Sobre o lugar da mulher negra e periférica na sociedade brasileira

Faz tempo que quero escrever sobre os desafios da participação política das mulheres e não tenho conseguido. No Brasil, as mães, mulheres e ativistas não têm um dia de sossego.  O ocorrido na Câmara Municipal de Porto Alegre, nesta quarta-feira (20), evidenciou o lugar que a sociedade brasileira gostaria que estivesse a mulher negra e periférica: o da empregada, o de serviçal dos senhores e senhoras brancas da casa grande.

Somos um país fundado na violência de gênero e raça. A convivência dos povos, diferente do que foi difundido na ideia de “democracia racial” se deu com base na violência praticada pelos colonizadores sobre população de origem africana e indígena.

Como mulheres, temos sido interditadas de participar da política institucional. Com muita luta, conseguimos o direito ao voto nos anos 30. Podemos votar, mas ainda estamos longe de termos as mesmas condições para a participação política. Os homens são socializados com a ideia de que tem todas as condições de assumir cargos de representação e nós, mulheres, somos desencorajadas a ocuparmos esses espaços – em geral, nos dizem que não damos conta, que assim podemos colocar nossas famílias em risco, entre muitos outros desestímulos. E, se ainda assim, corajosamente, nos dispomos a ocupar esses espaços, não temos apoio necessário para nos sentirmos confortáveis. Muito pelo contrário, a violência política é cotidiana. A lista de casos que se tornaram públicos já é bem grande. Mas ela é apenas a ponta do iceberg da violência institucionalizada, estrutural.

No Brasil, atualmente, as mulheres ocupam apenas 12% dos cargos como prefeitas e, ainda assim, não nas cidades maiores e consideradas mais importantes. Somos apenas 16% das vereadoras e, na composição das mesas diretoras, a nossa presença é ainda mais rara. Atualmente só temos uma governadora, Fátima Bezerra (PT-RN), e a primeira mulher eleita presidenta, Dilma Roussef (PT),  foi deposta por um golpe misógino. Marielle Franco (PSOL-RJ), eleita vereadora com 46 mil votos e morta a tiros em 14 de março de 2018. E continuamos sem punição aos mandantes do assassinato político de nossa companheira. Quem mandou matar Marielle e por quê?

Se já é difícil para as mulheres em geral, é mais ainda para as pobres, para as negras, para as periféricas. O lugar que “os de cima” reservam a elas é para servi-los. Foi o que disse a mulher branca, fascista na Câmara de Porto Alegre: “tu é minha empregada”. Não, Bruna Rodrigues (PCdoB), vereadora negra, não é sua empregada! Daiana Santos e Laura Sito também não são. São vereadoras eleitas, apesar do racismo, apesar do machismo e das imensas desigualdades sociais que marcam nosso país. Apesar de não serem “empregadas” a frase diz muito sobre o pensamento da manifestante e seu grupo. Nazistas, supremacistas, negacionistas fazendo sua batalha contra o passaporte vacinal na Câmara Municipal de Porto Alegre. As vereadoras registraram boletim de ocorrência por racismo e apologia ao nazismo.

Embora as vereadoras não sejam “empregadas”, expressam o pensamento racista da manifestante e o que é ser “empregada” neste país. E já podemos começar dizendo que “empregada” não, “trabalhadora doméstica”! É assim que o movimento das trabalhadoras conseguiu inserir a denominação na Constituição Federal de 1988. E, embora seja uma profissão historicamente desvalorizada, composta majoritariamente por mulheres (92%) e negras (68%), segundo a Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (PNAD) de 2018, do IBGE, é uma profissão importante, com mais de 6 milhões de trabalhadoras que exigem respeito.

Sabemos que essa turma reacionária nega o fim da escravização e trabalha pela manutenção de seus privilégios de classe, raça, gênero – as recentes denúncias de escravização do trabalho doméstico como de Madalena Gordiano, em Minas Gerais no final de 2020, explicitam essa condição. Por isso continuamos afirmando: trabalhadoras domésticas sim, empregadas não! As leis estão em baixa no Brasil com o governo das milícias, mas é importante que os setores democráticos e progressistas defendam os mandatos e os direitos das vereadoras negras eleitas e o direito das trabalhadoras domésticas de não serem desrespeitadas  por ninguém.

Nossa solidariedade às vereadoras e aos vereadores que bravamente enfrentaram manifestantes supremacistas nazistas na Câmara Municipal de Porto Alegre. Um salve à  bancada negra! Um salve especial às trabalhadoras domésticas e às suas organizações. Se uma vereadora passa por essa violência no espaço público, imagina o que tem passado as trabalhadoras domésticas com esse tipo de patroa/patrão no espaço privado. É preciso que lutemos contra essa violência, invisibilidade, desvalorização e precarização do trabalho das TRABALHADORAS DOMÉSTICAS.

Os tempos estão muito difíceis. É preciso enfrentar com coragem esses senhores e essas senhoras de engenho. Somos descendentes de quem resistiu a tudo isso. Devemos fazer a nossa parte. O tempo todo. Essa tarefa é para hoje, não podemos deixá-la  para 2022. As vereadoras e vereadores de Porto Alegre nos deram a linha. Sigamos. É tudo pra ontem.

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