“Ao sair de nossas aldeias, nós indígenas temos em mente que Bolsonaro é pior que o vírus”

Foto: Kamikia Kisedje

Texto por Andressa Santos Cruz 

O acampamento ‘Luta Pela Vida’ alcançou uma marca histórica no terceiro dia (24/ago): com mais de seis mil indígenas de 172 povos, o evento se tornou a maior mobilização indígena já registrada no Brasil. “Ao sair de nossas aldeias, de nossos territórios, de nossas comunidades, todos nós indígenas temos em mente que Bolsonaro é pior que o vírus”, relata a antropóloga e arte-ducadora Tai Kariri. “Porque ele assassina não só os corpos indígenas, ele assassina também o espírito, a memória e a luta de quem quer continuar semeando vida sobre a terra.” 

Tai é do povo Kariri, do estado da Paraíba e, assim como a maioria dos presentes, passou cerca de três dias viajando de ônibus até chegar no acampamento. Ela conta que, mesmo com os imprevistos e o desconforto da rotina de acampada, “a gente está aqui forte para lutar contra o Marco Temporal e o Projeto de Lei 490”. 

Ambas as políticas fazem parte da agenda bolsonarista e estão para ser votadas em Brasília, servindo ao interesse de Bolsonaro e do agronegócio que querem explorar as riquezas naturais dos territorios indígenas. Além de violar os direitos indígenas garantidos na Constituição Federal, as medidas ameaçam a existência dos povos originários de norte a sul do país e o futuro das florestas, já que os indígenas foram reconhecidos pela ciência como os melhores guardiões ambientais do Brasil, a exemplo do relatório da ONU publicado em março que analisou mais de 300 estudos. 

Em resistência, portanto, à política anti-indígena e antiambiental bolsonarista, a Praça da Cidadania de Brasília virou um mar de barracas, com guerreiras e guerreiros de todas as idades e de todas as regiões, todos unidos em defesa do direito à vida, sob o lema ‘nossa história não começa em 1988’, fazendo uma alusão ao julgamento previsto para começar na quarta (25). 

Na véspera da votação prevista, entre o sol e o asfalto quente de Brasília, a mobilização seguiu em marcha até o Supremo Tribunal Federal carregando mais de 1.300 faixas com os nomes de todas as terras indígenas. “É um ato pacificio do movimento indígena de demonstração de apoio ao STF nesse momento que está sendo atacado. E dizer que nós confiamos nos ministros, que eles vão se posicionar de forma favorável aos povos indígenas”, diz Eloy Terena, advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

A ação em decisão no STF dará um ultimato ao Marco Temporal — de um lado, está a tese do Indigenato, desenvolvida por um ex-ministro do Supremo em 1902 e que assegura o direito originário dos povos indígenas à terra que tradicionalmente habitam; e de outro, está a tese do Marco Temporal, criada por ruralistas para restringir as demarcações de terras indígenas e validar as invasões, os roubos e o desmatamento dos territórios tradicionais.

Demarcação da Terra Indígena Laklãnõ afeta indígenas de todo Brasil 

O centro do processo prestes a ser votado pelos atuais ministros do Supremo é a demarcação Terra Indígena (TI) Laklãnõ, em Santa Catarina, que abriga o povo Xokleng e algumas famílias Kaingang e Guarani Mbya. Porém, o processo foi considerado de Repercussão Geral em 2019, ou seja, a decisão servirá para todas as demarcações de terras indígenas, o que atraiu a atenção de agronegócio e entidades anti indígenas que estão pressionando o STF para que o resultado seja favorável aos invasores, grileiros e desmatadores. 

Apesar de já ter sido reconhecida pela Funai, a TI Laklãnõ foi questionada há mais de 20 anos com base no Marco Temporal e até hoje aguarda o resultado. A anciã e professora Xokleng, Ilza Coctá Priprá, de 68 anos, acompanhou o início da batalha judicial em Brasília e, mesmo de luto e da idade avançada, voltou à capital duas décadas depois. “A primeira vez que vim foi com meu marido. Ele já se foi, meu pai também esperou e não pode ver, faleceu no sábado passado. Então, os que vinham já se foram, meus filhos vieram e pensei de acompanhar, vir junto, atrás desse direito.” 

O sonho dela é que a terra seja finalmente demarcada pelo futuro das gerações e das tradições Xokleng, como o costume ancestral de produzir mel, que é a base da bebida típica do povo, o Mõg. “A gente quer deixar uma parte para criar os bichinhos, pra dar aquele mel que antigamente tinha, hoje não se encontra mais nenhum mel, pelo menos para mostrar para os nossos filhos de hoje.”