Os EUA provaram: derrotar o fascismo é possível
Muito mais produtivo será se os setores progressistas e humanistas brasileiros se dedicarem a analisar a fórmula construída nos EUA que possibilitou derrotar a extrema-direita.
por Bruno Monteiro, jornalista e produtor cultural
O resultado das eleições norte-americanas suscitou uma série de análises e paralelos com a situação do Brasil. Embora cada país tenha suas particularidades, fazem sentido muitas dessas projeções, uma vez que o presidente brasileiro é assumidamente uma imitação do americano, no estilo e nas escolhas.
Observo, porém, em setores da esquerda dois tipos de sentimentos: a euforia pela derrota do maior símbolo do conservadorismo mundial e o ceticismo de quem lembra que os democratas estão longe de significar uma ruptura mais significativa com o atual modelo.
Sou dos que entende que cada país lida com suas questões e o que fará o futuro governo é uma questão que diz respeito aos norte-americanos, embora possamos sempre elogiar e criticar, até pela relevância que tem para o mundo quem preside os EUA.
Muito mais produtivo será se os setores progressistas e humanistas brasileiros se dedicarem a analisar a fórmula construída nos EUA que possibilitou derrotar a extrema-direita. Para que não fiquemos só nas análises, torcidas e palpites, mas possamos arregaçar as mangas e construir uma saída semelhante no Brasil, capaz de vencer o obscurantismo, assim como lá.
1 – Escolha do candidato
Os partidos nos EUA realizam primárias. Quem quer disputar a presidência se coloca à disposição, vai em busca de apoios e participa debates públicos com os outros pré-candidatos. O partido Democrata neste ano tinha dezenas de pretendentes à Casa Branca. Ao longo do processo, vão permanecendo os nomes capazes de agregar mais apoio.
Claro que isso funciona em um sistema de bipartidarismo. Mas poderia inspirar os partidos do campo progressista e humanista no Brasil e apresentarem seus nomes e um debate franco e transparente ocorrer em todo o país. Não para medir a força de cada partido, mas num processo capaz de avaliar com a sociedade nomes que verdadeiramente tenham apoio e capacidade de crescimento na atual conjuntura.
A escolha de 2020 foi por Joe Biden, um político experiente e de tom mais moderado, que tem como marca o diálogo com diferentes setores e a conciliação. Pode ter frustrado quem esperava uma polarização mais radicalizada, mas criou pontes com eleitores de centro e venceu a eleição.
2 – Representatividade
O protagonismo assumido pela vice-presidenta Kamala Harris ao longo da campanha e após a confirmação da vitória é um sinal inequívoco sobre a importância da inédita presença de uma mulher, negra e filha de imigrantes na chapa presidencial. Sobretudo para fazer frente ao governante mais misógino, racista e xenófobo que se tem registro.
Por mais incômodo que isso possa ser para muitos partidos do campo progressista, o recado está dado: uma chapa formada por dois homens brancos pode ser – mais do que nunca – incompatível com esses tempos.
A diversidade não pode mais ser só abstrata. Ela tem de ser concreta, com nome, sobrenome e presença na urna.
3 – Atualização das pautas
A agenda política da campanha presidencial americana teve temas como Meio Ambiente e Direitos Humanos no seu centro. E estas causas foram decisivas para atrair um eleitorado jovem, que fez a diferença no resultado final. Os temais sociais, como a saúde pública, tiveram muito mais importância do que os interesses econômicos de Wall Street, por exemplo.
Somado a isso, a campanha de Biden e Kamala soube dialogar com os movimentos que surgiram das ruas, especialmente o Black Lives Matter, um levante contra o racismo. Ou seja, a mobilização de rua – de movimentos organizados ou não – pautou a eleição presidencial.
Fica a dica para quem tem tanto a reivindicar, mas prefere ficar reclamando que não tem liderança capaz de organizar mobilizações de impacto. Vai que é justamente da proatividade de alguns que pode brotar novas lideranças… ou pelo menos pautas mais contemporâneas e com adesão popular.
4 – Papel da imprensa
Nos EUA é comum jornalistas e veículos terem posicionamento político assumido.
No Brasil, embora quase todos tenham, a imprensa tradicional diz agir com imparcialidade. Só que com isso, acabam dando palco para os absurdos ditos e defendidos pelo atual presidente. E está cada vez mais nítido que isso ajuda a promover sua imagem, contribuindo com a naturalização da barbárie.
Não dá para tratar um período tão atípico com normalidade. Até porque estamos diante do governante que mais ataca a liberdade de imprensa e ameaça profissionais da comunicação. É lógico que um presidente da República sempre será alvo de cobertura e, consequentemente, de notícias. Mas a atitude de grandes redes de TV norte-americanas (mesmo que após as eleições) de interromper a transmissão de discurso agressivo e mentiroso do atual presidente e informar seus telespectadores sobre o porquê desse ato, é extremamente pedagógico e contribui com a democracia. Até porque a imprensa não costuma dar voz a fontes que claramente mentem e fazem apologia à violência. Nem para ridicularizá-las. A regra deve valer pra todos.
Creio que uma série de outros elementos podem contribuir. Mas se tem algo muito evidente é que buscar inspiração na estratégia exitosa dos EUA será mais produtivo do que ficar na cômoda posição de só reclamar do que não é o ideal. Ou pior, ficar simplesmente criticando lideranças e atitudes de quem ousa fazer algo para enfrentar essa onda de trevas.
Acabamos de ver que é possível mudar o rumo dessa história. Basta começar pelo gesto de fazer diferente, despir-se de preconceitos e certezas absolutas, agir de forma tática, mudando muitos conceitos, atitudes e práticas. E não vacilando sobre quem é o verdadeiro inimigo.
Quem tiver essa disposição pode ajudar a construir uma virada nessa história. O Brasil certamente agradecerá.