Inaugural
Inaugurar é uma bela palavra que vem do latim inaugurare, que significa celebrar os ritos augurais, e relembra a função dos augures, aqueles que na Roma antiga eram convidados para prever o futuro a partir da observação do voo, do movimento, do canto das aves.
“Toda a minha produção há de ser protesto e embelezamento,
enquanto não puder despejar sobre as brutalidades coletivas
a potência dos meus sonhos”.
Oswald de Andrade
Tomo emprestada a citação de Oswald de Andrade para abrir esta nossa conversa aqui na Midia Ninja, para inaugurar esta coluna.
Inaugurar é uma bela palavra que vem do latim inaugurare, que significa celebrar os ritos augurais, e relembra a função dos augures, aqueles que na Roma antiga eram convidados para prever o futuro a partir da observação do voo, do movimento, do canto das aves.
Por tudo isso, pelos significados e pelo som, pelas imagens, pelo voo e pelo canto das aves, sinto que “inaugurar” é uma palavra poética perfeita para abrir os trabalhos!
Agradeço o convite e o espaço aberto pela Midia Ninja, a quem acompanho e admiro há muito tempo com empolgação. Estou animada e me sinto desafiada, afinal tentar ser ninja com as palavras, é para poucos malabaristas do caos!
Não é fácil começar a escrever aqui justamente neste momento trágico pelo qual estamos passando. Diante das realidades do mundo e do Brasil cada vez mais desgovernado e brutal, a própria intenção de escrever, a insistência em se manter artista, criar, tentar abrir novas possibilidades, tudo isso é um ato de coragem e de utopia.
Quero investir na resistência pela beleza e na contestação pela poesia. É por isso que invoquei o nosso amigo antropófago Oswald de Andrade ali em cima, pois esta frase sempre traduziu, para mim, esta complexidade de ser artista em tempos brutais, essa perplexidade de ter que protestar, re-existir e, ao mesmo tempo, não abrir mão do sonho nem da beleza.
Tudo isso tem a ver com a missão da poesia. E com a valorização da potência das linguagens, dos sons, das imagens, dos movimentos, dos pensamentos. Precisamos lembrar que o fascismo, e toda esta (falta de) ética da guerra e dos generais perversos que pregam a destruição, começa pela linguagem. A violência do discurso de BozoNazi vem de muito tempo… A cada frase, uma porrada, um assassinato, simbólico e real.
Toda a violência e agressividade gratuita que vivenciamos hoje nas redes foi perversamente estimulada por estes coronéis da ignorância, pelas fake news, pelas declarações acintosas contra as mulheres, negros, lgbtqi+, contra indígenas, quilombolas, contra o meio ambiente, a floresta, contra os direitos humanos, contra a inteligência, a ciência, a cultura, a educação, contra a arte.
Não devemos nos deixar acostumar com essa violência generalizada, não podemos naturalizar a grosseria, a ignorância, a postura bélica, a rivalidade gratuita, o clima geral de perseguição e linchamento. Se formos tomados por esta subjetividade das armas, dos canhões, dos tratores, já teremos perdido a batalha.
Nosso querido Caetano Veloso, colega também colunista aqui da Midia Ninja, expressou com precisão o que estamos vivendo, nestas imagens de sua canção O cu do mundo: “A mais triste nação / na época mais podre / compõe-se de possíveis / grupos de linchadores”. E de milicianos, e de tiranos, e de fascistas que estão, além de tudo, torturando a linguagem, atirando contra a poesia.
Portanto, aqui nesta coluna a resistência se dá também ao amar e valorizar a linguagem, ao lamber cada palavra e se maravilhar com os significados e com as possibilidades abertas pela enunciação de cada verbete. Trabalharemos pela escuta do sensível, pela atenção amorosa aos sons e aos sentidos. Como brilhantemente definiu Manoel de Barros, “poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina”.
Nunca esqueço de uma tarde em São Paulo, quando saímos com Zé Celso para filmar o meu primeiro videoclipe, que se chama exatamente “bum bum do poeta”. Nas ruas de SP, eu pedi ao Zé (amigo amado, xamã, exu das artes cênicas, laroiê!) que dissesse na abertura do clipe um poema do Manoel Bandeira. O trecho final do poema de Bandeira é este: “não quero mais saber do lirismo que não é libertação”. Então Zé Celso emendou e continuou “de lirismo, de lírio, deliro, delirismooo!”.
É isso: aqui nesta coluna teremos lirismo e libertação, lamberemos as palavras e alucinaremos de lirismo, delirismoooo!