Por que os EUA não são uma democracia?
Como a democracia nos EUA deve ser vista?
Para responder a essa pergunta, precisamos primeiramente definir democracia, como é vista e como deve ser vista. Em termos simples, uma democracia é um sistema de governo que inclui alguma forma de participação de toda a população ou de todos os membros elegíveis de um Estado. Hoje, membros elegíveis são os cidadãos. Na era moderna, isso é comumente estruturado por meio de representantes eleitos e na forma de repúblicas constitucionais.
Essa noção de Estado democrático está associada ao surgimento dos Estados-Nação modernos ou Estados de cidadãos, que se apresentam como um contraste direto aos sistemas monárquico ou colonial. No continente americano, a formação de repúblicas constitucionais no fim dos Séculos XVIII e XIX é frequentemente usada como um exemplo desse tipo de organização coletiva.
Durante a Guerra Fria e em todo o continente americano, o termo “democracia” foi amplamente usado para contrastar com o modelo de governo da União Soviética e de seus aliados. Hoje, a palavra democracia é comumente usada para descrever os aliados dos EUA que têm algum modelo de república constitucional e uma economia capitalista dinâmica e globalmente integrada.
É assim que as “democracias” são percebidas ou vistas.
No entanto, essa narrativa histórica é profundamente falha em sua simplicidade e repleta de contradições, muitas das quais ocultas pela lógica do liberalismo. Isso é especialmente verdadeiro para os Estados Unidos. Então, como a democracia nos EUA deve ser vista? Para responder a essa questão, precisamos voltar ao início da formação do país.
Breve História da Desigual Democracia dos EUA
Antes de os Estados Unidos se tornarem a primeira república representativa do mundo, o país era uma confederação de estados em que o governo federal tinha pouquíssimo poder de fiscalização. No entanto, esse modelo de confederação foi abandonado e uma nova constituição foi elaborada. Essa nova constituição foi formalizada por escrito em 1787, ratificada em 1788, entrando em vigor em 1789, com a posse do presidente aristocrata e proprietário de escravos General George Washington. Washington foi eleito por unanimidade pelo colégio eleitoral, sem nenhuma participação popular. No mesmo ano, na Europa, teve início a Revolução Francesa.
A tradição de governança representativa existia no período colonial, no entanto, era restrita por qualificações de propriedade e bens ou por um exame religioso e só estava disponível para homens brancos. No início do experimento dos EUA em ser uma democracia, muitas das restrições usadas durante a época colonial permaneceram. A constituição de 1789 não especificava detalhes de tais restrições, desse modo, cada estado elaborou seus próprios regulamentos. Nos anos que antecederam a Guerra de Secessão, todos os homens brancos, independentemente de suas propriedades, puderam votar em todos os estados.
Ainda neste mesmo documento, havia vários mecanismos para proteger a instituição da escravidão e impedir que negros pudessem ser considerados cidadãos integralmente. Ao mesmo tempo, os negros, eram contados como ⅗ de uma pessoa em termos de representação política no governo. Ou seja, um estado com uma população grande de escravizados, como Georgia, tinha mais representação na câmara e no colégio eleitoral, embora, o número de pessoas elegíveis fosse proporcionalmente menor comparado à outros estados que tinham menos escravizados, como Massachussets.
Os negros poderiam provisoriamente votar somente após a Guerra de Secessão e a aprovação da 15ª emenda em 1870. No entanto, muitos estados restringiram o acesso ao voto por meio de taxas ou exames de alfabetização. Essas restrições só foram abolidas em 1964 – quase um século depois – com a aprovação da 24ª emenda e como resultado direto do Movimento dos Direitos Civis dos Negros nos EUA. As mulheres puderam votar em 1920, depois que a 19ª emenda foi aprovada, mas, basicamente, só deu às mulheres brancas ricas a capacidade de exercer este direito.
Se voltarmos à nossa definição simples em que a democracia é um sistema de governo que inclui alguma forma de participação de toda a população ou de todos os membros elegíveis de um estado, podemos concluir que os EUA não são e nunca foram uma democracia. Ao contrário, o sistema de governo é discursivamente aspirante a democracia, pois na prática restringe a participação geral sob o pretexto de manter a ordem e a estabilidade. Além de produzir e reproduzir uma política de divisão e exclusão que é antitética à própria democracia.
A constituição dos Estados Unidos é uma das mais velhas do mundo e que não sofreu grandes alterações, e isso por si só é um problema sério. Constituições mais recentes, como a brasileira de 1988, explicitamente dá mais direitos para a população em geral. Não faz muito sentido pessoas que vivem no Século XXI nos EUA serem governadas por regras escritas no Século XVIII.
Colégio Eleitoral e Voto Popular
Há muitos aspectos estruturais antidemocráticos na eleição do líder executivo, o presidente. Um, em especial, gostaria de me aprofundar: o colégio eleitoral. Graças a este órgão, no Século XXI, dois candidatos que receberam menos votos populares que seus oponentes, foram empossados presidentes. No caso, George W. Bush em 2001 e Donald Trump em 2017.
O colégio eleitoral se forma a cada quatro anos com o único propósito de eleger o presidente e o vice-presidente. É composto por pessoas que representam os votos da população de uma determinada região, que geralmente é um estado – há algumas variações. Como essas pessoas são escolhidas? Há um primeiro processo para escolhê-las, geralmente feito pelos partidos e o processo varia de lugar para lugar. Mas isso não significa que serão parte do colégio eleitoral porque dependem da segunda etapa que é quando acontecem as eleições.
Durante as eleições, em 48 estados e na capital, Washington D.C., o voto popular decide de qual partido será os representantes do colégio eleitoral destes estados – é o que chamamos de winner take all, o vencedor leva tudo. Por exemplo, na capital do país, a maioria é democrata, no voto popular provavelmente Biden vencerá. Assim, todos os membros do colégio eleitoral que representam a capital serão democratas. Se Biden vencer por causa de 1 voto a mais, os apoiadores de Trump não serão representados.
Outro ponto problemático que está na ideia original do colégio eleitoral é a vantagem dada a estados com populações rurais e principalmente fronteiriços na expansão para o sul e o oeste. Por exemplo, hoje, alguém que mora na Califórnia, o estado mais populoso dos Estados Unidos, tem proporcionalmente muito menos representação no colégio eleitoral em comparação com alguém que mora em Dakota do Sul, um estado com baixa densidade populacional. O peso do voto de um cidadão da Califórnia vale 64 vezes menos que de um cidadão de Dakota do Sul.
Hillary Clinton mesmo tendo recebido 3 milhões de votos a mais que Trump em 2016 perdeu as eleições porque a maior parte do voto popular foi em estados em que o voto vale proporcionalmente menos quando convertidos em números no colégio eleitoral. O colégio eleitoral é composto por 538 eleitores, para vencer lá, o que garante a presidência dos EUA, é preciso no mínimo 270 votos. Isso explica porque os republicanos, que têm um desempenho ruim nas cidades, lugares mais progressistas e onde moram mais de 80% da população estadunidense, não querem abolir o colégio eleitoral.
Além disso tudo, há o caso das colônias estadunidenses como Porto Rico em que mais de 3 milhões de cidadãos não tem voz no colégio eleitoral.
Caixa Dois Legal e Constitucional
Como todos os Estados-nação modernos, os EUA têm uma longa história de corrupção política. No entanto, o que é diferente em comparação com outros países é que a corrupção é legalmente parte do sistema. No Brasil o financiamento privado para campanhas eleitorais tem um limite, além disso o doador e o gasto eleitoral precisam ser declarados. Caso contrário, é Caixa 2.
Nos EUA o financiamento privado é ilimitado, há muitas poucas restrições sobre quem pode doar e mil de maneiras de contornar as restrições que existem. Isso não é nada novo, mas na última década, a influência do dinheiro corporativo na política tornou-se absurda.
A legitimação jurídica dessa prática aconteceu em 2010, no caso Citizens United vs. Federal Election Commission da Suprema Corte. Neste caso, o tribunal decidiu que o dinheiro era uma forma de liberdade de expressão e, portanto, não poderia ser restringido. Isso levou à formação de entidades de captação de dinheiro chamadas Super PACs (Comitês de Ação Política), que não são obrigadas a divulgar quem são seus doadores, e podem receber uma quantidade ilimitada.
Se Jeff Bezos quiser doar $100 bilhões para um Super PAC que apoia Biden ou Trump, não há como impedir. Hoje, as campanhas de cada presidente devem gastar mais de 1 bilhão de dólares. O que eles vão dar em troca aos doadores, principalmente às grandes corporações? Acesso e influência nas decisões políticas que determinam a situação do país e, se tratando dos EUA, do mundo.
Como isso é democrático?
Cidadania e Voto
Finalmente, quero antagonizar a noção de cidadania. A cidadania é amplamente considerada um dos pilares das democracias modernas.Todos os cidadãos devem ter os mesmos direitos, mesmo que saibamos que não é o que acontece. Esta noção de cidadania é contrastada com os sujeitos políticos que fazem parte de uma estrutura de poder hierárquica como no caso das monarquias.
No entanto, isso é realmente democrático? Para se tornar um cidadão é um processo longo e árduo e muitas vezes infrutífero que depende do seu país de nascimento, ponto de entrada e status de imigração. Hoje, mais de 13 milhões de pessoas vivem e trabalham nos Estados Unidos legalmente como residentes permanentes ou titulares de greencard. Quase meio milhão de pessoas, principalmente da América Central, têm status de proteção temporária, embora o programa tenha sido encerrado recentemente. Há 200 mil trabalhadores agrícolas temporários e bem mais de 10 milhões de imigrantes sem documentos. Todos eles, de algum modo, pagam impostos e contribuem para a sociedade estadunidense. Nenhuma deles podem votar.
E ser cidadão, não é necessariamente uma garantia do direito ao voto. Em muitos estados, aqueles que cometeram crimes e se tornaram prisioneiros não podem votar. As pessoas em situação de rua ou que não tem uma residência permanente enfrentam um processo muito difícil para se registrarem como eleitores. Isso sem falar que o horário de votação acontece durante a semana e não num feriado. Desse modo, o trabalhador muitas vezes depende do patrão para votar. Por fim, cada vez mais há menos lugares para votar e as filas são gigantescas.
Agora vamos voltar para o ponto inicial: como a democracia deve ser vista. Democracia supostamente deveria significar que todos têm os mesmos direitos, incluindo o direito de participação no governo, o que deve ser visto não como um ideal para o futuro, mas algo do presente. No mundo que vivemos, o caráter incrementalista do liberalismo esconde as grande contradições que são ampliadas pelo sistema capitalista, impedindo a igualdade porque está baseado numa política de diferença e de divisão. A democracia deve ser baseada em conceitos de igualdade e universalidade. Para mim, o caminho para alcançá-la é só um: anti-capitalista.
Para saber mais sobre as eleições, história e política dos EUA e das Américas siga o podcast Camarda Gringo do selo NINJACast e o canal homônimo no Youtube.