Porque a Princesa Isabel não é a Elsa de Frozen
Se antes do 13 de maio nossa luta era para sermos oficialmente considerados humanos, depois dessa data nós lutamos para que essa humanidade seja valorizada.
A educação branca que nos é enfiada goela abaixo nas escolas faz a gente aprender que no dia 13 de maio, a fada sensata Isabel, uma princesa da Disney em seu castelo, resolveu finalmente libertar seus amiguinhos negros escravizados e pra isso assinou um decreto.
E aí, ao som de uma música emocionante, todas as portas das senzalas foram abertas, todas as correntes se partiram e os negros saíram felizes das fazendas.
Agora vamos à versão da história sem filtro de instagram:
O Brasil foi o ÚLTIMO país da América a abolir a escravidão e também o lugar com mais negros escravizados em todo o mundo.
Em 1888 nossa escravidão era uma vergonha nacional, já que todos os países já tinham decretado a abolição. Os EUA por exemplo extinguiu a escravidão mais de 20 anos antes, através da 13ª emenda que iniciou um dominó de abolições em todo o mundo.
As elites brasileiras preferiram ignorar isso e fingir que dava pra continuar nos explorando até o último momento. Pior do que isso: criaram leis que simulavam uma abolição gradual mas que não funcionavam na prática.
A Lei Eusébio de Queiroz proibiu o tráfico negreiro em 1850, só que a Inglaterra já tinha proibido o comércio de escravos entre África e América. Ou seja, uma lei sem muito efeito. Mas ela ficou só no papel: durante mais de 20 anos o tráfico continuou de forma ilegal e ainda impulsionou a venda interna de negros entre estados.
A Lei do Ventre Livre, de 1871, libertava os filhos de escravos nascidos a partir daquela data. Mas a criança só seria liberta depois que completasse 8 anos, e mesmo assim, onde já se viu libertar uma criança enquanto seus pais ainda são escravos? Pra piorar, o senhor de engenho tinha a opção de mantê-la escravizada até os 21.
A Lei do Sexagenário é a última piada que chega em 1885, que liberta os escravos com mais de 65 anos (sendo que sua expectativa de vida na época era 40 anos no máximo).
Além disso, alguns estados prevendo que a abolição chegaria inevitavelmente resolveram criar mecanismos para lucrar com ela. Por isso, anos antes dela ser estabelecia em território nacional, estados como Ceará e Amazonas resolveram alforriar os negros precocemente, mas “sob condição”: o liberto precisaria ressarcir ao seu senhor o prejuízo causado pela sua libertação, trabalhando para ele de graça. E as ex-escravas passaram a morar “gratuitamente” nos quartos de empregada servindo as elites como criadas, uma herança que persiste até hoje em vários lugares do país.
Outro problema da celebração da Lei Áurea é entender que o povo preto simplesmente foi passivo nesse processo. Que a sua liberdade foi dada por mãos brancas enquanto as negras simplesmente trabalhavam. Só que não.
A abolição reflete um momento de crise no império marcado por rebeliões de escravos e fugas para quilombos, como o famoso Palmares, em Alagoas. Na Bahia, mais de 30 rebeliões de escravos aconteceram ou floram planejadas, sendo a mais conhecida a Revolta dos Malês, em 1835. O medo que a Revolução do Haiti se repetisse por aqui, ou seja, que os negros conquistassem sua liberdade de forma violenta invadindo as fazendas e matando toda a branquitude, foi também um motor para que a abolição fosse finalmente assinada.
O fato é: enquanto a Inglaterra vivia a revolução industrial baseada na exploração do trabalho livre, a gente ainda insistia em trabalho escravo.
Nosso modelo econômico estava oficialmente ultrapassado. A escravidão precisava finalmente acabar, não por bondade, mas por uma atualização da forma de exploração capitalista mundial.
Quando a água chegou no pescoço e a sinhá entendeu que ia perder sua mucama, a abolição finalmente aconteceu, mas mesmo assim com um “jeitinho brasileiro”.
O documento assinado pela princesa eram bem diferente do que os abolicionistas queriam.
O projeto de liberdade proposto previa o mínimo de reparação histórica: o pagamento de uma renda aos negros libertos e também distribuição de terras (basicamente o que aconteceu com os imigrantes europeus que chegaram no Brasil para substituir a mão de obra escrava). Mas a gente não merecia tudo isso. Por isso, a princesa resolveu assiná-la sem nenhuma política de reintegração dos ex-escravizados na sociedade.
Depois de serem arrancados dos seus países, serem escravizados por 300 anos, terem construído toda a riqueza nacional desse país e lutado pra sobreviver durante gerações, os negros não receberam absolutamente NADA em troca do seu trabalho. Liberdade sem alimento, lugar pra morar e oportunidade de emprego significa miséria.
No dia 13 de maio, a queda das senzalas significou o início das favelas.
Por isso hoje, ao invés de celebrar a linda Princesa Isabel que cantou Let It Go para os escravos, hoje é dia de revisitar a história e descolonizar o saber. É dia de entender que o fim da escravidão só marca o início do racismo. O racismo é uma estrutura criada pra manter os privilégios da branquitude, que tenta provar que nós somos seres humanos inferiores, indignos de oportunidades, valor e afeto. Ele só existe a partir do fim da escravidão, pois durante ela nós não éramos nem seres humanos inferiores, nós éramos meros produtos. Se antes do 13 de maio nossa luta era para sermos oficialmente considerados humanos, depois dessa data nós lutamos para que essa humanidade seja valorizada.
Lutamos para que nossas mortes não sejam tratadas como algo natural, para que nossas vidas importem da mesma forma que as brancas.
Lutamos pelo empoderamento estético, para que nossos traços e nossa cultura sejam dignas de valor e de afeto.
Lutamos para que tenhamos oportunidades para viver com dignidade, para que sejamos alforriados da miséria.
Ainda hoje, lutamos por liberdade.