Por Luís Carlos Valois

Apesar de os meios de comunicação, órgãos públicos, instituições, repetirem constantemente o termo “grupo de risco”, o certo é que estão, estamos, todos com medo. No nosso íntimo, somos todos “grupo de risco”, mesmo que não estejamos na categoria dos idosos, hipertensos ou soropositivos. O medo tem dessas, se alastra sem categorias definidas, tendo um poder político sem igual.

Aliás, é o medo que tem nos governado há muito tempo. O medo do comunismo, do terrorismo, o medo do crime, o medo da droga, o medo do outro. Não é a preocupação com o ser humano, com a vida, que fechou lojas, shoppings, restaurantes, pois, se assim fosse, o ser humano estaria melhor, sem conhecer a fome, a miséria e a morte que sempre o acompanhou do lado de fora dos shoppings abertos e iluminados, mas o medo egoísta e mesquinho.

Bolsonaro se elegeu usando da moeda do medo, do medo do crime – “bandido bom é bandido morto” – e talvez caia por causa do medo, porque o coronavírus não é uma gripezinha. Mas o medo em uma sociedade carente de solidariedade e de justiça agrava o egoísmo e as injustiças, todos se fecham nos seus apartamentos: que morra quem não tiver casa!

O exemplo maior disso são as penitenciárias e cadeias públicas, todas superlotadas, com presos dormindo um sobre os outros, ratos, baratas, corredores alagados, mofo, doenças de todos os tipos. Se tem uma palavra que se possa dizer antônimo de distanciamento social, essa palavra é estabelecimento penal.

De fato, de um preso de uma cadeia brasileira pode-se dizer estar no grupo de risco só pelo fato de estar preso, porque os grupos de risco têm a ver com comorbidades que causam dificuldade de respiração, e não há lugar pior para respirar do que uma cela construída para cinco pessoas onde estão dez, quinze, vinte.

Quem conhece sabe, do cheiro forte de suor, às vezes urina, esgoto aberto nos corredores, comida estragada, tudo misturado com o abolorecimento das paredes e teto. Isso quem visita sabe apenas andando pelos corredores, imagina quem mora lá dentro, nas celas.

Interrompo aqui para advertir os que já vão logo dizendo: não quer viver dessa forma, que não cometa crime. Ora, mas o que é crime? Crime não é uma ação contra a lei? Então como podemos deixar uma pessoa que cometeu uma ação contra a lei em um local totalmente contra a lei? Sim, porque há uma lei no Brasil, a Lei de Execução Penal, que diz como tem que ser uma prisão, e ela descreve uma prisão totalmente diferente.

Assim, portanto, não estou falando de humanidade, nem de coitadinhos, estou falando de pessoas sendo tratadas totalmente contra a lei, e tudo porque há um sentimento maior que nos move: o medo. O nosso medo de ir à esquina não diminui porque há milhares de pessoas presas ilegalmente, mas temos medo de que elas sejam soltas, como se soltas não fossem ser um dia, de uma forma ou de outra, pois não há prisão perpétua no Brasil.

Desde que o Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, muito acertadamente publicou uma recomendação (n. 62), alertando os juízes brasileiros a reverem prisões das pessoas em grupo de risco, recebo telefonemas de jornalistas querendo saber quem foi solto, quem não foi, quase como uma ameaça. A cada preso idoso, doente, com câncer ou soropositivo que determino ficar em prisão domiciliar, sou acusado de irresponsável, mas tudo isso é medo.

Também tenho medo. Agora estou falando de outro medo. Mas não se pode ser juiz com medo. Um juiz covarde é um acusador disfarçado de juiz, é o jornal, o folhetim da pior espécie, sentado na cadeira do magistrado.

Pois bem, apesar de todos esses dias recebendo ligações sobre quem foi solto, continuo analisando os processos de cada preso doente, observando os casos mais graves e os que efetivamente não correm risco de morte no sistema. Mas ontem, mesmo com todo o meu esforço, morreu um preso por falta de assistência médica em uma das prisões sob minha responsabilidade.

Ele tinha câncer, já tinha pedido para sair, o processo estava aguardando o que a lei chama de procedimento, mas morreu antes que eu avaliasse o seu pedido de prisão domiciliar. Iria, pelo menos, morrer com a família, mas não teve esse direito. Só na lei não há pena de morte no Brasil.

Mas sobre o preso que morreu doente, sem assistência, nenhuma ligação, nada de imprensa. Escrevo triste, porque tento fazer o que posso, apesar das pressões, do ódio, do rancor tão presentes no meio social. A cada preso que morre dentro de uma instituição pública criada apenas para privar a sua liberdade, nos tornamos cada vez mais uma sociedade onde a vida, dos outros, não tem importância, uma sociedade triste.

A propósito, as prisões não pararam de funcionar, e é mesmo muito triste uma sociedade em que a punição é serviço essencial.

Luís Carlos Valois é juiz de Direito, titular da Vara de Execuções Penais do Amazonas, mestre e doutor em direito penal USP, pós-doutorando Universität Hamburg.