O avanço das ideias conservadoras põe a luta das mulheres em evidência
Particularmente da esquerda, há um (su)posto desacordo entre uma militância dedicada às tais lutas identitárias e outra focada na luta de classes. Como enxergar a linha tênue que separa e une essas diferentes narrativas?
Por Fernanda Guedes
No mês de setembro, aconteceu a votação do Prêmio Congresso em Foco, que tem como principais objetivos: avaliar o desempenho dos congressistas e valorizar os que melhor representam a população. Pela primeira vez, este ano são homenageadas com a premiação as parlamentares que se destacaram ao longo de 2021 na defesa de propostas legislativas relacionadas à igualdade de gênero e ao aumento da representatividade polí tica feminina.
A categoria especial “Mulheres na Política” foi disputada por 63 congressistas, dentre elas, Jandira Feghali (PCdoB/RJ), Áurea Carolina (Psol/MG), Maria do Rosário (PT/RS) e Erundina (Psol/SP), parlamentares das mais valorosas e atuantes no país quando o as sunto é o direito das mulheres.
Valorizar e dar voz política às nossas parlamentares é uma ação importante e que se faz necessária como mais um espaço de enfrentamento dos nossos problemas. Entretanto, em meio à ofensiva ultraliberal e ultraconservadora do (des)governo Bolsonaro, que incentiva e se soma a outros governantes hostis e retrógrados, a luta das mulheres não pode se limitar ao subjetivismo.
Com os olhos numa cidadania plena, ao abordarmos esse tema e seus desdobramentos na atualidade, deparamo-nos sempre com um debate polêmico, mas absolutamente necessário. No cerne desse debate, particularmente da esquerda, há um (su)posto desacordo entre uma militância dedicada às tais lutas identitárias e outra focada na luta de classes. Como enxergar a linha tênue que separa e une essas diferentes narrativas? E, a partir daí, como abordar e propor a correção do rumo sem ferir irreversivelmente as suscetibilidades?
É certo que o gênero não possui apenas sexo. Ele também possui classe, etnia, orientação sexual, idade, etc, e todas essas especificidades e diferenças devem ser consideradas, respeitadas e inseridas na análise que fazemos da sociedade e nas propostas e consequente luta que travamos para transformá-la.
O que, infelizmente, parece ser hoje um grave equívoco de um quinhão “identitarista” no conjunto da luta das mulheres é a compreensão de que essas especificidades e diferenças podem ser tratadas isoladamente, nos seus conflitos particulares, sem o entendimento de que o movimento feminista deve convergir para os aspectos político e social.
Hoje, identificamos que falta numa parcela importante da militância feminista compreender que, por mais que o combate ao machismo agregue as mulheres, assim como também o combate a outros preconceitos agrega suas vítimas, a distância entre as classes é o que sempre irá separar os indivíduos. A lógica do capital que promove a exploração do ser humano pelo ser humano e a separação dos indivíduos em classes distintas e distantes é a que determina como todas as formas de opressão são vivenciadas.
É preciso urgentemente que os militantes das lutas identitárias e, evidentemente, fazemos um destaque afetivo e parcial a nós feministas, não percamos de vista nossa sua tarefa precípua e diária de elevação do nível de consciência do povo.
Com esse entendimento, o discurso nessa luta deve ultrapassar a simples referência às “questões da mulher”, ao feminismo burguês que vende, insufla as redes sociais, mas não transforma. Há de se tomar muito cuidado com essa “carnavalização”, onde o glamour obscurece a verdadeira batalha. Nossa luta não pode se restringir a ações onde feministas universitárias de classe média “ensinam” as mulheres a lutar por “causas femininas”, precisamos ampliar o engajamento das mulheres da classe trabalhadora, para que estas possam se reconhecer como um “ser” social e político capaz de ecoar suas potencialida des e fragilidades, ampliando nossa voz na luta de classes. O simples fato de se dizer feminista, de vir a público ou às redes, amplia sim o cenário da luta, mas não é suficiente. Se as mulheres não se politizam, por interesse ou precariedade na educação e na formação política, continuarão ajudando, consciente ou inconscientemente, a máquina misógina desse desgoverno. E nesse contexto, a misoginia na sociedade, nas instituições e na mídia vem sendo uma poderosa arma de controle e dissuasão da atividade política das mulheres, que se manifesta principalmente nos períodos eleitorais.
Portanto, nossa responsabilidade para 2022 aumenta diante do cenário catastrófico que se instala nesse pós(?) pandemia. As perdas históricas de direitos e o desmonte do esta do de bem-estar social e das políticas públicas agravaram a desigualdade entre a minoria rica e a maioria pobre, ficando o abismo ainda maior quando associamos ao gênero. Isso reafirma a necessidade de mobilizarmos o movimento feminista para as lutas anticapitalistas, antirracista e ambientas. Unindo a classe trabalhadora e suas organizações, sem distinção de raça, religião e sexo, para tomar para si a tarefa de lutar por uma verdadeira igualdade social, se colocando à frente de todas as camadas oprimidas e rejeitando a todas as tentativas de dividi-las.
Fernanda Guedes é arquiteta e urbanista, comunicadora e produtora cultural. Feminista e ativista cultural, é integrante da Articulação Nacional de Emergência Cultural e Co-fundadora e coordenadora da Escola de Políticas Culturais.