Um ano do massacre de Paraisópolis
Dois dias após as eleições municipais em São Paulo, uma triste efeméride bate à porta: um ano da morte dos nove jovens negros e periféricos assassinados por policiais militares no Baile da DZ7, em Paraisópolis.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
Esse é um trecho da nossa Constituição, documento finalizado em 1988 e que vigora hoje, capengando, em todo o território nacional. Pra quem vem de onde eu vim, é fácil ver na vida cotidiana as entrelinhas do texto: alguns são mais iguais que outros. Alguns são mais submetidos à tortura que outros. E a expressão artística e cultural de alguns também vale mais do que a de outros. Na cidade de São Paulo, o outro matável, o não-igual, está nas bordas. Como estavam os nove jovens brutalmente assassinados no fluxo da DZ7, na Favela de Paraisópolis, há exatamente um silencioso ano.
A versão da Polícia Militar daquele 1º de dezembro de 2019 é de que dois homens teriam atirado contra agentes da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas) e fugido em uma moto em direção ao baile. Vários protestos foram organizados, centenas de reportagens na TV e nos jornais, mas as famílias seguem sem repostas, sem atendimento psicológico; sem indenização por parte do Estado.
Durante todo o processo eleitoral que culminou na reeleição do prefeito Bruno Covas (PSDB), o funk surgiu como um tema-problema em várias sabatinas e entrevistas. “O que fazer com os fluxos?” foi pergunta frequente pros candidatos. Só um deles, Guilherme Boulos, tinha uma resposta que tratava a cultura periférica como cultura. Mas ele perdeu neste domingo (29) e, pelos próximos quatro anos, só podemos imaginar o que seria uma prefeitura que, pelo menos em teoria, olhasse pro nosso movimento funk por uma lente mais generosa, menos racista, menos classista.
O projeto vencedor é de um partido que, há décadas, usa a estigmatização da quebrada como suporte para um discurso falido de segurança pública que, por sua vez, sustenta um apartheid imprescindível para sua concepção de cidade-negócio. Transformar a cidade numa colônia de exploração do grande capital depende da criminalização desses jovens, dos seus territórios e, claro, da sua arte. Não da arte como negócio – essa vai de vento em popa, quando o “pancadão” acontece nas boates da Vila Olímpia. O que se criminaliza é o movimento que a gera.
Família, a gente não pode se iludir: isso vai continuar. Os fluxos vão continuar sendo caso de polícia, enquanto a playboyzada bate com a bunda no chão de mármore. Claro que tem terno e gravata debatendo nosso sangramento. Genocídio dá má publicidade, inclusive lá fora. O problema é que nós não estamos na mesa para negociar e exigir o que queremos para nós, pras nossas manifestações culturais e principalmente, pras nossas quebradas.
União, consciência e ação
Só na cidade de São Paulo ainda existem cerca de 300 fluxos. Todos eles causam problemas e trazem soluções para a favela. Tudo ao mesmo tempo: barulho e renda; sujeira na porta e diversão pra molecada; empoderamento feminino e letras controversas. A questão é: como lidar com essas contradições? É urgente a necessidade de diálogo e planejamento.
Para que isso aconteça são muitos os espaços que precisam se comprometer. As produtoras, as e os MCs, toda a cadeia produtiva do gênero, precisa estar envolvida. Onde sua música toca? Que riscos o seu fã corre pra curtir o som que você produz? Que música tava rolando quando a molecada morreu sufocada pela mão dos PMs? Entende como a responsabilidade é de todos nós? O que você tem a ver com isso e o que você tem feito pra mudar essa realidade que atinge seus camaradas de infância, sua família que até ontem tava na favela?
Pra gente poder se autodeclarar movimento, a gente tem que fazer mais do que ganhar dinheiro, views, seguidores, ditar tendência estética e levantar temporariamente um ou outro mano da pobreza. A gente precisa garantir a vida dos nossos 20 milhões de funkeiras e funkeiros e, por extensão, das nossas comunidades. Se formos conscientes e inteligentes o suficiente, se tivermos amor suficiente pela nossa arte, garantiremos também o sustento da maioria deles e delas também.
Políticas públicas contra o extermínio
Esse poder público que está aí não gosta da gente, fato. Mas se a gente quiser que o funk não seja tratado apenas pela pasta de segurança pública, o diálogo vai ter que acontecer. A gente quer que o gênero seja tratado como cultura, com incentivo e condições de desenvolvimento. Do contrário, vamos seguir sendo estigmatizados, tanto o movimento, quanto o público e os artistas. Afinal, persiste a ideia de que todo bandido é funkeiro e todo funkeiro é bandido. O resultado disso? Criminalização e extermínio, como no caso de Paraisópolis.
Se teve uma coisa boa nessa eleição foi que recuou a direita maluca, de arminha na mão e paranoia na cabeça. Até Bruno Covas, que herdou a prefeitura de um então aliado do bolsonarismo e fez uma gestão de costas pros pobres, prometeu criar políticas antirracistas. Se foi emoção eleitoreira ou não tanto faz. Nossa cara é cobrar – e o antirracismo passa por acabar com a estimatização do funk e da juventude periférica. O movimento cultural precisa dialogar com várias pastas tanto do governo quanto da prefeitura.
As secretarias de Cultura, de Planejamento urbano, de Finanças e Desenvolvimento, as pastas da Mulher e da Saúde, só pra citar algumas, precisam estar envolvidas. Todos esses braços do Estado devem conversar com o movimento funk e as comunidades para chegar a um acordo que salve vidas e ao mesmo tempo garanta o sono e o sossego dos moradores. A cultura não vai embora. Tentar contê-la é como tentar segurar o vento com as mãos. Então, é preciso organizá-la, de forma democrática e participativa. Com a juventude não adianta criar nada de cima pra baixo.
Ainda que o projeto popular não tenha ganhado as eleições, 40% dos eleitores de São Paulo mostraram que têm outra concepção de cidade. E isso é um trunfo pro movimento cultural, que a gente tem que saber aproveitar. Se essa mudança de perspectiva, que boa parte do povo mostrou desejar, não for compreendida e implementada, mais e mais de nossos jovens terão seu futuro interrompido pela política de morte. Antes de morrer pela bala, a gente morre pela invisibilidade política. Temos que exigir que nossas vozes sejam ouvidas, em nome de nossa sobrevivência – como movimento, como cultura, como seres humanos. Ou seja, a favela só vai vencer quando o sangue dos nossos parar de escorrer pelas mãos do Estado.
Para não esquecer, seguem os nomes das vítimas do Massacre do dia 1º de dezembro:
Gustavo Cruz Xavier – 14 anos
Denis Guilherme dos Santos Franco – 16 anos
Marcos Paulo Oliveira dos Santos – 16 anos
Denys Henrique Quirino da Silva – 16 anos
Luara Vitória Oliveira – 18 anos
Gabriel Rogério de Moraes – 20 anos
Eduardo da Silva – 21 anos
Bruno Gabriel doa Santos – 22 anos
Matheus dos Santos Costa – 23 anos
Nossa solidariedade às famílias, amigas e amigos das vítimas.