Quando o carnaval passa e o bloco cinza chumbo do Estado segue no terror
Dez minutos… O que são dez minutos para definir a vida de alguém? Essa é uma pergunta que faço desde a segunda de carnaval. E não é sobre atraso em desfile de avenida. Não é sobre a falta de alegoria.
Dez minutos… O que são dez minutos para definir a vida de alguém?
Essa é uma pergunta que faço desde a segunda de carnaval. E não é sobre atraso em desfile de avenida. Não é sobre a falta de alegoria.
São dez minutos de um samba intenso, que poderia ser de dor. E nos nossos corpos, dói.
É… Eu já disse antes e preciso repetir: a conta verificada não me garante. A tag de colunista em alguma mídia não me torna menos favelado. As milhares de pessoas que me seguem não serão mãos para carregar um cortejo fúnebre pelas ruas cinzas de um cemitério público.
E óbvio que eu não quero nada disso. Óbvio que eu não quero e não serei alguma frase que carrega meu nome + presente, sem que eu esteja, porque fui ausentado pelo Estado.
Na segunda desse carnaval, após um dia todo escrevendo, decidi brotar no pagode do bairro. Na volta, quando cheguei na rua de casa, vi uma galera vizinha conversando, geral atento e comentando coisas. Presumi logo: deu alguma merda. Entrei e perguntei para minha mãe.
“Eu não entendi nada. Quando olhei na janela, tinha um homem (PM) andando de um lado para o outro, com arma na mão. Sua tia foi abrir a porta dela e tomou um susto, porque tinha um policial escondido na porta dela. Feito louco.”
Isso, dez minutos antes de eu chegar, porque só me atrasei para tomar mais uma cerveja.
Grande parte da minha família mora no mesmo quintal há mais de 30 anos. Deveria ser uma propriedade particular, mas é favela e o Estado não se importa sobre isso quando autoriza, ainda que sem mandatos, que seus homens invadam nossos espaços, fiquem à espreita de nada, porque é favela. E na lógica cruel, favela sempre deve, favela é sempre bandida.
Eu nunca esqueço de minha mãe contando dos homens pretos mais velhos do nosso lugar que, após serem levados pela polícia, ninguém nunca mais viu. Nem nas cadeias, nem hospitais, nem cemitérios. Todos homens pretos que não passavam dos 30 anos.
Sumiram e ninguém viu.
Era comum, quarta-feira de cinzas, contar os desaparecidos que foram pular carnaval e não voltaram… Até hoje, o Estado não lembra.
E terrível é pensar que se eu me adianto dez minutos, eu posso me assustar ao abrir o portão da minha casa, e numa reação de medo, uma bala atravessar meu corpo. Do nada! Imagina, eu entrando em casa, um policial escondido em algum canto, lê minha cor, corpo, e eu deflagra um tiro…
Porque ameaça sou eu, não um Estado que invade meu quintal com pistolas. O perigo sou eu chegando desavisado de um momento de lazer, não quem se espreitar covardemente, com arma na mão.
Foda é pensar que essa quarta poderia ser bem mais cinza para mim.
Foda é saber que está cinza, mas não tanto, como certamente está para alguém que se parece comigo.
Sei que hoje também está cinza para outras famílias pretas violentados, por esse Estado de execução, que cumpre metas de morte.
Talvez nossa existência seja a soma de todos os atrasos que ancestral provoca. Não sei…
Mas espero que os dias cinzas se atrasem para nós homens pretos e pobres, para que mais carnavais brilhe sol, como as poucas possibilidades de alegria nessas vidas condenadas.