Quando se demonizam os evangélicos…
A pesquisa lançada pelo Datafolha sobre quem são os evangélicos brasileiros já nasce antiga. Há tempos temos falado sobre quem é e de onde fala o nosso povo. Marcados por uma jornada de desigualdades e injustiças sociais, o povo evangélico está na linha de frente nas resistências e lutas contra as doenças do capital.
Por Rachel Daniel e Camila Mantovani
A pesquisa lançada pelo Datafolha sobre quem são os evangélicos brasileiros já nasce antiga. Há tempos temos falado sobre quem é e de onde fala o nosso povo. Marcados por uma jornada de desigualdades e injustiças sociais, o povo evangélico está na linha de frente nas resistências e lutas contra as doenças do capital. É parte do povo que mais sofre as violências do Estado, do povo mais afetado com os cortes nos direitos básicos e do povo mais presente nos espaços de maior desumanização da nossa sociedade – prisões, lixões, ocupações, favelas.
Se existe, portanto, alguma novidade é a de que talvez algumas parcelas do progressismo e da esquerda brasileira estejam percebendo que, ao defenderem a ideia de que os evangélicos eram uma massa homogênea, acabaram colocando o peso do fundamentalismo religioso nas costas dos pretos, pobres e mulheres do nosso país.
Claro que as contradições permanecem. O conservadorismo e a prosperidade gospel têm influenciado, desde os anos 80, decisões caras para nós como sociedade – a democratização da mídia, a descriminalização e legalização do aborto, a política de drogas, e tantos outros avanços que nem mesmos governos progressistas foram capazes de realizar – justamente por se aliarem a estes que, aí sim, são os que constroem o cristofascimo no Brasil: homens, brancos e poderosos que estão nas mais diversas denominações da religião no país.
Quando se demonizam os evangélicos, reforçamos a lente racista sobre a fé
Quando se insiste no discurso generalizador sobre o povo crente acabamos por endossar um discurso racista. Sim, racista. Quando assim fazemos e insistimos, nessa demonização dos evangélicos, outra vez, demonizamos o povo preto e sua religiosidade. Demonizamos a mulher preta que perdeu o filho assassinado pela polícia na favela ou aquela que estava chorando na porta do presídio em Altamira depois de de ver o corpo do filho sair carbonizado no massacre.
Estamos tão habituados a esse lugar dos “iluminados” que detém a razão, somos tão pequenos burgueses nas nossas análises, que insistimos, mesmo depois do problema político gigante onde isso nos trouxe, em olhar pra religião e religiosidade desde esse lugar branco racista. E quando insistimos em dizer que é racista, é porque para muito além da demonização dos nossos, a generalização, reforça a apropriação branca, europeia e elitista que foi feita do Cristianismo historicamente.
Aqui resiste um Cristianismo preto, que nunca aceitou a apropriação do império, que seguiu séculos e séculos até hoje reivindicando sua fé no Jesus Cristo Preto. Aqui tem teologia negra, sendo produzida por gente negra, a partir dos corpos negros, das vivências negras, com os olhos fixados neste Deus do povo negro. Então invés de dar destaque pros homens brancos poderosos e fundamentalistas toda vez, evidencie uma pessoa preta cristã que está dando a vida pra construir o reino de Deus e sua justiça. Evidencie homens e mulheres negras cristãos que estão aqui na ponta, fazendo um trabalho de base duríssimo que ninguém mais se propõe a fazer. Evidencie as pretas e pretos cristãos que estão na academia, nos seminários teológicos, encarando todos os desafios de estarem em um lugar que não foi feito pra eles, porque eles entendem a importância da produção teológica feita desde aqui de baixo, desde o corpo, esse corpo que o Estado quer matar.
Em vez de rir da espiritualidade pentecostal, olhe a beleza de uma espiritualidade negra, que se manifesta no corpo, na dança, no sapatear, no falar em línguas e o quanto é essa espiritualidade que mantém esse povo de pé. Essa espiritualidade da qual a gente tem debochado, é negra, ancestral e sagrada. Passou da hora da gente mudar a lente pela qual a gente tá enxergando as pessoas cristãs no Brasil. Isso é tarefa urgente para todos e todas que estão comprometidos com um projeto de transformação do mundo.
Quando se demonizam os evangélicos, se demonizam as mulheres
É fato que estamos falando aqui de uma tradição religiosa que tenta reforçar o patriarcado e que mesmo assim mantém suas estruturas justamente com o esforço e amor de uma comunidade de mulheres de fé que sustentam o dia-a-dia das igrejas e o cuidado com os irmãos e irmãs.
A questão é que Deus e a vida de Jesus atraem as mulheres justamente porque é a partir delas, para elas e com elas que Jesus construiu seu ministério. Por mais que as tradições teológicas tentem rifá-las dos relatos bíblicos, já é sabido que as mulheres não eram meras coadjuvantes do plano de construção do “Reino de Deus” – que é amor, paz e justiça. É do corpo de uma mulher que o Cristo vem e é na presença delas que ele se revela ressurrecto pela primeira vez.
Para além das questões metafísicas e subjetivas, vale lembrar que é nas igrejas que as mulheres, principalmente as pretas e periféricas, têm acesso ao protagonismo e à visibilidade – em oposição à subalternização e invisibilidade nos espaços políticos e sociais. Nas igrejas pentecostais das periferias – mulheres que acessam a classe média só pelo portão dos fundos do prédio e que ocupam as casas legislativas só nas cozinhas – são pastoras, lideranças comunitárias, missionárias, profetizas e experimentam estar num lugar de destaque por meio da fé.
É também através da fé que essas mulheres encontram auxilio, principalmente conforto, em oração, sobre seus filhos, mesmo que estes estejam na mira assassina do Estado. Ter fé em Deus é acreditar que todos estarão em casa no fim do dia.
Num país que negligência violência doméstica, feminicídio e cuidados básicos para uma maioria de famílias de mães solos e chefes de família, conhecer Jesus é não se submeter a isso.
Quando a polícia sobe atirando, quando o Estado quer sua morte, quando você suportou todo tipo de humilhação racista e sexista dos patrões brancos ricos, pode ser que sua única fonte de força seja fechar os olhos e cantar: “Porque Ele vive, posso crer no amanhã. Porque Ele vive, temor não há!”
E isso, meus amigos, além de ser espiritual e para além da nossa compreensão, é também político! Extremamente político. Porque é o Deus dos marginalizados que essas mulheres reivindicam todos os dias com suas existências. E é um equívoco pensar que a fé não as tem movido a uma ação política contra o sistema que as explora e oprime. É só dar uma olhada rápida pra base de movimentos como MST, MTST, Atingidos por Barragens, movimentos protagonizados por mulheres pobres, mulheres que professam uma fé. Mulheres que compreenderam que a concentração de terras nas mãos da elite é pecado, lendo a história do Rei Acabe e Nabote na Bíblia. Mulheres que lutam contra mineradoras e também contra a privatização das águas, porque a história de Acsa na Bíblia as chamou para a luta.
É a fé movendo pessoas contra o capitalismo, enquanto a gente insiste em reduzir todo mundo à analfabeto político e gado do presidente.
Quando se demonizam os evangélicos, se demoniza a classe trabalhadora
Eu demonizo boa parte da base dos movimentos sociais por moradia e terra. Eu demonizo as e os mais explorados pelo capitalismo.
Jesus viveu uma vida dedicada aos mais pobres do seu tempo. Para além disso, a igreja que Jesus deixou é clara em sua tarefa na comunidade: “Os que criam mantinham-se unidos e tinham tudo em comum. Vendendo suas propriedades e bens, distribuem a cada um conforme suas necessidade. Todos os dias, continuavam a reunir-se no pátio do templo. Partiam o pão em casa e juntos participavam das refeições, com alegria e sinceridade de coração.” (Atos 2: 42-46) Sendo assim, a luta pela justiça e erradicação das desigualdades é um mandamento para os seguidores de Jesus e para quem lê a Bíblia a partir de uma perspectiva libertadora.
A questão é que o projeto de poder político e econômico dos mercadores da fé vende e dissemina uma teologia de acúmulo de bens e poderes. É de origem dessa teologia branca e patriarcal a associação de Jesus com o dinheiro e a tentativa de, na verdade, intensificar as desigualdades. É importante compreender, que para além de um projeto neoliberal que abraça a religião como arma principal, existe aí um projeto imperialista.
É impossível falar da história da esquerda na América Latina, falar sobre a luta contra as ditaduras militares, sem passar pelo papel brilhante e fundamental de pessoas cristãs comprometidas com uma teologia libertadora. Curiosamente, chega pra nós pouco depois dos processos de redemocratização, uma teologia feita pelos gringos, nascida do coração do capitalismo global. Uma teologia da prosperidade, antagônica à libertadora que foi tão fundamental para derrotar o projeto imperialista com as ditaduras. Hoje, é só dar uma olhada rápida para o modelo de igreja que mais cresce no Brasil – tudo é importado, culto made in USA. A baboseira anticomunista, antifeminista, conservadora, lgbtfobica, é trazida para território nacional, mas não necessariamente foi fabricada no Brasil.
A tarefa não é de dialogar com evangélicos alto do nosso pedestal, é de uma aproximação humilde e sincera para que a classe trabalhadora cristã, os pobres que são cristãos, evidenciem para gente, onde foi que nos perdemos nesse caminho, a ponto de ter entregado a religião que nos ajudou a derrubar ditaduras, nas mãos da extrema direita. O exercício é de escuta honesta e aprendizagem, porque nesse momento, a estupidez tá por nossa conta, Por nossa conta enquanto marxistas incapazes de fazer um análise material do que é o fenômeno religioso no Brasil e a importância da religiosidade para os trabalhadores, mundo afora. Por nossa conta já que cuspimos todo tipo de intolerância até contra os irmãos cristãos que se posicionam à esquerda, porque fomos incapazes de aceitar a conciliação da fé com a militância para derrotar o capitalismo. Por nossa conta pois gritamos burros aos que professam uma fé. Essa estupidez, está sim, na nossa conta.
Mas e o Silas Malafaia?
Quando dizem “evangélicos são fundamentalistas”, sem perceber colocam em evidência o grupelho de lideranças que vê a religião como projeto de poder e apagam as tantas e tantos que estão a mais de 2000 anos resistindo ao embranquecimento e elitização do evangelho.
Se o fundamentalismo se move para destruir diferenças, se trabalha com verdades absolutas e elimina o outro, quem eu estou favorecendo quando aponto evangélicos como sendo todos reflexo de Silas Malafaia? Se eles se movem para nos calar e nos destruir porque nós estamos do lado oposto do seu projeto político, se eles se movem para se consolidar como única imagem de cristianismo possível e por isso nós somos os hereges, é para eles, e somente para eles, que a generalização cai bem, porque nós ficamos aqui, apagados, inexistentes, e eles conseguem a vitória. Estamos então contribuindo para consolidação de um imaginário popular sobre evangélicos que corrobora com o projeto fundamentalista e não que o derrota.
Porque o problema, meus amigos, está para muito além do presidente que senta hoje no Palácio do Planalto. O fascismo ganhou espaço no coração e mente dos brasileiros, e é isso que precisa estar como nossa prioridade política nesse momento. Só será possível a construção de um campo forte e efetivo que lute pela democracia e que vença o fascismo se nosso povo – incluindo as comunidades de fé – forem ouvidas e consideradas nos processos de construção e transformação política.
Viva a todo povo crente que segue na resistência!