O indígena e a máquina do tempo
Indígenas precisariam entrar numa máquina do tempo e no decorrer dos séculos para se enquadrar às novas normas da FUNAI.
Há poucos meses, a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) mudou os critérios para definir quem é indígena ou não no país. Dentre os novos requisitos estão “a origem e ascendência pré-colombiana” e a “identificação… cujas características culturais sejam aquelas distintas da sociedade não índia“.
Estima-se que dos 2,5 milhões de habitantes pré-cabralinos dessas terras, apenas 10% sobreviveram à varíola até finais dos 1600. A doença trazida pelos europeus avançou por essas terras mais rapidamente que as próprias expedições. Nas reduções jesuíticas do XVI ao XVIII, o indígenas que sobreviveram, foram proibidos de falar seu idioma, usar suas roupas e realizar seus rituais. Foram catequisados.
Durante a ditadura militar, os campos de concentração indígenas estavam em plena atividade, como o Reformatório Krenak e a Fazenda Guarani. Nesses campos de concentração, falar o idioma nativo levava à punição física. Em 1976, o ministro do Interior praguejou: “Até o ano 2000 não haverá mais índios no Brasil!!”.
O conhecido projeto de emancipação da ditadura, que na verdade era o projeto de invasão da Amazônia, consistia na criação de um instrumento jurídico que discriminasse quem é indígena e quem não é, para retirar do Estado a responsabilidade tutelar dos que não carregassem mais os estigmas indianistas e finalmente transformá-los em trabalhadores e pobres. Durante esse projeto de emancipação, muitos grupos indígenas se organizaram para defender sua ancestralidade e ter o direito de se declarar indígena, fazendo o projeto ditatorial morder seu próprio rabo e fazendo com que o Brasil hoje tenha mais etnias indígenas que no final dos anos 70! Uma consciência indígena reascendeu, mais uma vez na história, para assegurar seu direito à terra.
Hoje, com as novas normas da FUNAI, muitos indígenas precisariam entrar numa máquina do tempo e no decorrer dos séculos, conseguir escapar de toda perseguição e aculturação a que foram submetidos para poder se enquadrar às novas normas. Precisariam fugir do avanço das cidades e se esconder onde elas ainda não chegaram. Os indígenas que hoje vivem onde a cidade não chegou, vivem a ameaça extrativista.
Um governo que vem mostrando compromisso em facilitar o avanço da grilagem, da mineração e desmatamento clandestinos é também um governo interessado em ter o menor número de indígenas nessas terras.
Lendo as novas normas da FUNAI, tenho um pensamento. Sento em frente ao computador e escrevo: “Quantos brasileiros foram mortos pela ditadura militar?”. A mesma resposta vem de diversos órgãos: “434 brasileiros foram mortos pela ditadura militar”. Desconfiado, pergunto mais: “E quantos indígenas foram mortos pela ditadura militar brasileira?”. A resposta não me causa espanto: “8.350 índios foram mortos pela ditadura militar brasileira”. Ao matá-los, nunca os contabilizaram como corpos brasileiros.
Hoje, para lhes arrancar os últimos direitos e avançar com a extração ilegal, o governo, via FUNAI, agora profere novo ataque aos povos indígenas, criando o máximo de dificuldade para que um indígena possa comprovar; o que já é a maior das ofensas; ser ele, ele mesmo.
Nota: O atual presidente da FUNAI é um delegado da polícia federal. No ano passado, o ministro da Educação vigente declarou: “Eu odeio o termo povos indígenas! Eu odeio esse termo!”. Antes de se chamar FUNAI, o órgão já levou o nome de “SPILTN – Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais”.