Fome é a face mais dramática da pandemia
A fome já vem sendo sentida por parte da população com dificuldade de gerar renda e de acessar a Renda Básica Emergencial durante o período de isolamento provocado pela pandemia. Organizações se mobilizam para distribuir comida para a população.
Mauro Utida para Mídia NINJA
Moradores das periferias e em situação de rua são os mais afetados pela crise econômica causada pela pandemia do covid-19. A solidariedade de entidades e pessoas da sociedade civil, com doações de mantimentos, têm sido fundamental para população em extrema pobreza obter sua refeição diária.
“Estamos vivendo uma situação pré-Constituição pessoas passando fome e famílias sem acesso ao básico. A comida se transformou em prioridade de mobilização e enfrentamento”. A frase do coordenador de Desenvolvimento Institucional da Ordem Franciscana, Fábio Paes, reflete a crise econômica provocada pela pandemia do coronavírus (covid-19).
A fome na pandemia do covid-19 é uma das características mais dramáticas pela qual a população em extrema pobreza tem passado, por causa do isolamento e das restrições de circulação e trabalho, medidas necessárias e orientadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para o controle da disseminação do vírus que já matou 5.466 pessoas no país, segundo dados do Ministério da Saúde desta quarta-feira, 29 de abril.
Conforme dados indicadores do IBGE, em 2018, o Brasil tinha 13,5 milhões de pessoas na extrema pobreza, cerca de 6,5% da população. São cidadãos com renda mensal per capita inferior a US$ 1,90 por dia, conforme critérios do Banco Mundial. Inclui-se ainda os brasileiros (as) que moram na rua, cerca de 102 mil pessoas, além dos imigrantes sem registro formal no país.
Caso o Estado brasileiro não tome medidas para reduzir o impacto do covid-19, a situação pode se agravar ainda mais. Em recente publicação pela Oxfam, a crise econômica provocada pelo coronavírus pode adicionar, ao menos, mais 2,5 milhões de pessoas entre os desempregados. Atualmente, o Brasil tem 12,9 milhões de desempregados e cerca de 40 milhões de trabalhadores sem carteira assinada.
“O coronavírus coloca o Brasil diante de uma dura e cruel realidade ao combinar piores indicadores sociais em um mesmo local e na mesma hora. E é nesse momento que o Estado tem um papel fundamental para reduzir esse impacto e cumprir sua responsabilidade constitucional tanto na redução da pobreza e das desigualdades como na garantia à vida da população”,
afirma Katia Maia, diretora executiva da Oxfam Brasil.
A Organização Mundial da Saúde também comunicou que o impacto econômico da pandemia pode dobrar o número de pessoas que sofrem com a fome no mundo, para 265 milhões este ano. “Estamos à beira de uma pandemia de fome”, advertiu o diretor executivo da agência de assistência alimentar da Organização das Nações Unidas (ONU), o Programa Mundial de Alimentação (PMA), David Beasley.
POPULAÇÃO DE RUA – A fila que se forma diariamente no Largo São Francisco, na capital paulista, onde moradores de rua e desempregados têm se aglomerado por um prato de comida da Ordem dos Franciscanos, é um exemplo do drama da fome agravado pela pandemia.
Os Franciscanos ampliaram a produção de refeições nas três cozinhas do Serviço Franciscano de Solidariedade. O grupo vinculado a Igreja Católica também abriu mais duas cozinhas sociais para produção de marmitas a serem entregues a população em situação de rua. Atualmente, são mais de 3 mil marmitas diárias em três pontos na região central.
O local com a maior concentração de pessoas se localiza no Largo São Francisco. No total, são fornecidas 1.400 marmitas por dia, entre o almoço e jantar. O ponto conta com parceria com Médicos Sem Fronteira, Cruz Vermelha e outros para atuar frente ao cuidado direto desta população. Os Franciscanos também atendem em mais dois pontos no Centro.
Segundo Fábio Paes, com a crise econômica provocada pela pandemia o perfil das pessoas que procuram os Franciscanos para matar a fome, mudou. Parte deste grupo continua sendo, a grande maioria, pessoas em situação de rua, porém aqueles que perderam o emprego e estão sem renda, entraram na fila. “Uma das pessoas atendidas me disse que estava comendo aqui dia e noite, pois não tinha dinheiro porque pagou o último aluguel”, descreveu Paes.
CAPITAL FEDERAL – Diversos projetos da sociedade civil têm feito a diferença nesse tempo de epidemia em diversas partes do país. Em Brasília, o projeto coordenado por Rogério Soares de Araújo, o Barba, diretor social do Instituto Cultural e Social, tem oferecido uma média de 400 marmitas por dia, entre almoço e jantar para moradores de rua.
O projeto ganhou apoio do governo municipal e conseguiu realocar cerca de 200 pessoas para o alojamento improvisado no autódromo Nelson Piquet. A demanda agora, segundo Barba, é conseguir atendimento médico hospitalar a todos os moradores que rua que estão no abrigo, incluindo o teste da covid-19. “Precisamos de atendimento médico para essas pessoas, pois elas já são portadoras de outras doenças, como tuberculose e DST”, diz Barba que já morou 30 anos na rua e mantém uma liderança entre este grupo.
“Nosso slogan é lutar de barriga cheia ou morrer de fome com o coronavírus”, diz.
A FOME NAS PERIFERIAS – Nas periferias, a crise econômica provocada pelo coronavírus agravou ainda mais a renda das famílias, que na maioria dependem de serviços autônomos e informais. Trabalhadores das comunidades como diaristas, costureiras, camelôs, pedreiros ou empregados de empresas terceirizadas, por exemplo, viram a oferta de emprego diminuir drasticamente nas últimas semanas.
A fome já faz parte das periferias, onde muitas famílias dependem exclusivamente da renda do bolsa família ou doações. Porém, com a pandemia a situação piorou, conforme informa a dona de casa Juliana que vive com o marido, ambos de 27 anos. O casal vive com os quatro filhos – de 6, 4, 3 anos e o caçula de 9 meses – em uma casa de dois cômodos e banheiro, as margens de um rio na Vila Itaim, na zona leste de São Paulo.
O marido de Juliana tem se empenhado para conseguir alguns “bicos”, entretanto está com a saúde prejudicada após ser diagnosticado com começo de tuberculose. Eles conseguiram a aprovação do auxílio emergencial por estarem incluídos no bolsa família, porém o valor de R$ 600 não é suficiente para as refeições, contas e utensílios básicos de higiene pessoal. Juliana afirma que a refeição mais comum é arroz e feijão, apenas. A mistura – quando tem – é ovo.
“Estou aflita com a situação e com medo de faltar comida para as crianças. Estou tendo muita dificuldade para dormir, com muita insônia todas as noites”, diz.
A vizinha de Juliana, a também dona de casa Andreza, está em uma situação ainda pior por causa da filha Luiza, de 1,4 anos, que nasceu com hidrocefalia e necessita de atenção diferenciada para se alimentar e se locomover, como leite especial, remédios e equipamentos médicos hospitalares.
Andreza também tem outros dois filhos – de 3 anos e o caçula, de 9 meses – e atribui praticamente o seu tempo para cuidar dos filhos em casa, enquanto o marido se dedica a encontrar “alguns bicos” para arranjar dinheiro para as compras de mercado do dia. Na casa de apenas um cômodo e banheiro, o armário da cozinha se encontra vazio. A realidade da família do casal de 24 anos é dramática e eles precisam muito de ajuda. A única renda fixa no momento da família é os R$ 600 do auxílio emergencial, dinheiro que ela conseguiu essa semana após passar horas aglomerada na fila do banco
No momento, donativos estão fazendo toda diferença para essas famílias. O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), por exemplo, chegou a fazer doação de cesta básica à família em abril. Andreza também tenta conseguir uma cadeira de roda infantil especial para dar uma melhor qualidade de vida à sua filha Luiza, que passa praticamente o dia deitada na cama.
“Tem dia que a gente acorda e não sabe o que vai dar de comer para as crianças. Fico morrendo de medo de acordar no dia seguinte e não ter o comida. Vou dormir pensando será que amanhã vamos ter leite? Arroz? É muito difícil e triste”, lamenta Andreza.
AUXÍLIO – A Renda Básica Emergencial de R$ 600,00 foi uma primeira ação do Executivo e Legislativo para minimizar o impacto econômico da pandemia , mas está longe de ser suficiente. Segundo relatório da Oxfam, será preciso ampliar o número de pessoas atendidas, garantir agilidade nos pagamentos, estender o período de concessão da renda e fazer o movimento para avançar em uma Renda Básica Cidadã, agenda pendente há décadas no Brasil.
A Dataprev, empresa pública responsável por identificar quem tem direito a receber o auxílio emergencial de R$ 600, informou que, até o dia 24 de abril, dos 89,3 milhões de CPFs que já foram analisados e enviados à Caixa Econômica Federal, 48,5 milhões atenderam aos critérios da lei e foram considerados elegíveis para receber o benefício, ou seja, 54,3% do total. O grupo com maior índice de aprovação é de quem está no Cadastro Único e beneficiários do Programa Bolsa Família – 96,5% do total.