Salvador da Rima, a truculência da PM e os desafios do Funk
Martela na minha cabeça a antológica letra da dupla Cidinho e Doca considerada um dos maiores hinos de favela de todos os tempos: “ser feliz, andar tranquilamente na favela em que eu nasci” devia ser nosso projeto comum de sociedade e não nossa utopia distante.
No último sábado (27), assustei com o número de notificações e mensagens no celular. Eram directs de amigos, posts de MCs, todos falando sobre a prisão truculenta (e injusta) do MC Salvador da Rima. O vídeo, que agora já está por todas as partes, mostra a polícia arrancando o funkeiro de dentro da casa do seu fotógrafo, Vitor Mesquita. No áudio, é possível ouvir uma molecada questionando a atuação de um grupo enfurecido de policiais sem máscara. Um dos agentes aparece empurrando Salvador pra fora da casa. Algumas pessoas, tentam impedir o absurdo, mas outro policial, de arma em punho, se coloca na frente. Outros jovens gritam, enquanto Salvador é sufocado pelo mesmo PM que o tirou da casa. É a namorada do artista Kelly Araújo quem enfrenta o agente pra que ele solte o pescoço de Salvador, enquanto outro policial faz cobertura para a arbitrariedade.
Fiquei horrorizado com a truculência com que a polícia atuou. Não que seja uma surpresa, mas o despreparo que é possível observar no vídeo é surreal. A cena toda aconteceu porque o grupo de jovens deixou um som rolando em um carro estacionado na rua, em frente à casa. A viatura que estava de passagem parou e pediu a CNH de um dos jovens que estava dentro do carro parado. O rapaz disse que não era habilitado e que também não era dono do veículo, o que foi suficiente pra um dos policiais anunciar que iria multá-los. Foi nessa hora que Salvador se manifestou dizendo que não fazia sentido algum multar um veículo estacionado por causa da música ou porque quem estava dentro não tinha habilitação. E foi aí que um dos policiais reconheceu o artista. Salvador é famoso por suas críticas ao comportamento agressivo da Polícia Militar de São Paulo contra moradores das periferias. E esse foi o estopim para o que eu acabo de descrever.
O que o grupo fazia antes da abordagem era se preparar para um jogo de várzea em Paraisópolis, na zona sul de São Paulo. O time “Amigos do Salvador da Rima” ia enfrentar os “amigos do MC Brinquedo” em uma partida beneficente, pensada pelos dois artistas para arrecadar alimentos que seriam doados às famílias afetadas pela crise econômica que se aprofundou na pandemia.
Quando entendi melhor a situação, Salvador já estava detido no 67º DP, no extremo leste da capital. Fui durante todo o caminho conversando com advogados e empresários do funkeiro, agenciado pela produtora artística GR6. Na porta da delegacia, uma multidão de fãs esperava a libertação do artista. Debaixo de chuva, eles cantavam trechos da música “Vergonha pra Mídia”, composição de Salvador e dos MCs Ryan SP, Nog, Kevin e Lele JP. Os beats feitos com a boca, palmas sincronizadas e o coro: “Olha, o momento é um tapa na cara/ Poucas ideia, vergonha pra mídia/ tem que colocar o c** do Datena no ar/ e falar que os Mandrake deu perdido na polícia”. Era a violência sistêmica ganhando uma reposta poética.
Na delegacia, a maior confusão. Os policiais queriam que Salvador assinasse uma acusação de “resistência à prisão”, o que um dos advogados do grupo GR6 o Dr. Gabriel Constantino conseguiu derrubar (por enquanto). Ainda assim, o artista precisou assinar um termo circunstanciado de desacato à autoridade e foi liberado por volta das 20h, aclamado pela molecada que o esperava lá fora. Moral da história? Pra quem queria evitar um problema ou dar uma lição, a PM sem máscara, criou mais dois: promoveu uma aglomeração impressionante na frente da delegacia e ainda impediu o jogo beneficente que ajudaria centenas de famílias que estão passando dificuldades no último período.
O funk pede paz
No último período, a hashtag #funkpedepaz ganhou força. É música, é cultura, a gente não deveria estar falando de dor, eu penso. Mas, como ativista pelo Funk e tendo dedicado meus últimos 10 anos a essa luta, percebo que o maior desafio que temos hoje é entender que o dinheiro não compra a nossa liberdade e que ainda temos muito trabalho para enfrentar a criminalização que sofremos por parte do Estado, na figura das polícias, da mídia e da própria sociedade.
Hoje, o funk é uma das expressões artísticas periféricas mais fortes do país e o maior movimento cultural do planeta em termos de números, gerando milhões em receita pras produtoras e artistas, perdendo somente para o sertanejo, mas ocupando o topo do podium em número de visualizações nas plataformas digitais. Segundo levantamento feito pelo Spotify, o funk teve um crescimento no consumo global de 4.694% entre 2016 e 2020. E isso não se dá só pela exposição dos corpos ou letras com teor sexual, como o preconceito de muitos pode supor. O clipe da música “Ilusão – Cracolândia”, por exemplo, dirigida por Buiu Frenesi e com participação do DJ Alok, Mc Hariel, Mc Davi, Mc Ryan SP, Djay W e o próprio Salvador da Rima é que chamamos “funk consciente” e teve mais de 147 milhões no YouTube em apenas 3 meses.
Coincidindo com o meu período de militância no movimento, o funk em São Paulo conseguiu se organizar comercialmente de uma maneira impressionante. As produtoras de Rodrigo Oliveira (GR6) e Konrad Dantas (Kondzilla) geram mais de 300 empregos diretos, faturam mais de 100 milhões por ano e somam quase 50 bilhões de visualizações no YouTube. O resultado disso é um grande assédio da indústria cultural, mas não o fim do preconceito contra as nossas quebradas, os nossos jovens ou contra a nossa cultura. Cenas como as que vimos neste fim de semana continuam acontecendo, sem constrangimento da polícia e sem o devido apoio do poder público.
Algumas coisas precisam mudar pra que essa situação tenha fim:
O campo progressista precisa se comprometer com as demandas do funk pra além da naturalização da criminalização e do uso político dos beats nos jingles das campanhas. Precisa propor leis que protejam o funk como expressão cultural, que priorizem a educação da quebrada e os espaços de lazer, além de valorizar as mulheres e homens que correm pelo movimento fazendo tudo sem apoio institucional, coisas que eu já venho falando há muito nesta coluna;
É urgente também que os atores que compõe a cultura funk estejam unidos. Precisamos de uma compreensão maior de quais são as lutas históricas que envolvem nosso movimento, lutas essas que nos conectam a outros movimentos periféricos como o samba e o rap. Só assim, vamos deixar de confundir as disputas comerciais (legítimas dentro do sistema em que vivemos) com as questões sociais e políticas das quebradas. Essa compreensão vai permitir que o nosso trabalho se converta em uma história de sucesso coletiva e não de alguns poucos. E o sucesso que eu falo aqui pode ser simplesmente estar vivo. Isso porque, quando estoura algum caso de agressão, morte, perseguição ou desrespeito por parte da mídia, do Estado ou de qualquer cidadão isolado, o ataque não é contra um de nós, é contra todas e todos nós, contra a nossa cor, nosso estilo de vida e nossos territórios;
E por último, mas talvez mais importante: as polícias também precisam estar abertas para ouvir. Vira e mexe eu converso com algum agente que concorda com isso, mas desvia a conversa ancorado no argumento de que existe hierarquia e no fundo, ele só está cumprindo ordens. Ou seja, também existe opressão nessa obediência cega, desumana. E no geral, sofremos todos nós. Se por um lado temos a polícia que mais mata, por outro, temos a polícia que mais morre. E parte significativa dessas mortes de policiais é por suicídio. Em 2018, inclusive, as mortes de policiais por suicídio superaram as mortes em confronto pelo país.
A sensação que eu tenho, é que em pleno o ano de 2021, estamos vivendo como nos bailes de corredor dos anos 90: lado A contra lado B; alemão contra sangue bom; asfalto contra o morro. Isso só tem nos atrapalhado e impedido de enfrentar o real “Alemão” que é esse sistema que lucra com a perpetuação de uma sociedade racista e classista.
Depois de um fim de semana desses, martela na minha cabeça a antológica letra da dupla Cidinho e Doca considerada um dos maiores hinos de favela de todos os tempos: “ser feliz, andar tranquilamente na favela em que eu nasci” devia ser nosso projeto comum de sociedade e não nossa utopia distante.