Por Arnaldo de Castro*

1 – Introdução

Nos últimos anos, o Brasil constatou um aumento dramático de células nazistas. Se esse crescimento espantoso nos submundos da internet é uma questão preocupante, quando atinge espaços de poder e canais de comunicação a questão fica ainda mais séria.

Os maiores exemplos dessa ascensão no seio da política brasileira foram os casos do então Secretário de Cultura, Roberto Alvim, que gravou vídeo com toda estética nazista, tendo como música de fundo a obra Lohengrin, de Richard Wagner e proferindo um discurso muito próximo ao de Joseph Goebbels, um dos ideólogos do nazismo e um dos mais radicais antissemitas daquele período; e em outra situação, Felipe Martins, foi flagrado fazendo com as mãos o símbolo “White Power”. Naquela época era assessor do Presidente da República e acompanhava o ex-ministro da Relações Exteriores (Ernesto Araújo) que participava de arguição no Senado Federal.

Nos grandes meios de comunicação o discurso da direita em favor do nazismo também encontrou espaço. O caso mais emblemático foi o de Bruno Aiub, conhecido como Monark, que em entrevista com os deputados liberais Kim Kataguiri e Tábata Amaral, defendeu expressamente a institucionalização de um partido nazista na política brasileira, advogando a liberdade de expressão como valor máximo. No dia seguinte, o Ex-BBB e comentarista da jovem Pam, Adrilles Jorge, ao fim de sua opinião sobre o caso, despediu-se levantando a mão, tal qual o “Sieg Heil” que os nazistas utilizavam.

Em todos os casos acima citados, quando interpelados tanto pela pressão popular, quanto pelas instâncias de poder, os protagonistas afirmaram que foram mal interpretados. Alvim alegou coincidência entre seu discurso e o de Goebbels, Felipe Martins afirmou que estava arrumando seu microfone de lapela, Monark dizia estar bêbado e Adrilles justificou sua atitude como apenas um “tchau” rotineiro.

Mesmo com todos esses casos, a motivação para a produção desta presente análise, no entanto, partiu de dentro da sala de aula. A experiência enquanto professor de história na rede pública, trabalhando na periferia do Distrito Federal, em uma escola que se encontra em uma das comunidades mais pobres de Brasília, me ascendeu o sinal de alerta sobre como o símbolo budista tem sido utilizado por neonazistas para tentar escapar da acusação de racismo quando confrontados.

Foram diversas as vezes em que estudantes do ensino médio comentaram um fato curioso: ao verem alguém usando a suástica como avatar (a foto de perfil em fóruns e canais do discord, principalmente), ao questionarem o uso de um símbolo que remete ao ódio e ao racismo, a pessoa alegava estar apenas dando visibilidade ao Manji.

Sem sombra de dúvida, a popularização do Manji e de seu significado nos últimos anos tem direta ligação com o estrondoso sucesso no mundo do entretenimento japonês, o mangá Tókyo Revengers.

2 – O início da polêmica em Tokyo Revengers

Quando em março de 2017, Ken Wakui começou a publicar sua obra Tókyo Revengers, o Mangaká decidiu utilizar o símbolo budista chamado Manji como parte da identidade visual da gangue de jovens delinquentes japoneses, chamada Tókyo Manji kai (Toman de forma abreviada). O mangá se tornou grande sucesso da empresa Kodansha.

Tókyo 卍 Revengers – número 1 – Kodansha, 2017

Contudo, ao alcançar o Ocidente, o mangá de Wakui se deparou com outra problemática: a Suástica. Em função de seu uso na Segunda Guerra Mundial pela Alemanha liderada por Adolf Hitler, ela é um símbolo associado ao nazismo e à supremacia branca. Além disso, o fenômeno da ascensão de governos de extrema direita na Europa, nos Estados Unidos da América e na América Latina é um tema sensível nos últimos anos, pelo menos de 2016 para cá. A situação é tão complexa e dramática, que o Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, António Guterres sugeriu a criação de uma frente global contra o Neonazismo, discursos de ódio e a supremacia branca.

Nesse contexto, os jovens carismáticos, com seus cabelos pintados de loiro, ostentando o Manji em seus uniformes da Toman chegaram ao Brasil. Incialmente (como boa parte dos mangás) a obra alcançou considerável público de maneira informal – para não dizer ilegal – com o trabalho de diversos scantrads, que são grupos de tradução de mangás, que editam os diálogos de cada página em versões digitais, e disponibiliza para download ou visualização em sites e fóruns na internet. Desde cedo, ainda sem contar com lançamento oficial de alguma editora brasileira, o debate estava posto.

Em 2021, a plataforma de streaming especializada em animes, Crunchyroll, disponibilizou a adaptação animada em seu catálogo e aquilo que até então estava restrito ao nicho de apreciadores de mangá, entrou em um debate público mais amplo, porém, que carece de informação mais aprofundada. É nesse sentido que proponho discutir o tema: a forma com que a crítica ao mangá se instalou no Brasil e como de maneira ardilosa, diversos criminosos tem utilizado o Manji para reafirmar seus preconceitos, ao passo que quando interpelados, respondem de maneira cínica que aquele é um símbolo budista, se valendo de uma suposta licença poética advinda do anime.

3 – O Uso do Manji em outros mangás

O uso do Manji em outras obras causou diversas controvérsias desde que o mercado de animes e mangás se instalou com mais firmeza no Ocidente. Na década de 1990, a obra Yu Yu Hakusho, de Yoshihiro Togashi, lançado pela Shõnen Jump apresentou o personagem Kazemaru, que tinha em sua testa o símbolo budista. Essa foi a primeira vez que o uso do Manji em um anime causou alguma discussão em torno do tema no Ocidente.

Precisamos sempre lembrar que o desenvolvimento do Mangá contemporâneo, tem desde sua gênese com Osamu Tezuka, o aspecto de resistência cultural ao projeto de colonização norte americano sobre o Japão, desde que a nação do Sol Nascente foi derrotada na Segunda Guerra Mundial. Também por isso lendas, símbolos, histórias e temáticas tipicamente japonesas, são recorrentemente utilizadas nessas produções, buscando reafirmar a cultura local para a juventude nipônica.

Kazemaru – Yu Yu Hakusho – Weekly Shõnen Jump (1990-1994)

Referências ao budismo são frequentemente encontradas em diversas produções. Até mesmo o “Deus dos Mangás”, Osamu Tezuka, escreveu em 1972, uma obra completa inspirada na vida de Siddartha Gauthama, o mais famoso entre os Budas. O largo uso da temática e símbolos budistas é perfeitamente inteligível, se pensarmos que o budismo é uma das religiões com maior número de adeptos no mundo, e boa parte se concentra no Extremo Oriente. Sendo assim, o uso do Manji – que significa algo como Boa sorte ou Bem Estar – está muito associado à religiosidade japonesa, e por muitas vezes, diversas pessoas reivindicaram o significado original daquilo que ficou conhecido (erroneamente) como a Suástica nazista.

Entre as pessoas que lutam pelo reconhecimento original do significado do Manji está T. Kenjitsu Nakagaki, que além de monge budista, é também o presidente da Fundação Heiwa pela Paz e a Reconciliação em Nova York. Em seu apelo, Nakagaki lembra que a memória associada ao símbolo no Ocidente, não respeita os quase cinco mil anos do budismo e é preciso que o Manji seja dissociado da Suástica Nazista, pois, sabidamente foi um símbolo apropriado por Hitler, mas que originalmente em nada se liga com o Holocausto.

Essa temática atravessou o campo da política e atingiu em cheio a cultura pop através dos mangás. Em outras produções de sucesso ainda maior no Ocidente, nos deparamos com a mesma tensão. Em Naruto, o personagem Hyuga Neji, muito querido entre os fãs da obra de Masashi Kishimoto, tem em sua testa um selo que impede que o Ninja ataque outros membros do clã que pertencem à família principal. Essa segunda linhagem do clã Hyuuga é marcada por um Manji verde, uma marca que impede a insurreição e mantém a subserviência da família secundária.

Naruto – Masashi Kishimoto – Capítulo 102 – Weekly Shõnen Jump, 1999

Em One Piece, de Eiichiro Oda, mangá lançado continuamente desde 1997 e que conta com mais de 1000 capítulos (o que demonstra seu sucesso e aceitação do público), Ace o irmão do protagonista da série, Luffy, em sua primeira aparição encontra-se de costas, ao lado de diversas tigelas de comida. Em suas costas, ostenta uma gigante tatuagem: um Manji com uma caveira pirata ao centro.

One Piece – Eiichiro Oda – Capítulo 154 – Weekly Shõnen Jump

Nos animes acima citados (excetuando-se Yu Yu Hakusho), quando foram exportados ao Ocidente, diversas censuras foram estabelecidas. No caso de Ace, o Manji se tornou uma cruz feita por dois ossos, Já Hyuga Neji ganhou no lugar um X em sua fronte, em Tókyo Revengers sombras constantemente escondem os Manji. Contudo, este último vai além de seus predecessores, pois os elementos que remetem à Segunda Guerra Mundial (para não dizer ao nazismo) presentes na obra vão muito além da Suástica.

4 – Outras referências em Tókyo Revengers

Quando se observa Tókyo Revengers mais atentamente – e aqui me refiro, sobretudo ao mangá, pois a versão animada conta com censuras já citadas – podemos perceber diversas outras referências ao contexto da Segunda Guerra Mundial. Entre elas podemos destacar:

  • O Manji presente no nome da obra, entre “Tókyo” e “Revengers”, o que causa estranheza imediata a quem conhece a história do nazismo e pouco conhece a cultura japonesa e os símbolos budistas.

 

  • A placa da moto CB250T de Mickey, o líder da Toman, que tem escrito a palavra “Kamikaze”, que significa “vento dos deuses”, em memória aos milhares de pilotos recrutados para a unidade especial de ataque Tokubetsu kõgekitai, mais conhecida pela sua abreviação tokkõtai. Esses eram os pilotos suicidas que atiravam seus aviões contra os navios norte-americanos, nos momentos finais da Segunda Guerra Mundial que antecederam a rendição japonesa após o ataque terrorista de Hiroshima e Nagasaki.

 

  • O uniforme da Toman, que é nitidamente inspirado em trajes militares, ostentando muitas vezes o mesmo esquema de cores (Predominância da cor preta, detalhes em branco e vermelho) da Schutzstaffel, a temida SS de Hitler. Dentro desse mesmo tema, na consagração do protagonista Hanagaki Takemichi como membro oficial da Toman, o capitão da 2° Divisão, um entre os 6 membros fundadores da Tókyo Manji, Mistuya Takashi costura, ele mesmo, a veste cerimonial de Takemichi. Vale lembrar que existe todo um cuidado estético na produção desses uniformes, tal qual a Alemanha nazista tinha com suas tropas, em que Hugo Boss foi o responsável por desenhar o uniforme do Exército do III Reich.

 

  • O uso do Manji no úmero esquerdo, na altura que, convencionalmente era usada a suástica pelos soldados nazistas também é uma referência direta à estética militar alemã da Segunda Guerra Mundial.

 

  • O nome da loja de motos pertencente a Sano Shinichiro, irmão de Mickey, é S.S Motors, ou seja, carrega as mesmas siglas da Schutzstaffel. Observação importante é que uma das maiores tragédias e parte central do enredo desta obra acontece, precisamente, na S.S Motors.

 

  • A referência à mitologia nórdica presente no nome da gangue rival – Valhalla – que conta como símbolo duas asas em um corpo sem cabeça, muito se assemelhando as Valkirias. Vale lembrar que uma das músicas favoritas de Adolf Hitler era a composição de Richard Wagner Walkürenritt ou Ritt der Walküren (Cavalgada das Valkirias).

 

  • Os cabelos pintados na cor loira dos personagens mais carismáticos da Toman, em especial Hanagaki takemishi, Ryuguji Ken (Draken) e Sano Manjiro (Mickey).

 

  • Estrutura hierarquizada da Toman lembrando uma organização militar altamente centralizada.

Aqui precisamos esclarecer três questões importantes. A primeira é que a título de metodologia de pesquisa, precisamos deixar claro que não foi consultado o mangá original lançado no Japão, mas sim suas reproduções virtuais, o que preserva alguma fidedignidade, mas se faz importante a ressalva por uma questão de boa prática de pesquisa. A segunda questão é que não analisamos outros elementos discursivos e psicológicos da obra, que poderiam sim fazer parte dessa análise, mas a preferência foi dar ênfase ao conteúdo exclusivamente visual disposto no mangá. Por fim, caso queira conferir as referências citadas, é preciso acompanhar o mangá com as características da publicação japonesa.

5 – O sucesso da estética nazista entre jovens no Extremo Oriente

Para quem está pouco habituado com o mundo dos mangás, é preciso entender que existe um mercado que extrapola o campo da literatura e cria diversos apêndices a esse universo do entretenimento. O mangá é a ponta do Iceberg. Quando seu sucesso está garantido, não apenas ganha uma série televisiva animada (o anime), como promove vendas de materiais escolares, roupas, adornos em geral, e também movimenta o incrível mercado de Cosplays.

O Cosplay é a prática de se fantasiar de personagens de séries televisas, super heróis de HQs, Filmes e a indústria do anime alavancou muito essa atividade. No Japão, a pesquisadora Aleksandra Jaworowicz-Zimny identificou crescimento expressivo da prática de Cosplay com a temática nazista. São diversos exemplares de jovens com uniformes do III Reich. Virou de fato uma grande febre. A partir disso, ela tenta identificar a motivação para a popularização dos Nazi-Cosplays.

Uma das coisas fundamentais para entender a questão, é que no Japão o trauma causado pelo Holocausto não é tão difundido e conhecido, por isso gera menor comoção que no Ocidente. Há um distanciamento moral, que leva a uma aceitação da temática nazista ser tratada como mercado ou entretenimento. A própria ideia de customizar um vilão é motivadora para cosplayers.

Entretanto, isso não quer dizer que nazi-cosplayers não tenham conhecimento sobre as atrocidades cometidas pela Alemanha Nazista. Ao contrário, o cosplay perfeito exige não apenas cuidado com as indumentárias, mas também a preservação de gestos, expressões e formas discursivas, o que leva Nazi-Cosplayers a conhecerem de maneira satisfatória biografias, fatos e eventos acontecidos na Segunda Guerra Mundial.

Essa informação nos é muito válida, pois, existe uma relação mercadológica direta entre a temática nazista e o sucesso de diversas obras. Seja colocando nazis como inimigos, como o caso de Hellsing, mangá de Kouta Hirano, seja utilizando símbolos ou temáticas que remetem à Segunda Guerra Mundial como a segregação em Shingeki No Kyojin, de Hajime Isayama, o Manji em Tokyo Revengeres, ou até mesmo detalhes como o brinco do protagonista Kamado Tanjiro em Demon Slayer, de Koyoharu Gotōge**.

O que defendo, é que as gigantes do entretenimento japonês, sabendo do grande alcance que a temática proporciona (movendo afetos e desafetos), não se propõe a estabelecer filtros, sequer cuidados mínimos para abordagem da temática e estética nazista nas obras, ao contrário, essas empresas perceberam que é uma forma bastante eficiente de causar impacto no mercado ocidental. Sendo assim, se aproveitam e lucram bastante com a polêmica, em contrapartida, talvez sem perceber ou dar a devida importância, impulsionam a propaganda nazista e a adesão crescente hoje de jovens ocidentais a essa ideologia.

6 – O uso do Manji como camuflagem nazista

Não é incomum se deparar com relatos de pessoas que viram o Manji sendo usado como avatar por jovens em fóruns e grupos do discord. Quando questionados, aqueles que se aproveitam de um possível anonimato e preservação da própria imagem, alegam que não ostentam uma suástica nazista, mas sim o tradicional símbolo religioso budista.

Entretanto, essa alegação se torna ainda mais frágil quando discursos de ódio e racistas são observados ao longo das interações e comportamentos de tais participantes no submundo da internet. São declarações abertamente supremacistas, que se alinham perfeitamente com o pensamento nazista. Menos pela limitação moral, e mais pelo peso normativo da constituição brasileira, esses criminosos criam estratégias de negação do crime, na esperança de que sua alegação de uso do Manji possa garantir a impunidade, e nesse sentido, não podemos negar que eles vêm obtendo grande sucesso.

Esse subterfúgio se mostrou necessário para os neonazistas virtuais, pois, a lei brasileira de número 7716/89 que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, passou a tipificar como crime a propaganda nazista. Essa mudança normativa aconteceu em 1997 por iniciativa do Senador Paulo Paim do Partido dos Trabalhadores (PT) do Rio Grande do Sul. O texto, a partir de então, passou a vigorar da seguinte forma, considera-se crime:

“Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

  • 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.“

Observando o contexto de radicalização no Brasil, em que grupos de direita demonstram abertamente aproximação ao nazismo, faz-se necessário que todas as medidas possíveis sejam tomadas para evitar ainda mais o crescimento dessa ideologia perversa e nefasta.

Defendo não apenas a condenação pontual de grandes expoentes do pensamento nazista, mas também uma educação comprometida com a defesa dos direitos humanos, a regulação dos meios de comunicação, o endurecimento da definição legal contra a propaganda nazista, a conscientização por meio de políticas públicas mais amplas, o estabelecimento de parcerias internacionais no combate ao nazismo, inclusive dialogando e cobrando de nações estrangeiras que tenham mais cuidado com as produções sobre essa temática, mas sobretudo, estabelecendo rígida fiscalização e investigação para averiguar discursos de ódio e que pregam o extermínio de outras pessoas por suas crenças, convicções, agremiações políticas, etnia, raça ou cor.

* Arnaldo de Castro é mestre em História pela Universidade de Brasília, professor da Secretaria de Estado e Educação do Distrito Federal, colunista da Mídia Ninja e Produtor do História Oral podcast.

* Sobre esse último, caso queira entender a discussão, você pode ouvir nosso podcast clicando aqui