Um ano depois da explosão social no Chile: o caminho para uma nova constituição política
Na madrugada de 19 de outubro de 2019, o presidente chileno Sebastián Piñera declarou estado de emergência para Santiago, capital do país, a província de Chacabuco e os municípios de Puente Alto e San Bernardo.
Por Constanza Rocuant Damianović, Cristóbal Dahm Moreno e María Antonieta Mendizábal Cortés
“Não são 30 pesos, são 30 anos”
Na madrugada de 19 de outubro de 2019, o presidente chileno Sebastián Piñera declarou estado de emergência para Santiago, capital do país, a província de Chacabuco e os municípios de Puente Alto e San Bernardo. Na prática, isto significou restringir a liberdade de movimento e de reunião das pessoas e de que os militares assumissem funções de segurança pública. Nos dias que se seguiram, imagens de soldados e tanques avançando pelas ruas percorreram o mundo, relembrando, tristemente, aquelas do golpe militar de 1973. Essa era a resposta do governo chileno aos protestos que, desde 14 de outubro, sacudiam Santiago e que, naquela sexta-feira, 18 de outubro, pareciam ter atingido o seu ponto mais alto.
Duas semanas antes da explosão social, estudantes do Ensino Médio tinham dado início aos protestos por um aumento de 30 pesos no preço do transporte público, o equivalente a US$0,04. Para mostrar a sua insatisfação, os secundaristas iniciaram ações de evasão em massa e sob o lema “evadir, não pagar, outra forma de lutar”, passaram a pular as catracas do metrô, em duros confrontos com a polícia. Em pouco tempo, os protestos estudantis se transformaram em grandes mobilizações que se repetiram em diferentes cidades do país. O movimento de evasão dos secundaristas tinha conseguido conectar-se com um sentimento mais amplo de mal-estar contra a desigualdade, a injustiça e os abusos que afetam a maioria da população, enquanto uma pequena elite econômica e política desfruta de grandes privilégios. A mobilização estudantil foi o estopim de um protesto social mais profundo.
De fato, o Chile é um dos países mais desiguais da região, consequência do modelo econômico neoliberal, implantado durante a ditadura e continuado em democracia. A lógica do livre mercado há décadas vem corroendo as bases do sistema político e social, transformando cidadãos em consumidores dos direitos mais essenciais. De acordo com a OCDE, o Chile é um dos países com maiores níveis de concentração de riqueza, em que o 10% mais rico possui quase 60% da riqueza total do país. A Fundación Sol, por sua parte, apontou, em julho deste ano, que 50% das pessoas que contribuíram entre 30 e 35 anos conseguiram uma aposentadoria autofinanciada inferior a 85,2% de um salário mínimo, isto é, 273.202 pesos, equivalentes a US$ 342. Além disso, o valor médio de inadimplência em todo o país atingiu, no segundo trimestre de 2020, 1.894.721 pesos, correspondentes a US$ 2.368. Por fim, a Superintendência de Bancos e Instituições Financeiras (SBIF) indicou que, até dezembro de 2017, mais de 616 mil pessoas tinham dívidas com um banco para financiar seus estudos de ensino superior e, em apenas uma década (2007-2017), o número de alunos endividados passou de 291.776 a 722.035, para citar alguns exemplos.
Nos dias que se seguiram, os protestos tornaram-se massivos e, na madrugada de domingo, 20 de outubro, a maioria das capitais regionais estava sob controle militar e com toque de recolher. Apesar da convocação a uma mesa de diálogo, logo no primeiro dia do estado de emergência, e da proposta de suspender o aumento do transporte, iniciativa pela qual deputados e senadores se mobilizaram com surpreendente rapidez, os protestos continuaram. O governo tinha optado por negociar reformas e acordos com a oposição, ao mesmo tempo
em que reprimia com violência as manifestações sociais, a mesma fórmula utilizada nos anos 1980 para desarticular as históricas jornadas de protesto que abalaram o regime de Pinochet. Desta vez, porém, o movimento social ganhou cada vez mais força, evidenciando que a complexidade da crise respondia a anos de cegueira de seus representantes políticos. Não foram 30 pesos que mobilizaram o descontentamento cidadão, mas os baixos salários, a falta de serviços públicos gratuitos e de qualidade, as miseráveis aposentadorias, o alto custo de vida, a demanda por estatizar a água, a igualdade de gênero e muitas outras demandas adiadas durante os 30 anos de democracia. Foi e é uma reivindicação pela dignidade.
Repressão policial e violações aos direitos humanos
O governo de Piñera enfrentou a onda de manifestações como uma “guerra contra um inimigo poderoso e implacável, que não respeita nada nem ninguém” (Piñera, 19 de outubro de 2019). E dessa forma foram tratados os milhares de manifestantes que, durante meses, se reuniram em diferentes pontos do país, até o início da pandemia. São alarmantes as sistemáticas e generalizadas violações aos direitos humanos perpetradas durante este período por Carabineros, a polícia chilena, e membros das Forças Armadas. Até o momento, existem milhares de denúncias por mutilação ocular, tortura, estupro, coerção ilegal de crianças, adolescentes, mulheres, indígenas, jornalistas, profissionais da saúde e observadores de direitos humanos. Essas violações têm sido respaldadas por relatórios de órgãos internacionais como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), Anistia Internacional e Human Rights Watch, bem como por instituições nacionais como o Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH), a Defensoria da Infância, a Comissão Chilena de Direitos Humanos (CCHDH) e a Defensoria Jurídica da Universidade do Chile.
Segundo dados da Promotoria Nacional, até o momento, 8.575 vítimas têm sido contabilizadas por violações aos direitos humanos durante a explosão social. Entre 18 de outubro de 2019 e 15 de setembro deste ano, o INDH registrou um total de 2.499 ações judiciais (2.329 contra Carabineros, 126 contra militares, 22 contra a Polícia de Investigação e uma contra Gendarmaria, a polícia penal chilena), das quais 169 são por traumas oculares. Destas, apenas 28 foram formalizadas a nível nacional e 68 pessoas resultaram indiciadas: 64 funcionários de Carabineros e quatro das Forças Armadas (três militares e um membro da Marinha). Apenas 16 policiais foram desvinculados de suas funções, o que corresponde a 0,2% dos casos, segundo Rodrigo Bustos, chefe da Unidade de Proteção de Direitos do INDH.
Desídia do Judiciário
Apesar da gravidade dos fatos denunciados, o Judiciário não tem se mostrado à altura das circunstâncias. O Tribunal de Apelações de Santiago rejeitou 14 recursos de proteção interpostos contra Carabineros pela utilização de balas de borracha que, de outubro de 2019 até hoje, mutilaram os olhos de centenas de manifestantes. O argumento do tribunal foi que as lesões relatadas seriam “eventos isolados”. O Supremo Tribunal, por sua vez, decidiu apenas em um dos recursos apresentados.
Segundo Carlos Margotta, presidente da Comissão Chilena de Direitos Humanos, no país há 497 presos políticos, “jovens acusados de supostos crimes durante as manifestações”, enquanto dos 476 “policiais e membros das Forças Armadas investigados pelo Ministério Público por violações aos direitos humanos”, apenas 74 foram formalizados. Por outro lado, apesar de que há mais de 8.000 denúncias por violações aos direitos humanos, somente 800 casos foram protocolados, números que contrastam com as 1.914 ações judiciais movidas pelo governo contra 3.274 manifestantes, sem que tenham sido adotadas medidas efetivas para reparar as vítimas.
O caso recente de AA, um adolescente de 16 anos empurrado de uma ponte ao rio Mapocho por um policial durante uma manifestação, mostra que a prática de violar os direitos humanos persiste no Chile. Neste país existem também graves denúncias sobre a participação deliberada de agentes do Estado em atos de encobrimento ao atrasar processos judiciais, entregar falsos testemunhos, adulterar ou destruir provas e locais dos acontecimentos, ameaçar testemunhas, vítimas e, inclusive, membros dos órgãos do Estado encarregados de fazer justiça. Essas ações acabam deslegitimando todo o sistema judicial e minando as bases sobre as quais se fundamenta o Estado de Direito.
No Chile, a temperatura social continua alta. A incapacidade e a falta de visão política do governo tem se traduzido em uma baixa aprovação à sua gestão que, em dezembro de 2019, atingiu a histórica cifra de 6% de apoio (CEP, 2020), bem como na fratura da coalizão de direita e na divisão da oposição em temas centrais. Apesar de que as autoridades têm procurado deslegitimar o caráter político do movimento de protestos, as demandas sociais, expressas nas ruas durante meses, convergiram para a mais política das propostas, mudar a constituição herdada da ditadura. Por outro lado, o desacato cidadão às medidas repressivas impostas pelo governo e a massiva resposta da população às graves violações aos direitos humanos cometidas pela polícia e pelos militares deixaram claro que, desta vez, não é o medo ou as promessas vazias que irão frear o processo de profundas transformações que se inicia no Chile. Um ano após o começo da explosão social, e apesar de que a atual Constituição não adere ao princípio da soberania popular, o Chile se prepara para votar em um plebiscito que definirá o caminho a uma nova constituição, agenda imposta pela cidadania.
Referências
ANISTIA INTERNACIONAL. Chile: política deliberada para dañar a manifestantes apunta a responsabilidad de mando.
CENTRO DE ESTUDIOS PÚBLICOS (CEP). Encuesta CEP 2020. Estudio Nacional de Opinión Pública nº 84, dezembro de 2019. Disponível em: https://www.cepchile.cl/cep/site/edic/base/port/encuestasCEP.html
COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS (CIDH). CIDH condena el uso excesivo de la fuerza en el contexto de las protestas sociales en Chile…. Comunicado de prensa, 6 de dezembro de 2019. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2019/317.asp
CORTE DE APELACIONES DE SANTIAGO. Sentença de 28 de setembro de 2020, causa Rol Nº 172790-2019.
DEFENSORÍA DE LA NIÑEZ. “Situación de Niños, Niñas y Adolescentes en el contexto de Estado de Emergencia y Crisis Social en Chile. Enero 2020”. Disponível em: https://www.defensorianinez.cl/wp-content/uploads/2020/01/Informecrisis22enero_digital.pdf
DEFENSORÍA JURÍDICA DE LA UNIVERSIDAD DE CHILE. Informe sobre la situación de los Derechos Humanos en Chile en el contexto de las movilizaciones sociales de 2019.
FUNDACIÓN SOL, com base nos dados da Superintendencia de Pensiones, até julho de 2020.
Fundación SOL, com base em DICOM-EQUIFAX USS. Informe Deuda Morosa 2º Trimestre 2020.
HUMAN RIGHTS WATCH (HRW). Chile: llamado urgente a una reforma policial tras las protestas, 26 de novembro de 2019. Disponível em: https://www.hrw.org/es/news/2019/11/26/chile-llamado-urgente-una-reforma-policial-tras-las-protestas
INSTITUTO NACIONAL DE DERECHOS HUMANOS (INDH).
MARGOTTA, CARLOS. Intervención ante la Comisión de DDHH del Senado, del Presidente de la Comisión Chilena de Derechos Humanos, Carlos Margotta, 8 de octubre de 2020.
OCDE. Society at a glance 2019: OECD Social Indicators. Paris: OECD Publishing, 2019.
OFICINA DEL ALTO COMISIONADO PARA LOS DERECHOS HUMANOS. Informe sobre la misión a Chile, 30 de octubre–22 de noviembre de 2019. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Countries/CL/Report_Chile_2019_SP.pdf
PIÑERA, SEBASTIÁN. “Estoy seguro de que, con la unidad de todos los chilenos, vamos a derrotar a los violentistas…”. Gobierno de Chile, Prensa presidencia, 19 de octubre de 2019. Disponível em: https://prensa.presidencia.cl/comunicado.aspx?id=103689
SUPERINTENDENCIA DE BANCOS E INSTITUCIONES FINANCIERAS (SBIF). Informe Anual 2017.