Brasília precisa acabar
Isolada, antidemocrática, praticamente um clubinho do poder, essa é a nossa capital federal.
Antes que brasilienses e outros brasileiros venham com suas pedras na mão pra cima desse texto apenas por conta do título, manifesto agora na minha própria nota oficial no sentido de que nada tenho contra eles e elas.
Pelo contrário, saúdo quem veio de gerações de trabalhadores e trabalhadoras que a duras penas levantaram um enorme bloco de concreto, avenidas, parques e outros atrativos. Da mesma forma, para infortúnio do binarismo das redes sociais, esse não é um texto crítico à esquerda ou direita. Esse modesto artigo visa questionar as decisões históricas que favoreceram um encastelamento do poder de uma oligarquia sob uma fantasia de democracia.
Ou, em outras palavras, Brasília não deu certo.
Veja o lado positivo dessa constatação que divido com tantos e tantas: em termos históricos, Brasília surgiu na semana passada, há pouco mais de 70 anos. Ou seja, ainda há tempo de reverter essa decisão sem maiores prejuízos. Já dizia a senhora sábia que reconhecer o erro é nobre; estúpido é insistir na burrice. Mas se você não estiver entendendo porque estamos nessa linha, vamos lá.
Juscelino Kubitschek vendeu a ideia de Brasília como um sonho desenvolvimentista, uma capital que seria símbolo da democracia em busca da prosperidade e a negação do subdesenvolvimento. 50 anos em 5, pomposo lema, longe de qualquer síndrome de viralatismo. A construção da capital surge, assim, como um esforço da elite industrial da época para ocupar os vazios demográficos dessa “nação inacabada”. É inegável que a ideia se apresentava muito sedutora, mas ninguém teria dimensão naquela época de que esta capital se transformaria em um bunker de ilegalidades. Ou se tiveram essa visão, souberam escondê-la muito bem.
Em 1955, apesar da vigência de algumas liberdades democráticas no Brasil, a intenção oficial de Juscelino era migrar de um Estado autoritário, centralizador e distante do povo para um Estado planejador focado em acelerar a industrialização. Diferentemente do esperado, Brasília tem se mostrado desde então um projeto ideal para o isolamento dos governantes contra a população e dificultação da legitimação democrática.
Vale lembrar que a ideia de centralizar a capital no meio do país não foi obra apenas de JK, O primeiro esboço concreto do que seria hoje Brasília tinha sido pensado em 1891, quando a nossa primeira Constituição Federal foi promulgada. Em um dos artigos previa-se a manutenção de mais de 14 mil metros quadrados no Planalto Central para uma futura criação da Capital federal.
Apenas muito tempo depois, Juscelino capitanearia um movimento nacionalista em torno da construção, em um movimento colonial que buscava a aprovação estrangeira. Muito se foi planejado sob uma ótica do que os estrangeiros iriam achar e por isso importou-se ideias que pouco tinham a ver com a cultura e costumes das cidades brasileiras.
A fantasia de que a democracia seria mais acessível ao povo caso todos os Estados estivessem geograficamente mais perto da capital falhou.
No final das contas retiramos o poder de perto das pessoas, da proximidade de um centro histórico e superpopuloso como o Rio de Janeiro, para um local de difícil acesso e com baixo índice demográfico. Podemos dizer que democratizamos sim: a dificuldade de acesso se tornou igual pra maioria os brasileiros.
[Uma pausa aqui para lamentarmos o que Brasília acarretou para o Rio de Janeiro, que simplesmente perdeu uma imensa parte de sua potência financeira e capacidade de consumo de seus cidadãos funcionários públicos, migrados para o Planalto Central por força do projeto espetaculoso].
São muitos os documentos da época que demonstravam preocupações com a idéia de “segurança nacional”.
A apreensividade dos governantes com segurança levou a uma discussão interna que a sede do governo não poderia ficar exposta aos perigos de uma massa urbana inflamada. Esta preocupação foi importante para a construção de um desenho arquitetônico da cidade contemplando grandes espaços vazios. O que predominou não foi o pensamento de inclusão, mas do medo de um povo que poderia se revoltar e “retomar” os poderes. Lúcio Costa, que pensou o urbanismo da cidade, está de parabéns – só que não.
Praças enormes e gramados por todos os lados foram pensados como segurança para dificultar a entrada de manifestantes nos prédios do governo.
Repare que até hoje, mesmo as grandes manifestações populares não parecem ser tão expressivas diante da imensidão de nada entre as construções.
Cem mil pessoas ficam parecendo dez mil. Dez mil, por sua vez, ficam parecendo mil e assim por diante…
Junte toda esta fórmula a uma capital árida, de difícil acesso para a maior parte da população brasileira, com baixo índice de moradias, movimentada essencialmente com o dinheiro público. Pode-se dizer também que a elitização provocada pela especulação imobiliária tornou uma cidade proibitiva para qualquer pessoa com uma renda média de um trabalhador brasileiro. Com a criação da capital fomos capazes de facilitar e muito um sistema que já incentiva e naturaliza a corrupção por si só. Infelizmente Brasília se transformou em uma grande casa de promiscuidades que funciona praticamente durante a semana, para não dizer no TQQ, sigla como é conhecido o trabalho de terça, quarta e quinta. Ou seja, fiasco total para qualquer pensamento voltado ao tal desenvolvimentismo.
Frequentemente é noticiado que ministros, congressistas, chefes do executivo, juízes e outras autoridades se encontram socialmente com certa regularidade para confraternização entre amigos. E apesar de não ver mal em amizades entre autoridades, creio não podemos naturalizar a não fiscalização desses semideuses que muitas vezes extrapolam com a nossa ainda pacífica paciência. Imagino que se não fosse Brasília um quintal, o ministro Gilmar Mendes talvez não fosse tanto o dono da bola.
Não me faço de inocente em acreditar que essas coisas não aconteceriam em outros lugares, mas tenho certeza de que não seria tão fácil quanto é hoje, né Gilmar?
Se não fosse Brasilia poderíamos ter evitado a facilitação destes conchavos que acontecem nos grandes condomínios residenciais, restaurantes chiques e puteiros de luxo. Com uma clientela de políticos bem abastada, muitos negócios foram criados para atender a necessidade de discrição no convívio entre políticos empresários mal intencionados. E claro, paga-se bem pela discrição.
E outra: a política brasileira de alguma forma se distanciou do povo, ela por muito tempo era contada somente nos grandes jornalões como o Jornal Nacional.
O alto custo e a distância de Brasília com os grandes centros financeiros do país tornou proibitivo para diversas mídias independentes poderem cobrir a fundo a política no país.
Estamos encurralados em uma cobertura com um posicionamento praticamente hegemônico das grandes famílias detentoras dos grandes grupos de imprensa no Brasil. Poucas mídias conseguem fontes de grande calibre sem passar por Brasília e veja que não precisa de muito esforço pra conseguir boas matérias. Nós, jornalistas, gostamos de dizer que pra conseguir pauta em BSB basta entrar na cidade pelo aeroporto, é quase impossível passar pelo salão de desembarque sem topar com uma grande autoridade. Sobram matérias e faltam jornalistas, principalmente para cobrir as pautas que não são alinhadas com os grandes capitalistas.
Por fim, é certo que nos acostumamos com tudo isto, seja com hegemonias midiáticas ou oligarquias políticas. Compramos estes slogans de progresso desde sempre, seja em 1950 como em 2017. Brasília foi um erro histórico e estamos na berlinda de cometermos mais um erro se não barrarmos esse modelo de pensamento elitista que está em ascensão.
Não pode haver mais espaço para o desmonte do país por este governo ilegítimo sob o slogan de “ordem e progresso”.
Esse falso desenvolvimentismo é o mesmo que hoje nos traz a reforma trabalhista e previdenciária e deve aniquilar com a maioria dos direitos históricos dos trabalhadores trabalhadores no país.
Salvador, Rio de Janeiro, Recife, São Paulo, o que for. Algo que pulse, que vibre, que viva. Para que haja efetiva fiscalização democrática, uma coisa é certa: Brasília como está hoje precisa acabar.
Infelizmente, o “não pense em crise, trabalhe” é o novo 50 anos em 5: de junho de 2013 até as eleições em 2018 teremos retroagido mais de 50 anos, de direitos.
Edição: Brenno Tardelli