A luta das quebradeiras de coco na região de transição do semiárido com o bioma amazônico é histórica. Após décadas de opressão dos latifundiários e resistência por parte delas, nasceu, a partir de um processo iniciado em 1991, o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) no Maranhão, Pará, Piauí e Tocantins. Esta é mais uma iniciativa sistematizada pela campanha Agroecologia nas Eleições, desenvolvida pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) em todo país. 

Assista ao documentário Quebradeiras 

Para conhecer mais a história das quebradeiras, conversamos com Maria Alaídes, coordenadora geral do MIQCB. Moradora da região do Médio Mearim, no interior do Maranhão, ela foi autora da ampliação e aperfeiçoamento da Lei do Babaçu Livre no município do Lago do Junco, onde é nascida e criada, que desencadeou um processo legislativo em defesa dos direitos das quebradeiras na região. A partir das leis locais foram criadas algumas estaduais e o PL 231/2007, que foi aprovado no Congresso proibindo a derrubada das palmeiras e criando regras para a exploração da espécie.

Na entrevista, Maria Alaídes conta como tudo começou, quais as pautas atuais do Movimento e a importância do voto consciente nas eleições deste ano. Segundo ela, com a chegada do governo Bolsonaro ao poder, alguns desafios e dificuldades no acesso a políticas aumentaram ainda mais. A questão fundiária, produção e comercialização do coco babaçu são alguns dos temas da conversa a seguir.   

Você pode nos explicar como foi o processo que resultou nas leis municipais dos babaçuais livres e a relação com o acesso aos territórios?

Antes de  entrar na questão da luta para a elaboração da minuta de lei para o acesso livre, é importante fazer uma retrospectiva da década de 1980, de uma realidade não só do município Lago do Junco, onde moro no Maranhão, mas de vários na região. Coincidiu a luta com os municípios vizinhos São Luís Gonzaga, Lima Campos, Esperantinópolis e, agora, Peritoró, Capinzal do Norte, Santo Antônio dos Lopes, Bacabal etc. A região era dominada pela pecuária extensiva e essa situação promoveu uma grande exclusão social das mulheres e famílias. Devido às tradições ou a cultura, não pensávamos em lutar para ter as formas livres de sobrevivência a partir do extrativismo dos babaçuais onde morávamos. Na cabeça dos meus pais e avós, lutar por coco livre era pecado e invadir era crime. Então, ficamos uns 20 anos nesta situação. Não podíamos comprar uma sandália havaiana. Dava 3 alqueires de arroz (cerca de 30kg por alqueire, na medida deles) por cada linha de roça. Dois sacos de milho sem direito a plantar a fava, que era uma produção mais tardia. O dono queria botar o gado assim que a gente tirasse o arroz para comer a pastagem. Como o babaçu era nossa sobrevivência, o pai vendia logo o “arroz na palha” e continuava na mesmice, porque precisava quebrar 10kg de coco para comprar 1kg de arroz. Essa é a história dessa região inteira. Nosso governo era o pessoal dos Sarney, que achava muito bonito ver só pastagem e gado dos dois lados da estrada. 

Foto: MIQCB

Tinha muito conflito nesta época?

Muita injustiça, queima de casa, outras derrubadas, carro blindado circulando na minha comunidade para proteger a propriedade privada, muitas mortes. Então, as mulheres começaram a discutir formas de resistir naquelas pequenas comunidades a partir dos clubes de mães. A igreja chegou com as suas formações, com um movimento grande de evangelização, que era clandestino. Eu tinha uns 8 anos. Falava muito da ditadura de 1964, porque nessa época não podia fazer reunião, pois se as pessoas escutassem seriam presas. Então, começamos a nos organizar em quintais de igrejas, com ajuda dos padres. “Pegamos as características” de um coletivo e fomos aprendendo a nos libertar, mesmo com o cinto apertando. 

Era preciso “quebrar coco de metade”, que a gente dava metade para o patrão ou seu vaqueiro. Se o vaqueiro nos encontrasse no caminho, cortava as alças do nosso jacá [cesto trançado feito de palha ou cipó, usado para transportar cargas] para deixar o coco para ele. Outros tomavam nosso machado. Muitas mulheres não resistiram ficar sem o machado e foram para briga. Às vezes, batiam nelas com piola (um chicote de bater no gado). Até 1986 foi uma época muito cruel, até que resolvemos entrar nas propriedades em mutirão. Eles começaram a cortar os cachos das palmeiras para não deixar coco, então a gente foi ganhando força, conhecimento e consciência. Éramos meninas de dez anos ainda, até que nos unimos para dizer para não cortar o cacho. Isso criava uma situação de conflito, tinha chamados na delegacia. Vencemos essa história dos cachos e eles começaram a cortar as palmeiras até de trator. Em 1987, fomos no proprietário pedir para não cortar, porque tínhamos muitos filhos para criar sem outra fonte de renda. Debochavam dizendo pra gente ver televisão e, se não trabalhávamos, por que fazer tanto filho sem poder criar? Essas coisas… Voltávamos em desespero para casa, até que nossos maridos resolveram entrar na luta. Começamos pelo babaçu livre e muitas comunidades também pela reforma agrária. 

Nunca ganhávamos a propriedade inteira. Negociávamos com a mediação da igreja, com o bispo, porque era muita violência. Havia uma organização dos fazendeiros chamada UDR, a União Democrática Ruralista, que fazia muitas carreatas ameaçando e soltando foguetes,. Já o povo de Deus, das romarias, das águas e das florestas, fazia caminhadas. Essa luta durou muito tempo, mas aqui no Médio Mearim foi rápido, por causa das mortes que aconteceram e porque foi negociado pelo Estado. O Iterma [Instituto de Colonização e Terras do Maranhão] e o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] foram desapropriando nesses municípios. Só aqui no Lago do Junco foram mais de 4 mil hectares desapropriados. Nessa época, nem uma galinha a gente tinha, havia casas nossas derrubadas ou queimadas… Foi então que recebemos uma ajuda da ONG Misereor, que fez a gente pensar como sair da carestia. Foram criados movimentos, organizações para nos assessorar, como cooperativas, a Associação em Áreas de Assentamento no Estado do Maranhão (Assema), a Associação de Mulheres Intermunicipal e fomos buscando as formas de como continuar a vida.

E em qual contexto se deu a construção da lei?

Juntamos a nossa experiência, aprendemos com tudo o que passamos, sistematizamos os processos e transformamos em uma minuta que deu origem a Lei dos Babaçuais Livres. Me tornei candidata a vereadora pelo PT e fui eleita em 2000. Foi muito difícil dar entrada na lei, passou nas comissões com muita negociação de colocar para os colegas vereadores a importância do babaçu nas nossas vidas. A gente aproveitava o carvão, a casca com o mesocarpo, da amêndoa tirava o azeite para fazer o sabão, sem contar que fazíamos a nossa parte pela preservação destes territórios como guardiãs da floresta. Quando percebemos que tinha maioria para aprovar a lei, colocamos para votação. Enchemos os caminhões com gente da vizinhança e levamos todos para a Câmara. As mulheres ficaram lá sentadas no chão e fora escutando tudo. Um vereador disse que aquela lei era imoral e inconstitucional, porque estava contra a lei de propriedade privada e não havia nenhuma parecida a nível nacional, mas as mulheres vaiaram e ele acabou voltando atrás. 

Foto: Reprodução

Essa foi a primeira lei que abriu precedente para esse processo legislativo nos outros municípios e estados? 

A primeira foi em 1997 e a segunda, que chamamos a nova Lei de Acesso Livre, já foi na minha gestão. A primeira só tinha um artigo que proibia o corte das palmeiras, não existiam os outros, que surgiram a partir dos problemas vivenciados pelo Movimento. Passou a ficar proibido também a venda de palmeiras, matar pindobas (palmeira ainda pequena) com agrotóxicos e o plantio de vegetação que prejudique o desenvolvimento do babaçu, como o braquiária de pastagem, que suga as pindobas jovens.

Depois da aprovação da lei em Lago do Junco, foi rápido o processo nos demais lugares? Como a lei contribuiu para o desenvolvimento do MIQCB?

Em 1991, houve a primeira articulação dos quatro estados. A Lei foi sancionada em 1997. Depois uma nova, com mais artigos, em 2000. No primeiro encontrão de quebradeiras no Maranhão, todas as mulheres que vieram colocaram a questão do “coco preso” (dentro da propriedade sem acesso) junto à questão de produção e comercialização, de não ter lugar para botar roça, da invisibilidade da mulher, da equidade de gênero porque o marido não as deixava sair. Todos os relatos foram iguaizinhos aos de Lago do Junco. A partir daí, as lideranças voltaram aos seus territórios e fizemos uma grande campanha a partir da ASSEMA no Médio Mearim. Depois, levamos essa ideia para outras cidades. Porém, as lideranças e militantes não tinham muita força para se candidatar e se eleger e, então, levar a lei para aprovação nas Câmaras de seus respectivos municípios. Alguns vereadores simpatizavam com a nossa proposta depois de um trabalho de sensibilização da nossa articulação. Todos os municípios com essa lei tiveram nossa participação. 

Após o encontro nacional, espalhou-se um processo legislativo por 13 municípios e continuamos a luta. Não significa dizer que nesses municípios parou de ter coco preso. Muitas pessoas, por respeito aos donos, não queriam entrar nas propriedades, mas onde estamos organizadas em cooperativas e associações nunca perdemos o princípio de manter as leis. Fazemos campanhas, tem o Dia Nacional das Quebradeiras, quando celebramos a importância da conquista desta lei, que também é usada nos planejamentos dos movimentos sociais. Não usamos mais o embate quando está acontecendo a derrubada de palmeira, apresentamos a lei.  Tem vezes que o fazendeiro rasga dizendo que aquilo foi escrito por nós e não vale nada, mas mostramos a nossa resistência: de onde a gente nasceu, se criou e criou nossos filhos não saímos! Onde a lei foi aprovada, estamos usando ela assim. É um instrumento que faz parte também dos planejamentos em outros estados. Falamos com aqueles que dizem ser nossos representantes, propomos audiências para tratar da importância de dar entrada de novo na lei a nível estadual e continuar nos municípios, em parceria com as lideranças. É uma forma de não se acomodar e dar continuidade à luta.

Se mesmo com a lei muitos não respeitam, qual a estratégia de incidência política para o acesso aos babaçuais, para a comercialização etc?

Os movimentos realizam os planos de manejo para oferecermos uma produção orgânica ligada à agroecologia. Temos a RAMA [Rede de Agroecologia do Maranhão] e a ANA [Articulação Nacional de Agroecologia] a nível nacional. Os projetos do agronegócio não têm pena nem piedade das florestas, das águas e do solo, produzem um alto índice de envenenamento. Nós, quebradeiras, estamos produzindo em quintais livres de agrotóxicos e sem cortar as palmeiras. Então, as nossas  incidências focam na preservação, na importância da vida e da sociobiodiversidade. E dentro do Grito da Terra Brasil, da Marcha das Margaridas, dos encontros da Contag, Fetaema, sindicatos, cooperativas, a gente sempre aborda este tema ambiental, de produção e comercialização. Dentro das conquistas dos mercados institucionais, tem outros momentos que fazemos incidência, porque nossa produção tem uma história de luta associada à segurança alimentar. Tudo está relacionado ao mesocarpo, o azeite, o sabão, etc. Quando a gente vende o óleo para a Natura ou L’oreal, por exemplo, é com a diferença de ser feito sem veneno pelas quebradeiras. Esse babaçu tem o envolvimento das mulheres, de maneira que elas possam discutir um plano de manejo que toda a família compreenda. Não é somente o babaçu, mas toda a riqueza que ali existe, as fontes de águas. Tentamos também colocar esses temas nas escolas, falar com o secretário de Educação sobre a necessidade de sensibilizar o prefeito e o secretário de Saúde para a importância de uma disciplina que trate desses assuntos nas escolas locais. Esses meninos não devem esquecer que foram criados com o babaçu, que sua casa foi coberta com ele e ali nascemos e nos criamos.  

Atualmente, tem alguma política pública municipal, estadual ou federal que dê suporte à quebradeiras?

Só a Política de Garantia de Preço Mínimo (PGPM), que a Conab [Companhia Nacional de Abastecimento]  direciona aos povos e comunidades tradicionais das florestas e do Cerrado. Vendemos o nosso babaçu pelas comunidades organizadas por R$ 2,70 e pelo preço do governo sai a R$ 3,82. O governo do estado lançou o Programa de Compras da Agricultura Familiar (Procaf)  como se fosse um PAA estadual, mas não conseguimos acessar porque é muito burocrático. Aí, depende também de outras leis, como o Sistema de Inspeção Municipal (SIM), por exemplo, porque nem todas as câmaras de vereadores aprovam então nem todas as associações e movimentos de mulheres têm essa lei no município. O Procaf existir é uma conquista, mas os preços também  não são condizentes com o que esperamos. O arroz é R$ 2,60, enquanto na roça estamos comprando a quase R$ 5,00. Então, são conquistas, mas também não avançam tanto.  Em relação às feiras, em muitos municípios o prefeito arruma as barracas e o Movimento se vira com transporte e levanta sua produção. Mas só em Lima Campos há feira semanal, as demais são feiras agroecológicas a cada três meses, às vezes seis. A assistência técnica é por parte do Movimento e pelas ONGs, mas tem as Secretarias de Agricultura FAmiliar (SAFs) nos estados. Em novembro haverá uma feira para celebrar o Dia das Quebradeiras e fortalecer a ideia da lei de acesso e a comercialização dos produtos das pessoas.

Foto: Brasil de Fato

Quais são os maiores desafios atuais para o Movimento?

São as perdas de direitos. Tínhamos muita participação nos conselhos, como o Consea, e perdemos esses espaços. Está sendo um desafio grande porque tínhamos voz, trocas de experiências e como fazer incidência em cada município e estado. A partir daí [da extinção dos conselhos por determinação do atual presidente da República], infelizmente,  avançou o MATOPIBA [área de expansão do agronegócio que compreende os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia]. O avanço do agronegócio, que tem uma paixão pelo desmatamento, é um desafio que não sai de pauta. O Movimento Interestadual tinha um projeto grande do Fundo Amazônia, cujos recursos eram repassado pelo BNDES. Mas, depois que o Bolsonaro entrou com sua equipe, ele mandou preencher um formulário com um item pedindo às coordenadoras do Movimento que assinassem se há 36 meses atrás fizeram parte de qualquer tipo de movimento sindical ou partidário. Não assinamos e suspenderam o repasse. Isso implicou também nas nossas ações, porque chegou a pandemia e não estamos conseguindo acessar. O Fundo Amazônia está há mais de oito meses parado.Muitas não têm telefone ou computador e nem todos os lugares têm internet. Mas, assim mesmo, de forma capenga, fazemos nossas reuniões, lives, encontros. 

Você gostaria de destacar mais alguma coisa?

Nós, do Movimento das Quebradeiras de Coco, temos no nosso sangue e alma que o babaçu é a essência que move a nossa vida. Tendo uma palmeira em pé, tem uma mulher em pé e vice versa. Agora, precisamos olhar em quem votar nestas eleições. Precisamos saber quem foram os que votaram contra os nossos direitos, saber quem são os que votaram aos royalties do pré-sal, quem tirou o recurso da educação e da saúde. De que partidos essas pessoas estão vindo? Saber quem são as pessoas que apoiaram o Bolsonaro, os vereadores que estão se propondo a isso aí que nos prejudica e não votar neles. Procurar votar em pessoas que construam o coletivo respeitando os aspectos culturais, sociais e ambientais que precisamos para o nosso bem estar. Precisamos continuar a plantar essa semente do nascer, do crescer e do viver nos nossos territórios.

Edição: Viviane Brochardt

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