Raça não é só identidade
Debates como raça, gênero e sexualidade costumam ser definidos como temas identitários, apenas. O sociólogo Clóvis Moura é peça-chave para compreender como raça, além de ser um elemento constituinte da identidade afro-brasileira, foi e é essencial para entender a formação daquilo que chamamos de Brasil.
Debates como raça, gênero e sexualidade costumam ser definidos como temas identitários, apenas. O sociólogo Clóvis Moura é peça-chave para compreender como raça, além de ser um elemento constituinte da identidade afro-brasileira, foi e é essencial para entender a formação daquilo que chamamos de Brasil.
Ashley Yates, ativista do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), disse, em entrevista ao Alma Preta, que o Brasil parece viver os anos de 1970 nos EUA, quando a comunidade negra experimentava o auge do Black Power (Poder Negro).
Não há como saber com precisão se isso é verdade, ou mesmo o quão benéfica é essa comparação para os afro-brasileiros, vítimas de uma sociedade diferente da americana.
O que se pode afirmar é que os assuntos de raça, gênero e sexualidade têm ganhado cada vez mais espaço na opinião pública e repercutido com maior intensidade nos movimentos sociais.
O movimento negro, tão diverso quanto a sua comunidade, tem organizações e ativistas que colocam a questão racial como determinante para a formação do capitalismo e para a constituição da sociedade brasileira.
O entendimento desse processo, porém, não parece ser compartilhado por toda a esquerda. Alguns vão se referir a raça, gênero, e sexualidade como políticas identitárias, e não estruturais.
O resultado dessa leitura é a compreensão de que esses tópicos são de menor importância para a superação dos entraves nacionais. Na prática, recorda-se desses marcadores apenas em datas especiais, e/ou os nomeia apenas como setoriais de organizações.
Alguns esquecem, outros só lembram no momento de fazer capas polêmicas, mas o Brasil viveu 388 anos de escravidão. Em 13 de maio de 2018 completamos 130 anos da abolição. Ou seja, passamos muito mais tempo sob o regime escravista do que sob o trabalho livre.
Mas não é apenas isso. A escravidão não se trata do passado, ou de uma memória ainda viva.
Clóvis Moura, sociólogo com uma vasta literatura publicada, é um autor importante para compreender o conceito de raça como elementar para a formação daquilo que hoje chamamos de Brasil.
O pensador, se utilizando das ferramentas marxistas de compreensão da história, é preciso para descrever como o país construiu um sistema econômico capitalista baseado em relações escravistas.
Para essa análise, na sua obra clássica, “Dialética Radical do Brasil Negro”, Clóvis Moura define a escravidão em dois períodos.
O primeiro, o escravismo pleno, que durou de 1530 a 1850, trata-se do ápice desse regime econômico, quando o país recebeu cerca de 10 milhões de pessoas sequestradas pelas nações europeias e mantidas aqui na condição de escravizadas.
Vale lembrar que a população mundial da época girava em torno das 500 milhões de pessoas. Ou seja, 1/50 do planeta foi capturado e colocado a trabalhar no Brasil até a morte.
Para efeito de comparação, em 2013, de acordo com o Fundo de População das Nações Unidas (FNUAP), 7,2 bilhões de pessoas residiam no planeta. De acordo com cálculos matemáticos, 1/50 desse contingente representaria 144 milhões de seres humanos, quantidade maior do que aquela que habita o México, hoje na casa das 127 milhões de pessoas.
Apesar do limite de qualquer comparação histórica, a ilustração serve para materializar a tragédia e a barbárie que foi a escravização dos povos africanos no mundo.
Nesse momento histórico, Clóvis Moura conta como a sociedade brasileira funcionava a partir da existência de duas classes sociais: escravizados e senhores de engenho, oposição essa que funda a luta de classes no país.Todos os demais cargos eram satélites dessas duas, as principais daquele modelo econômico.
O escravismo tardio e a modernização conservadora
O escravismo tardio (1850-1888), mesmo mais curto, é tão importante quanto o período anterior para compreender os dias de hoje.
O sociólogo relata de maneira detalhada como o país passou a ser pressionado pela Inglaterra, pós revolução industrial, para acabar com o regime escravista, não por uma questão de bondade, mas porque a nação europeia queria aumentar o mercado consumidor local.
As revoltas, os quilombos, o suicídio, todas as formas de resistência da população negra construíam uma esfera interna de negação e enfrentamento ao status quo.
O medo de uma revolta escrava era alimentado pela Revolução Haitiana (1791), onde e quando todos africanos daquela nação se rebelaram e mataram os seus antigos algozes/senhores.
O temor e as pressões internacionais fizeram a elite nacional propor uma transição lenta e segura para o fim do escravismo. O objetivo era simples, manter a desigualdade social e racial brasileira.
Para isso, duas leis são essenciais. A primeira é a Tarifa Alves Branco, que permitiu ao Estado taxar as transações internacionais feitas à Inglaterra, e possibilitar ao Brasil gerar uma gordura, responsável por permitir a montagem do parque industrial e incentivar a vinda de imigrantes para cá.
A Tarifa Alves Branco ajuda a compreender que o capitalismo brasileiro foi construído a partir da acumulação feita no regime escravista, e mostra como as elites criaram um país que viveu durante anos com trabalhadores escravizados, enquanto outros eram livres.
Nesse momento histórico, raça foi um fator determinante para decidir quem ocuparia, ou não, o cargo de trabalhador assalariado no projeto industrial que começava a nascer. Raça foi marcador fundamental para definir quais cargos da classe trabalhadora seriam destinados a brancos e a negros. Raça foi essencial para decidir quais corpos seriam mais ou menos explorados pelo sistema capitalista.
Esse projeto também apresenta o desejo da nação de se embranquecer. O Brasil traz para cá um número semelhante de imigrantes brancos europeus ao de africanos escravizados, com o intuito de, por meio da miscigenação, embranquecer o país.
No campo, a Lei de Terras rasgou a população negra como uma chicotada.
O Estado, responsável por conceder a terra durante o escravismo pleno, o fazia apenas aos “homens de bem”, os cidadãos “puros”, o que até os dias de hoje significa “homens brancos”.
As pressões internas e externas pelo fim do escravismo colocaram a elite branca da época em uma encruzilhada. Será que, pós-escravidão, o Estado será obrigado a conceder a terra para esse povo que foi colocado na condição de escravizado por 388 anos? A resposta, obviamente, foi não.
Decide-se então mudar as regras do jogo. A partir daquele momento, o Estado só poderia vender as terras, não mais as doar. Para complicar, no início, elas só poderiam ser adquiridas à vista.
Diante desse cenário, quem você acha que teve acesso a hectares e mais hectares de terras? Aqueles que já eram detentores dela e puderam acumular, durante a escravidão, o capital suficiente para a compra.
Pronto. O objetivo havia sido completo. Naquele momento era possível acabar com a escravidão, pois a elite branca tinha a garantia de que os seus privilégios permaneceriam, e de que negras e negros estavam excluídos do projeto de nação.
Pós 13 de Maio de 1888, os afro-brasileiros não tiveram acesso ao trabalho, afinal a prioridade dos empregos foi destinada aos imigrantes europeus.
Clóvis Moura diz que o Brasil passou por uma “modernização conservadora”, pois começou a se industrializar a partir de uma sociedade que mantinha a mesma estrutura social escravista.
E o que mudou desde então? Quais foram as rupturas estruturais da sociedade que permitem afirmar que o Brasil superou o problema racial? Nenhuma.
Durante o século XX, o Estado continuou a bancar a política de marginalizar a população negra, de privilegiar o trabalhador branco, e manter uma desigualdade social assustadora.
Pesquisa recente publicada pela Oxfam mostra que os 5% mais ricos do país detêm a mesma riqueza dos 95% mais pobres.
Essa é a estrutura de desigualdade de uma sociedade escravista, que na base, vai encontrar homens negros e, por último, mulheres negras.
A pesquisa também apresenta que só em 2047 as mulheres ganharão o mesmo que os homens, e que só em 2089, os negros ganharão igual aos brancos.
Estudo divulgado pela Exame também é didático para apresentar como classe social não consegue explicar toda a realidade brasileira.
Os pesquisadores analisaram um grupo de brancos e negros graduados, todos com diplomas de nível superior. Os números mostram que os brancos ganham 47% a mais do que os negros.
Ambos trabalhadores, ambos formados, mas com diferentes níveis de exploração por parte do capital.
Não se trata apenas de uma questão identitária. O capitalismo se utiliza do marcador racial como determinante para a exploração do trabalhador, e para a acumulação da mais-valia.
Já dizia Malcolm X, “não existe capitalismo sem racismo”.
A disparidade de violência entre negros e brancos e a constituição do genocídio também são problemas que não conseguem ser explicados por teorias que não abordam o fator racial.
Entre os brasileiros de modo geral, no ano de 2012, 9.667 brancos morreram por armas de fogo enquanto 27.683 negros perderam a vida do mesmo modo. Na população jovem, os números comparativos são de 5.068 brancos contra 17.120 negros. Enquanto a taxa de óbitos para cada 100 mil habitantes de brancos era de 11,8, a de negros, 28,5.
Por isso o movimento negro crava, com razão, que raça foi e ainda é um fator estruturante da sociedade brasileira.
Quando se refere às questões de raça, gênero, sexualidade, como um debate “identitário”, o campo progressista desvirtua ou simplesmente não compreende aquilo que está posto. Raça é identidade, mas não só.
Analisar a classe trabalhadora como algo homogêneo parece um desejo de ver representada a imagem do sujeito universal, o homem branco, e esquecer que o Brasil é um país de maioria negra.
Em todos os segmentos sociais, seja na questão da terra, moradia, educação, os principais prejudicados serão, primeiro, os homens negros e, por último, as mulheres negras.
Se para transformar o mundo é preciso entendê-lo, o campo progressista precisa avançar na leitura social e compreender que não é possível lançar um projeto para o Brasil sem o entendimento da questão racial como fundante do debate.
Não basta construir um setorial para discutir o tema, as questões de raça e gênero devem estar presentes em todas os campos de disputa, como a comunicação e a economia. Cabe a nós pressionar e compor esses espaços de discussão.
Deixar determinados assuntos de lado, ou mesmo acreditar que existam temas de “branco”, caso das grandes disputas políticas e da corrupção, é deixar esses segmentos que sempre governaram o país em posição muito confortável. Os debates nacionais, mais do que de qualquer outro grupo social, são nossos também.
O caminho ainda é longo. Maior exemplo disso é a não compreensão social de que um dos principais problemas do país é o genocídio, mesmo quando os números apontam para o aumento da morte e do encarceramento de mulheres e homens negros.
Impossível crer em uma sociedade democrática onde dezenas de milhares de vidas são exterminadas todos os anos, e que parte significativa delas seja por meio da ação do Estado. Inadmissível não enfrentar esse problema como ele merece, como um dos principais, senão o maior do país.
Mas para isso, é preciso criar o consenso de que vivemos numa sociedade racializada, de que os tabus do regime escravista precisam ser superados, que raça não é apenas uma questão identitária, mas sim determinante para a compreensão do que é o Brasil.