Luiz Eduardo Soares: Lições de Marielle
A polícia e a política se fundiram de forma inextricável assim como se interligaram, organicamente, a economia das drogas, a economia informal e a economia formal -também chamada “legal”.
Em 17 de março de 2000, fui exonerado do governo estadual. No dia 20, deixei clandestinamente o Rio e saí do país, com o apoio da polícia federal. Em poucos dias, minha família foi ao meu encontro, nos Estados Unidos. Voltei a viver no Rio dois anos depois. Minhas filhas demoraram mais a voltar. Em dezembro de 2000, lancei Meu Casaco de General; 500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro, pela editora Companhia das Letras, relatando o dia a dia daquela batalha pelos direitos humanos e contra a corrupção policial, irmã siamesa da brutalidade policial. O genocídio de jovens negros e de jovens pobres vinha se tornando mais evidente, ao longo dos anos 1980 e 1990, não só no Rio, mas, aqui, com especial destaque e intensidade. O esforço que liderei contava com uma equipe destemida: éramos apenas sete, três homens e quatro mulheres, mas dispostos a mudar as instituições da segurança, o imaginário social relativo à questão e as políticas públicas na área. Inauguramos, em 1999, uma política orientada por valores democráticos e progressistas, inscrevendo, no centro de nossos compromissos, além da mudança na relação com as comunidades, temas como desarmamento, homofobia, racismo e violência doméstica contra a mulher. Essa inscrição rompeu padrões, num setor que parecia inexoravelmente dominado pela direita. Acabamos derrotados, mas muita coisa ficou, além da memória, entre elas um conjunto de programas e projetos que seriam replicados adiante, em diferentes estados, e em âmbito nacional -ao menos como tentativas.
Garotinho, então no PDT – Brizola ainda vivia-, foi eleito governador do estado do Rio em 1998, numa aliança de partidos de esquerda, como PT e PCdoB. Aceitei seu convite para assumir a subsecretaria de segurança com a condição de indicar o comandante da PM e o chefe da Polícia Civil, e de ter autonomia para formular e implementar os programas que representariam a nova política de segurança -programas compatíveis com aquela coalizão política progressista. A despeito de muitas contradições, conflitos e disputas, avançamos bastante ao longo de 1999, ampliando o apoio popular às mudanças. Entretanto, minhas denúncias relativas à banda podre da polícia, indicando que a corrupção chegara ao topo das instituições policiais, produziram o grave revés para a equipe e o conjunto do movimento pelos direitos humanos.
Declarei que era tempo de fazer a guerra, não contra moradores de favelas, mas contra a corrupção policial e seu par, a violência desse braço do Estado. Guerra total a qualquer custo, ou seríamos engolidos, as instituições seriam tragadas.
Eu afirmava que a corrupção tinha raízes na cúpula, associada a redes políticas e econômicas, e que produzia metástases cujo sintoma, à época, chamávamos polícia mineira, as futuras milícias. O admirável delegado Hélio Luz fizera denúncia similar, anos antes, mas preferira não bater de frente com seus inimigos, notadamente o grupo Astra, núcleo que atuava na Polícia Civil, para evitar efeitos ainda mais danosos. Decidi partir para o confronto aberto porque constatei que a conciliação, método importado da política, na polícia não funciona. Em vez de submeter os outros à nossa liderança, são aqueles que nos submetem a seu comando.
Elio Gaspari mostrou como a ditadura militar produziu anarquia nas instituições militares, ao contrário do que se poderia supor. Fenômeno semelhante ocorreu e ocorre no Rio de Janeiro e não só na PM. As vetustas polícias mineiras, assim como as atuais milícias, constituem núcleos autônomos que disputam espaço e poder entre si, conectando-se com as instituições de origem, sobretudo a PM e a Polícia Civil, e vinculando-se crescentemente ao mundo político, via Câmara de vereadores, Assembleia Legislativa e Executivo estadual. Os policiais que executam extra-judicialmente, nas favelas e periferias, formam nichos que se deixam atrair por polos gravitacionais mais organizados e prósperos, como as milícias já existentes, ou as replicam, na medida em que se consolidam e fortalecem. Do ponto de vista da estrutura militar, a anarquia impera, embora a lógica dos interesses e dos jogos de poder nada tenha de anárquica. Na Polícia Civil, acontece processo análogo. As ameaças mais graves que sofri vieram em resposta ao projeto Delegacia Legal, porque aquela iniciativa, de acordo com seu desenho ambicioso original, organizava uma instituição, a Polícia Civil, que só existia no organograma e nas leis, não na realidade substantiva. Na prática da vida real, havia uma multiplicidade de baronatos feudais, como eu os denominava, refratários a qualquer ordenamento institucional. Tratava-se de um arquipélago fragmentário, resistente a todo esforço de vertebração. Por isso, os policiais sabiam muito, a instituição, nada. Política integrada, impossível. Avaliação, inviável. Informações transparentes, jamais. Eis aí o berço dos micro-poderes. Eles dependiam e dependem da desordem institucional, da autonomia dos nichos, da anarquia (embora, insisto, não houvesse, e não haja, propriamente anarquia na ponta, porque a força dos interesses funcionava como amálgama e a lógica de reprodução ampliada dos poderes se impunha).
Escrevo sobre esses episódios já remotos, porque, no dia 14 de março de 2019, quando o assassinato de Marielle e Anderson completa um ano, eles se tornaram mais atuais do que nunca. Esse crime bárbaro demonstrou, confirmando o que já se observara no fuzilamento da juíza Patrícia Acioli e o que já antecipara a CPI conduzida por Marcelo Freixo sobre as milícias, que a rede político-criminal no Rio não tem limites.
Em 12 de março, foram presos quem matou Marielle e Anderson e quem dirigia o carro que servia ao assassino. Falta o mais importante: saber quem mandou matar, quem pagou pelo crime e com qual propósito. Peço, aqui, sua atenção para o seguinte ponto.
O campo ideológico-político por cujos valores pautei minha vida, desde a resistência à ditadura, é composto pelas esquerdas, em sua ampla variedade. Tem sido muito difícil construir sua unidade em torno da transformação da segurança pública, numa perspectiva radicalmente democrática e popular. Nossa utopia supõe sociedades sem classes, sem estado e, portanto, sem polícia, justiça criminal e prisões. Esse projeto prospectivo e escatológico nos une, mas, aquém da utopia, só há divisões entre nós. O problema é que o projeto teleológico está tão distante de nossa realidade, que o designamos utopia. Pois bem, numa abordagem otimista, eu diria que, no mínimo, resta longa, longa, longa travessia histórica. Durante esse percurso, conviveremos com estado, polícia e justiça criminal. Seus formatos e regimes não são indiferentes à vida humana no planeta, ao planeta e à vida, em geral. Fazem toda a diferença. Ditaduras e democracias não são modalidades equivalentes do poder burguês. Polícias brutais e genocidas e aparelhos judiciais violadores das garantias individuais não são equivalentes a instituições judiciais comprometidas com uma constituição democrática ou a polícias controladas pela sociedade, que prestem contas por suas ações e se orientem por princípios como a presunção da inocência e os direitos humanos. As distinções não são periféricas e negligenciáveis. Para o cotidiano do povo, fazem a diferença entre a vida e a morte. E mais: um ambiente de garantia de direitos proporciona condições muito mais favoráveis à organização da sociedade e à participação política popular -fatores decisivos para que, um dia, a utopia deixe de sê-lo.
Volto a Marielle e aos episódios de 1999/2000. O que esses eventos comprovam?
A polícia e a política se fundiram de forma inextricável (o que não quer dizer que todos os policiais compactuem com esquemas criminosos), assim como se interligaram, organicamente, a economia das drogas, a economia informal e a economia formal -também chamada “legal”.
Há dois corolários da maior importância: se a fusão é fato, quando combatemos as execuções extra-judiciais nas favelas, combatemos a matriz da putrefação da política e, por consequência, da democracia. Por que? Muito simples, porque só prospera a violência policial sistemática quando camadas superiores lhes oferecem cobertura, isto é, quando o comando das polícias, as autoridades políticas, a Justiça e o MP fazem, em comunhão, vistas grossas para a violação de direitos na base da pirâmide social. E quando esse fenômeno ocorre, continuamente, ao longo de décadas -interrompidos por alguns esforços temporários, afinal derrotados-, essa aliança de agentes institucionais estimula a criação de incubadoras de redes criminais, em cujas teias se associam atores de todos os níveis da escala, mesmo que suas doses de responsabilidade sobre o caos e a barbárie sejam diferenciados. Em graus distintos, são todos cúmplices. Observem: a economia política da corrupção e da violência -violência policial e corrupção policial estão, insisto, organicamente articulados- corresponde a uma dinâmica que não estanca na porta das delegacias, dos quartéis e batalhões. Os X-9 enlaçam para baixo, ligando grupos policiais a criminosos comuns e os fundindo, na prática. Os deputados permeáveis às seduções do submundo enlaçam para cima, condecorando assassinos de aluguel fardados ou engravatados, legitimando seus esquemas e suas ações. O MP e a Justiça abençoam esses entrelaçamentos perversos não só quando fingem não ver os crimes perpetrados em larga escala por governadores, por exemplo, mas sobretudo quando, no varejo do cotidiano, toleram a brutalidade policial letal como um “mal necessário” para “limpar a sociedade dos maus elementos”. Em nome do bem e do bem jurídico, alimentam o mal e o instalam nos centros de poder.
O assassinato da juíza Patrícia Acioli desnudava a guerra em curso contra o segmento da Justiça que se recusava a sucumbir na geleia geral de cumplicidades.
O assassinato de Marielle Franco desmascarou a natureza eminentemente política desse confronto, que há muito ultrapassou o domínio das polícias e da Justiça, se é que algum dia foi assim restrito.
Quando o eleitor vota em candidatos que quebram a placa de Marielle, elogiam a tortura e grupos de extermínio, ou defendem o abate de suspeitos, compra gato por lebre: em vez de levar ao poder uma autoridade forte, elege a anarquia, não aquela idealizada pelos ingênuos como a matriz da liberdade, mas aquela outra que, no passado, sorveu a liberdade e, no presente, estilhaça direitos e degrada a democracia.