Da esperança das ruas ao fracasso dos líderes da COP26
É preciso desmascarar a responsabilidade que os países mais ricos têm no desenvolvimento da crise climática e na consequente vulnerabilidade do sul
Por Sylvia Siqueira
Uma tempestade fechou a primeira semana da COP26, Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, em Glasgow. Mas ela não foi capaz de parar a primavera dos povos em marcha, mais de 100 milhões de ativistas denunciando as violências políticas nos diversos territórios do mundo e reafirmando que a verdadeira liderança vem das lutas territoriais e das vozes dos povos nas ruas. Um contraponto necessário diante da feira de negócios entre governos e corporações a portas fechadas, impedindo a participação da sociedade civil organizada e ativistas por justiça social, econômica, ambiental e climática. A segunda semana começa nesse misto de frustração nas negociatas e esperança nas lutas.
O debate sobre mudanças climáticas é mais concreto do que o que a gente ouve falar. A redução da emissão dos gases de efeito estufa depende de como a gente vive nas cidades, de como o país estrutura sua economia, gera energia, protege e preserva os biomas, prepara sua população da educação para o trabalho, fornece água e saneamento, gestiona o lixo, organiza o sistema de transporte e acessibilidade, produz e distribui alimentos, reconhece e respeita direitos, reconhece direito à terra de povos originários nas florestas e dos quilombos nas regiões metropolitanas. Mas a discussão na primeira semana da COP passou longe disso.
Começar a COP anunciando o compromisso de acabar com o desmatamento até 2030 foi esperto, mas não deu conta da tarefa de casa. A meta assumida em 2015 é destinar US$ 100 bilhões para políticas climáticas a partir de 2020, e eles ainda prorrogam para 2023. Esse atraso vai nos custar mais caro, mais vidas e mais territórios. Será que a discussão sobre as políticas climáticas não deveria tomar outra rota? O modelo econômico, a concepção de desenvolvimento e as estruturas sociais nos diversos países deveriam passar para a centralidade das decisões. É nesse cabo-de-guerra que estamos e poucos políticos encaram essa discussão publicamente, enquanto o clubinho dos países mais ricos transforma a COP26 num feira de greenwashing, vendendo e comprando falsas soluções.. E assim o interesse capitalista se sobrepõe nas decisões políticas à dignidade da vida das pessoas, à preservação da biodiversidade e à vida neste planeta.
As decisões até agora são fracas. Não podemos esperar 2030 para suspender o desmatamento. Hoje o cenário de destruição dos biomas e das culturas dos povos das florestas na Amazônia e dos povos quilombolas na região da Mata Atlântica brasileira, é gigantesco. É preciso zerar o desmatamento ilegal e legal agora, 2021. Em Pernambuco, no Nordeste do Brasil, mais de 150 hectares de Mata Atlântica podem desaparecer se o Governo instalar uma escola de sargentos como foi anunciado. Outro projeto é a construção de um arco viário metropolitano para escoar o trânsito entre dois polos industriais, Suape e Goiana, onde se instalaram multinacionais europeias e norte-americanas. O arco causaria múltiplos prejuízos à biodiversidade, além de aquecimento, piora da qualidade do ar e destruição dos mananciais de água que abastecem parte do Recife. Esta é uma das provas da ação humana nas mudanças climáticas.
O Acordo de Paris, em 2015, foi um divisor histórico na política mundial sobre responsabilidades, cooperação e financiamento. Por isso, a tendência é que as COPs se tornem um dos espaços internacionais mais importantes sobre as decisões que afetam a vida das pessoas em qualquer lugar do planeta Terra. Até aqui tudo bem, se não fosse a incapacidade dos líderes em representar o direcionamento político que suas populações defendem cotidianamente.
Os líderes da última década instalaram governos fascistas, machistas, racistas e ampliaram o desenho do Estado com o capitalismo, através da privatização do acesso a direitos coletivos e bens comuns, mudaram o ambiente legislativo da seguridade social, desrespeitaram legislações e processos públicos de preservação da natureza, diminuíram os (já insuficientes) investimentos nas políticas sociais de saúde, educação, habitação, segurança alimentar, cultura, esporte, meio ambiente. Essa é a prática de governos que emergiram da direita-fascista na última década, com campanhas financiadas por empresas e liberais. E são eles decidindo como será a nossa vida, onde será e se será. Neste cenário catastrófico não é difícil entender porque os anúncios da COP são insatisfatórios e porque os povos estão nas ruas.
O debate sobre financiamento continua esta semana. Mas ele só fará sentido se aliado a um contexto de transição justa, olhando sobretudo para as políticas de adaptação que deverão saldar dívidas de pobreza, ao invés de aumentar o abismo da desigualdade. Gênero entra nas mesas da terça. Queremos ampliar o acesso das mulheres agricultoras à terra, investimento na educação para profissões do trabalho verde e justo, mas também queremos a demarcação das terras indígenas e a regulamentação das terras quilombolas, que sobrevivem dos produtos da terra.
O debate sobre ciência e inovação precisa ter base na promoção do bem-estar comum começando por quem está atrás na esteira do desenvolvimento. Ou seja, acessar água limpa, cobrir todos os territórios com saneamento básico e erradicar doenças causadas por esgoto a céu aberto. Mas também que a energia renovável seja a mudança concreta no bolso e na qualidade de vida de famílias que vivem no escuro ou que não conseguem pagar as contas que se acumulam. Que a iluminação se faça verdade nas ruas, becos e vielas para a segurança de meninas e mulheres, que voltam das escolas e trabalhos para suas casas. Cidades inteligentes são cidades que cuidam do todo de forma equitativa, e não igual, para erradicar as desigualdades. O transporte de uma cidade inteligente precisa garantir a existência de todas as pessoas com segurança e acessibilidade.
É urgente ampliar os marcos do debate sobre cooperação, é preciso desmascarar a responsabilidade que os países mais ricos têm no desenvolvimento da crise climática e na consequente vulnerabilidade do sul. Eles têm esta semana para assumir a sua parte da transição justa nos países do Sul Global. Não como favor. É responsabilização pelos séculos de exploração colonialista, até os dias atuais. Daqui até o dia 12 a tendência é elevar o tom do chão mais afetado pelas decisões coloniais, violentas e burras.
A @MidiaNinja e a @CasaNinjaAmazonia realizam cobertura especial da COP26. Acompanhe a tag #ninjanacop nas redes!