Foto: Arquivo / EBC

Na semana que antecedeu à COP26, aberta formalmente em 31/10/2021, em Glasgow, dois importantes documentos científicos vieram se somar à publicação da primeira parte do 6º Relatório do IPCC (referente às bases físicas da mudança do clima): o Greenhouse Gas Bulletin, publicado pela Organização Meteorológica Mundial (OMM, ou WMO) e o Emissions Gap Report 2021, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio-Ambiente (PNUMA, ou UNEP). Neste artigo, vamos analisar as implicações das informações trazidas no primeiro destes dois documentos para uma das mais decisivas cúpulas do clima da história.

Concentrações em Alta

O Boletim dos Gases de Efeito Estufa, da OMM, é publicado anualmente e, como esperado, confirma a quebra de recorde na concentração dos principais gases de efeito estufa ao final de 2020. Os novos valores, considerando a média global para o ano de 2020 são 413 partes por milhão (ppm) para o dióxido de carbono (CO₂), 1889 partes por bilhão (ppb) para o metano (CH₄) e 333,2 ppb para o óxido nitroso (N₂O). Esses valores estão muito acima dos níveis pré-industriais, com aumentos relativos, respectivamente, de 49%, 162% e 23% em relação ao valor de referência em 1750. Além da quebra de recorde dessas concentrações, é importante acrescentar que a taxa de acumulação desses gases na atmosfera mostrou tendência a crescer, pelo menos nas últimas duas décadas, ou seja, há uma aceleração desse processo.

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Variação, em função do tempo, das concentrações (acima) taxas de acumulação (abaixo) do dióxido de carbono (à esquerda), metano (ao centro) e óxido nitroso (à direita). Fonte: GHG Bulletin (WMO, 2021)

CO₂ e N₂O mostram uma tendência quase contínua de aceleração de sua acumulação no atmosfera dos anos 1980 para cá. O CH₄, por sua vez, passou por uma inflexão na virada do século, com a taxa de acumulação chegando a valores em torno de zero (o que deixou, por um breve período, a concentração desse gás quase constante). No entanto, ao longo dos últimos vinte anos, a concentração de metano voltou a crescer de maneira acelerada.

A Natureza (ainda) faz a sua parte

No que diz respeito ao dióxido de carbono, o boletim mostra que a fração aerotransportada (AF) mantém-se em torno de 42%, o que significa que de cada 100 toneladas de CO₂ emitidas, 42 toneladas permanecem na atmosfera e 58 são sequestradas por sumidouros (oceanos e biosfera continental).

Variação, ao longo do tempo, da fração aerotransportada de dióxido de carbono, isto é, a fração de CO₂ que permanece na atmosfera após o gás ser emitido. Fonte: GHG Bulletin (WMO, 2021)

A tendência linear mostra leve crescimento da AF, o que sugeriria uma pequena tendência de enfraquecimento da capacidade dos sumidouros, mas sem significância estatística. A preocupação é com o futuro, pois o acionamento de “tipping points” pode desestabilizar esses sumidouros.

Sabe-se, por exemplo, que a Amazônia e outras florestas tropicais, além das ações antrópicas diretas (desmatamento, queimadas, degradação, fragmentação, poluição etc.) estão sob pressão de processos associados ao aquecimento global (secas extremas, ondas de calor etc.). Em virtude destes, elas estão perdendo sua capacidade de sequestrar carbono reduzida, o que pode fazer com que elas se tornem fontes líquidas de emissão, mesmo num cenário em que o desmatamento seja completamente eliminado.

No caso dos oceanos, além dos inúmeros impactos sobre a biota marinha, associados não só ao aquecimento global mas a inúmeros outros aspectos da crise ecológica (poluição, acidificação, pesca de arrasto, etc.) que comprometem a eficiência da “bomba de sucção biológica”,  já que a solubilidade dos gases nos líquidos decresce com o aumento da temperatura, também há limites para a “bomba de sucção química” (cujo efeito colateral é exatamente a acidificação oceânica).

A natureza, felizmente, ainda está a fazer sua parte. Nós, por outro lado, estamos longe disso. Pior, de modo algum podemos nos confiar indefinidamente no efeito (parcialmente) compensador dos sumidouros naturais. Alguns deles podem estar perigosamente próximos do seu limite e se o ritmo do aquecimento global já é extremamente rápido (quase 30 vezes mais rápido do que o mais recente aquecimento natural, associado ao fim da última glaciação), pode se acelerar ainda mais se esses sumidouros perderem força.

Desequilíbrio energético

O acúmulo de gases de efeito estufa na atmosfera gera um desequilíbrio nos fluxos de energia, mensurado pelo que chamamos “forçante radiativa” ou “forçamento radiativo”, que, sendo positivo (no que diz respeito ao sinal matemático, mas não no impacto sobre o planeta), corresponde à quantidade de calor acumulado por unidade de tempo e unidade de área.

O CO₂ responde pela maior parte desse desequilíbrio energético (66%), seguido do metano (16%). O óxido nitroso responde por 7% da forçante radiativa e os gases halogenados completam o valor total: CFCs (8%), HCFCs (2%) e HFCs (1%). Detalhe: assim como no caso dos três gases de efeito estufa bem misturados principais (CO₂, CH₄, N₂O), entre os gases halogenados, com exceção dos CFCs, a tendência da maioria tem sido ao crescimento de suas concentrações.

Variação ao longo do tempo das concentrações de gases halogenados (halocarbonetos e hexafluoreto de enxofre), com valores em partes por trilhão (ppt)

Como consequência do crescimento nas concentrações de quase todos os gases de efeito estufa, ocorreu o aumento do desequilíbrio energético, pois com um efeito estufa mais intenso a Terra conseguiu dissipar menos calor para o espaço. Em termos técnicos, o forçamento radiativo teve um crescimento de 47% de 1990 a 2020, chegando a 3,18 W/m². Em termos energéticos (levando em conta a área do planeta inteiro), isso equivale, num ano, a aprisionar uma quantidade de calor equivalente ao liberado pela explosão de 82 milhões de bombas de Hiroshima. Por conta da contribuição dos outros gases é como se tivéssemos chegado a 504 ppm de CO₂.

Zero. Nada. Niente.

Uma das conclusões do GHG Bulletin corrobora aquilo que já alertamos ano passado em um vídeo em nosso canal no YouTube (“A Pandemia Vai Conter o Aquecimento Global?”): “A desaceleração econômica pela COVID-19 não produziu nenhum impacto discernível nos níveis atmosféricos de gases de efeito estufa e suas taxas de crescimento, apesar do declínio temporário nas emissões”.

Guardemos uma vez por todas na nossa cabeça a seguinte sequência de relações de causalidade envolvendo emissões, concentrações de gases de efeito estufa e temperatura:

1. Emissões causam aumento de concentração: gases de efeito estufa “bem misturados” ou “de vida longa” seguirão se acumulando na atmosfera, com concentrações crescentes, enquanto as emissões forem maiores que as remoções;

2. Excesso de gases de efeito estufa causa aquecimento: enquanto a temperatura não subir até atingir um valor de equilíbrio com a concentração de gases existente na atmosfera, o planeta não vai parar de aquecer.

Ora, por serem gases de vida longa, que permanecem na atmosfera após serem emitidos, precisamos zerar as emissões, para que suas concentrações comecem a cair e o aquecimento global possa desacelerar e, por fim, começar a ser revertido. Divulgamos os principais resultados do Boletim dos Gases de Efeito Estufa com a chamada “Gases de Efeito Estufa Batem Recorde”, mas a triste realidade é que, enquanto as emissões não forem de fato reduzidas a zero, essa frase se repetirá ano após ano. Pior, mesmo com emissões zeradas, é possível que algum aquecimento residual ainda venha a ocorrer. O quanto antes agirmos e fizermos o dever de casa (carbono zero, carbono nada, carbono niente), melhor.

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