Empoderamento tecnológico na periferia
Conheçam Arthur Granda do Jovens Hackers, projeto que impacta a vida de crianças e adolescentes da periferia ensinando sobre tecnologia e cultura hacker.
”O Jovens Hackers não é apenas meu emprego ou atividade profissional, é meu propósito de vida, então fica difícil definir em uma linha do tempo quando ele surgiu. É como se tudo que eu fiz na vida tivesse o intuito de me trazer para onde estou hoje.”
Começou Arthur na videoconferência na manhã de domingo. Nossa conversa foi praticamente um café virtual regado de muita emoção, muita história dos altos e baixos durante a construção da iniciativa Jovens Hackers.
Ele nasceu, cresceu e morou a maior parte da vida nas periferias, onde vive atualmente. Passou a infância em Mairiporã, que chama de periferia da periferia, por ser região metropolitana e ainda mais distante do centro de São Paulo.
Na adolescência foi incentivado pela professora Tomiê, de Matemática, a prestar vestibulinho para um curso técnico em São Paulo. Escolheu informática e passou, mas mesmo sendo fascinado por tecnologia desde criança, achou que aquilo não era para ele. Tudo era apresentado de uma maneira que não atraía e o encanto com a área acabou ali.
O mundo perdeu um programador mas ganhou um jornalista.
Incentivado por outras professoras, todas de português, conseguiu entrar em uma universidade para cursar Comunicação Social. Durante o curso, assistindo a uma palestra de um jornalista famoso, ouviu algo que o fez refletir por anos. Ele estava lançando um livro e iria reverter o lucro obtido com as vendas para a universidade pública que estudou, como forma de retribuir pela formação que recebeu. Segundo ele, essa era uma prática comum em outros países. Foi um estalo para, mesmo vindo da periferia, reconhecer seus privilégios.
As duas formações, a técnica e a superior que estava em curso, haviam sido totalmente financiadas com dinheiro público. O curso de informática em uma escola técnica estadual e a faculdade por meio de um programa federal que oferece bolsas de estudos em instituições particulares para estudantes de baixa renda. O pai, natural do Norte de Minas Gerais, não terminou o ensino fundamental e a mãe do interior de São Paulo parou os estudos no Ensino Médio. Arthur foi um dos primeiros da família a chegar ao ensino superior, algo possível apenas graças a esse programa social.
Perdeu colegas da escola e vizinhos para o crime e as drogas, mas independente do ambiente externo, dentro de casa nunca faltou apoio e principalmente amor. A mãe sempre foi minha incentivadora incondicional, proporcionando que ele focasse apenas nos estudos.
“Todos os meus privilégios me geraram mais do que uma vontade, era uma necessidade de, assim como o jornalista famoso, retribuir para a sociedade tudo que eu havia recebido, e quanto mais eu adiava, mais aquilo me incomodava.”
Até que alguns anos mais tarde, já formado e bem empregado em uma assessoria de comunicação, com um salário que o permitia manter um padrão de vida que nunca havia imaginado chegar, resolveu pedir demissão.
Em um momento sabático resolveu dar um rolê em outro continente.
Até aquele momento, o mais próximo de um avião que Arthur havia chegado tinha sido passando por Guarulhos com o pai para visitar o tio em Ferraz de Vasconcelos. Já nas semanas seguintes foram quase dez voos internacionais entre cidades de quatro países.
“Outro privilégio foi conseguir enxergar, com vinte e poucos anos, que a vida estava passando depressa demais e estava cada vez mais distante das pessoas que amava.“
Empoderando crianças por meio da tecnologia e da educação
No início, Arthur estava buscando conteúdo sobre programação para crianças, e duas coisas chamaram a sua atenção: poucas coisas em português e um conteúdo específico, em inglês, que o cativou. Era tão incrível que ele, mesmo adulto e com conhecimento no assunto, adorava fazer. Tive a certeza que se tivesse tido acesso a isso muitos anos antes, e não com o conteúdo duro, técnico e massante do curso técnico, não teria abandonado a área. Era a aprendizagem criativa, que faz jus ao nome pois apresenta conceitos fundamentais de forma lúdica.
Aprendeu que programar pode e deve ser algo leve e todo o seu processo deve ser feito com alegria. Afinal, diferente do nosso objeto de estudo, seres humanos não são máquinas.
“Crianças podem ser curiosas, mas se o projeto não significar algo especial para cada uma delas, se as pessoas ao redor não formarem uma equipe (incluindo o educador), se não houver paixão e a experimentação não for divertida, não há engajamento e o resultado não será bom.”
A cada nova informação pesquisada e processada, mais tinha certeza que era aquilo que queria fazer da vida.
O primeiro laboratório de aula foi a sala da casa da irmã, sendo os sobrinhos as cobaias e primeiros alunos. Naquele momento finalmente descobriu uma maneira efetiva de retribuir para a sociedade, tudo que recebeu: empoderando crianças por meio da tecnologia e da educação.
E para a sua surpresa o primeiro “cliente” foi o setor público.
Elaborou um projeto para um edital da Prefeitura de São Paulo e foi um dos selecionados. Com o subsídio público, saiu de dois alunos em Palmeiras, periferia de Suzano, para mais de 500 no Campo Limpo e em Paraisópolis, na zona sul. Tudo isso em 2016/2017, mas o termo Jovens Hackers só nasceu mesmo em 2018, quando surgiu a necessidade por um nome para participar da seleção para uma aceleradora.
Já havia tido uma experiência no terceiro setor, mas as coisas começaram a fazer mais sentido quando descobriu o conceito dos negócios de impacto social, o chamado setor 2.5 (um meio termo entre uma empresa tradicional e uma ONG).
O objetivo era não mais depender apenas de editais e buscar uma sustentabilidade financeira para a agora empresa. No começo foi difícil entender que para sobreviver, precisava transformar tudo aquilo que sempre fez de maneira voluntária em um serviço. Mas na aceleração pode se conectar com outros negócios inseridos em contexto periférico e aprender muitas coisas não apenas sobre empreendedorismo, mas também sobre pertencimento a um território.
“A periferia sempre foi vista como beneficiária de programas sociais, nunca como protagonista. Sempre alguém vinha de fora com soluções prontas para problemas que ele não vivenciava, para tirar uma foto e aparecer no jornal. Depois ele ia embora, mas o problema não.”
Certa vez em um evento, ele ouviu o palestrante dizer que algumas empresas do Vale do Silício limitavam a velocidade da internet para que os desenvolvedores soubessem como o programa iria rodar em países pobres. Somos a oitava maior economia, mas somos pobres porque somos a nona nação mais desigual do mundo. A riqueza gerada não chega nas beiradas das cidades e isso o salvador da Faria Lima e os devs de Mountain View nunca saberão.
Tony Marlon diz que “a pobreza não dá conta de matar todos os sonhos, de todas as ruas, de todas as periferias e favelas, de todo o mundo”. E a melhor maneira de dificultar o trabalho da pobreza é investindo na educação.
Em 2013 o então presidente dos EUA Barack Obama se dirigiu aos jovens do seu país e disse que aprender ciências da computação não eram habilidades importantes apenas para o futuro deles, mas para o futuro do país. “Se quisermos continuar a ser um país de ponta, precisamos que vocês dominem as ferramentas e as tecnologias que mudarão a forma como fazemos todas as coisas”.
“Se para o líder da maior potência econômica do planeta essa é uma questão estratégica, imagina a revolução que não pode causar aqui nas nossas quebradas. Em um país com milhões de desempregados, o setor de TI enfrenta um déficit muito grande de profissionais. Não há mão de obra qualificada na proporção necessária.”
Mas muito além da questão profissional, o maior poder da tecnologia é transformar a vida das pessoas. Quando Arthur fala em empoderar jovens por meio da tecnologia, se refere em oferecer conhecimento e ferramentas para hackear suas próprias vidas e a de todos em sua volta.
“Estou falando do Peterson, que foi meu aluno em 2017, quando ele tinha 9 anos. Morador do Campo Limpo, zona sul, ele sempre foi muito esperto, brincalhão e comunicativo. Seu maior sonho na época era fazer um aplicativo para ajudar sua avó que não conseguia ouvir muito bem a se comunicar melhor com as pessoas. Já o Murilo, de Guarulhos, se encantou com as aulas e se dedicou tanto a ponto de conseguir uma bolsa de estudos para participar do time de robótica em uma escola particular, chegando a ganhar medalhas em competições importantes.”
A periferia vibra, pulsa, é potente e inovadora. A escassez de alguns recursos a torna um hub de inovação e o maior laboratório de prototipagem que existe. Quando alguém colocou um prego ou inverteu o lado da sola do chinelo pela primeira vez, foi por necessidade, tanto de estética quanto de usabilidade.
“Na periferia é onde se concentram os maiores fazedores, criadores e compartilhadores de tecnologia que se tem notícia. Apesar do nome novo e em inglês, a periferia já conhece o movimento maker há muito tempo. A famosa gambiarra, quando realizada na periferia é pejorativa, mas se vem do MIT é disruptiva.”
O conhecimento formal é muito importante, mas para uma transformação real é necessário primeiro haver uma troca e não uma imposição. A academia tem tanto a aprender com a periferia quanto o inverso.
Arthur não sabe se o Gui, o Lucas, o Peterson, o Murilo ou qualquer um dos mais de mil alunos do Jovens Hackers se tornarão programadores ou cientistas da computação. Mas esse nunca foi o objetivo. Assim como nem todos que aprendem história se tornam historiadores, não necessariamente quem aprender a programar seguirá profissionalmente na área. Mas a programação deve se tornar a grande linguagem universal das próximas décadas e é uma habilidade que desenvolve diversas competências fundamentais no mundo atual. Países desenvolvidos já perceberam e estão investindo bilhões de dólares nisso. Não temos todo esse dinheiro, mas o propósito do Jovens Hackers é juntar pessoas com o mesmo objetivo e fazer o mesmo nas nossas periferias.
A maioria das informações que você leu aqui, foram escritas pelo Arthur sozinho. Quando começamos a entrevista, ao lembrar da jornada, ele se emocionou muito. Ouvir esse cara é para mim inspirador e faz acender aquela chama aqui dentro, de acreditar sempre nos nossos sonhos.
Obrigada por compartilhar sua jornada conosco Arthur.
A iniciativa Jovens Hackers está com uma campanha de financiamento coletivo (matchfunding) que você pode apoiar em: www.benfeitoria.com/
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