si, mas do que à narrativa sobreposta a ele, assumindo a subjetiva de quem está vendo: da pessoa com a câmera na mão. Ainda que, óbvio, saibamos do borramento entre ficção e realidade e da impossibilidade de neutralidade do olhador, pois estamos sempre gerando impressões narrativas ao apontar a câmera e construir um olhar sobre o mundo.
Lenine Guevara é ativista da Cultura, editora da Cine.ninja e estudou cinema documentário e dramaturgia de forma aberta no estágio doutoral sanduíche na Konrad Wolf Babelsberg Potsdam-DE, universidade do filme e da televisão, sob a supervisão de Kerstin Stutterheim.