Um corpo para consumo nas redes
Muitas pessoas olham para suas imagens deformadas na tela do celular e enxergam isso como um upgrade de si mesmo.
Mariana não se achava linda, mas estava satisfeita com a sua aparência até começar a seguir a blogueira X, Julia gostava do seu nariz, mas experimentou um aplicativo que “melhora” a aparência e agora sonha com uma rinoplastia e segue perfis de profissionais que fazem o procedimento, já Fernanda só grava vídeos munida de mais um filtro novo do Instagram. Mariana, Julia e Fernanda são fictícias, mas retratam a realidade de milhões de meninas e mulheres no mundo todo.
O corpo exprime o elo entre a natureza e a cultura. O ser humano sempre se relacionou com o mundo a partir e através de seu corpo. Mas quando o corpo deixa de ser um local de representação da identidade social e passa a seguir a lógica da mercadoria?
O corpo na sociedade contemporânea está vinculado ao sucesso em diversos setores da vida: amoroso, financeiro, profissional e familiar. Ele assume um papel relevante nas relações sociais, vira objeto de investimento e se torna moeda de troca. Ele precisa ser melhorado e ajustado. E assim se inicia uma busca frenética pela adequação a qualquer custo. Basta uma simples busca em qualquer plataforma de mídia social para encontrar centenas de ofertas de procedimentos estéticos, cremes milagrosos e blogueiras fazendo ginástica. E para quem não se submete a esses procedimentos existem os aplicativos e filtros. É como uma plástica express, na palma da sua mão. Uma espécie de realidade pararela, onde somos o que desejamos ser. Uma versão irreal de nós mesmos. E assim se inicia uma espécie de “curadoria de si mesmo”, onde nos tornamos um produto a ser exposto nas redes. A aparência física torna-se passaporte para ascensão social. Tudo é “filtrável”, você e até o céu na sua varanda pode ficar mais bonito.
Por mais inofensivos que possam parecer, os aplicativos e filtros, se usados de forma descontrolada, acabam transformando a forma como nós mesmos nos enxergamos. E qual o objetivo dessa explosão de transformações físicas a um clique? Muitas pessoas olham para suas imagens deformadas na tela do celular e enxergam isso como um upgrade de si mesmo. Assim como um produto que recebeu uma melhoria, essas imagens circulam à espera da validação por parte de seus “consumidores” através de likes e seguidores.
Precisamos mesmo nos transformar em versões irreais e computadorizadas de nós mesmos? A imagem e a vida que expomos nos nossos perfis nas plataformas digitais é realmente condizente com o que somos? O quanto se torna concreta a produção de uma imagem que temos de nós mesmos? Para o psicólogo e psicanalista Ronaldo Coelho, antes da explosão das redes sociais, filtros e aplicativos de imagem, nós tínhamos um ponto de vista mais simbólico ou imaginado de nós mesmos dentro da nossa cabeça, ou seja, a gente construía essa imagem de uma forma descolada da realidade e isso fazia com que pudéssemos entender a diferença entre a imagem imaginada e a imagem concreta. Essa imagem se tornava apenas um norte a ser seguido, mas sem a obrigação de ser alcançado. Com a chegada de tecnologias que transformam nossos rostos e corpos em apenas um clique, essa imagem se torna tão concreta e palpável que cria uma ideia de que precisamos ser daquele jeito, afetando principalmente os mais jovens. “Por terem uma ligação com esses recursos tecnológicos muito forte, os jovens acabam sendo os mais afetados. Eles passam a ter a necessidade de ser do jeito que aparecem na tela. Eles querem ser como as suas imagens distorcidas pelo filtro. Não é à toa que temos um índice enorme de número de cirurgias plásticas para adolescentes que chegam nos consultórios pedindo para ficarem exatamente como estão na foto “filtrada”. Eles desejam ser como imaginam que devem ser, ou como o filtro mostrou que eles podem ser. Essa imagem de si mesmo não é mais um norte, e sim quase uma obrigação. Essa obrigação muitas vezes não fica apenas na forma física, mas passa também para a vida como um todo, ou seja, essa idealização de si mesmo é transposta para as dimensões não materiais como um talento, por exemplo. A pessoa quer ser uma estrela da música, mas ao invés de trabalhar para isso, ela fica obcecada por número de likes e seguidores, e quando isso não bate com o sucesso almejado, ela pode acabar tendo uma relação extremamente destrutiva consigo mesma. Ela não entende aquilo como um norte a ser buscado, mas sim como algo que ela tem obrigação de ser” explica Ronaldo.
Com a lógica do mercado dominando a vida cotidiana, é muito difícil não sentir a cobrança para ter um corpo e uma vida dentro dos padrões estabelecidos pela sociedade como os ideais. Pensar nesses padrões e como eles são reforçados por recursos tecnológicos em forma de produto para consumo é pensar também como a nossa sociedade está estruturada. Uma sociedade que valoriza a forma e a imagem acima de tudo não poderia produzir um corpo distante dessa maneira de pensar. Ética e estética são partes constitutivas de uma mesma percepção de mundo. O indivíduo é visto como um empreendedor de si mesmo e culpabilizado quando não corresponde as expectativas de seu círculo social. A saúde, a aparência física e muitas outras esferas da vida também passam a seguir as lógicas do mercado. Quando entramos no processo de que precisamos ter aquela imagem idealizada por recursos digitais ou a vida que criamos nas redes sociais, podemos cair num movimento destrutivo por não conseguirmos sustentar o personagem que construímos de nós mesmos.