As mulheres e o amor
Não amamos gente, amamos uma ideia de amor, romântico. E nela não cabem as negras, não cabem as gordas, não cabem as velhas, não cabem as feias, não cabem as mães, não cabem as mulheres com deficiência, não cabe quase mulher nenhuma
Março é um mês de visibilidade da luta das mulheres. Neste ano estamos nas ruas, mais uma vez, para barrar esse projeto de Bolsonaro para o Brasil, que afronta nossos direitos. Pretendo discutir alguns temas que atravessam a minha compreensão acerca da vida das mulheres, começando pelo tema do amor e logo contarei porque vou começar por aqui. Março é também um mês especial para mim: nasci em 5 de março de 1974, mesmo dia de Rosa Luxemburgo – separadas por 103 anos.
Tenho muito orgulho dessa coincidência porque Rosa lutou pelo socialismo com direito à liberdade e à felicidade pessoal.
Apesar do governo federal, estadual e municipal e de todos os podres poderes da República, empenhados na total destruição de nossos direitos, resolvi festejar com amigas e amigos mais próximos e familiares, porque, como diz uma amiga psicanalista querida, nossa vingança é a felicidade e eu sou muito rica de afetos. Então, fizemos uma feijoada e celebramos a vida e a amizade. Obviamente foram as mulheres que fizeram as compras, picaram as carnes, cozinharam o feijão, fizeram o arroz, a couve, o vinagrete e a farofa. Eu, inclusive, queimei meus dedos descascando alho. Nem sabia que isso acontecia. Foram amigas que organizaram os pratos, talheres e copos, cadeiras e banquinhos, cuidaram da forração das mesas, e também da minha roupa, para garantir uma festa coletiva, como das antigas – que não se sabe o número certo de pessoas que vai aparecer e está tudo bem ser assim, e com menos gastos, afinal a coisa está feia. Quando as pessoas foram chegando, por incrível que pareça, alguns homens estavam picando a laranja e fazendo uma salada maravilhosa de guariroba, itens que vieram da minha cidade natal e isso foi suficiente para muita gente dizer: que legal, os homens estão na cozinha.
Tive que esclarecer que todo o trabalho até então tinha sido feminino, correndo o risco de ofender os homens, mas para registrar que o mundo não é mesmo justo com as mulheres…
Falemos do motivo pelo qual resolvi escrever sobre o amor. Ah, o amor! “É só o amor, é só o amor que conhece o que é verdade” (Renato Russo musicando a bíblia). Estava eu nessa festa maravilhosa, plena aos 45 anos de vida, querendo conversar com todas as pessoas – sem êxito – quando uma mulher amadíssima por mim veio me contar que numa noite dessas escondeu as facas da casa, com receio de que pudesse ser morta por seu marido. Esse evento me despertou a vontade de falar sobre as mulheres e o amor, na sociedade em que vivemos. Isso para pensar que desde pelo menos a invasão portuguesa no Brasil em 1500, há uma separação entre as mulheres que merecem amor, nos padrões dominantes por aqui, e as que não merecem.
São merecedoras as brancas, jovens, magras, sem filhos/as, as outras servem para trabalhar e/ou transar. As primeiras também são objetificadas, mas sob a cortina do amor romântico, do relacionamento burguês.
Eu mesma, quando adolescente na minha cidade, talvez por ser evangélica dos costumes até os 16, vivi a experiência de os meninos só quererem ficar comigo escondido. Vocês poderiam pensar: mas isso não é amor, é violência! Concordo. Mas talvez a gente tenha que pensar sobre a ideia de amor na nossa sociedade, para compreender porque a cada 15 segundos uma mulher é espancada no Brasil, porque a cada 2 horas uma mulher é morta no Brasil, porque o feminicídio diminuiu entre as brancas e cresceu entre as negras.
Assim, a luta feminista é uma luta necessária. Porque vivemos em uma sociedade que ama os homens e despreza as mulheres. E que, face a essa dura realidade, nossa existência está condicionada a uma vida para os outros. Somos ótimas desde que façamos tudo que os homens querem. No caso dessa pessoa amada que lhes falei, por exemplo, era respeitada pelo marido até o momento em que, deixando de ser exclusivamente dona de casa e trabalhadora, passou a se interessar e participar da política. Foi o suficiente para passar a ser considerada por ele como vagabunda. E é isso que somos: somos todas vagabundas. O tempo inteiro somos medidas por nossas roupas, por nossos atos, somos julgadas e condenadas por fazer ou não fazer. Só as Micheles e Marcelas merecem amor.
Desconfio que mesmo as belas, recatadas e do lar não estejam muito felizes com o amor que recebem, porque esse “amor” as aprisiona em uma relação que produz e reproduz desigualdade.
Já nós feministas, dizem que o somos por sermos mal-amadas. Se lésbicas, dizem que foi por falta de homem. Se intelectuais casadas com intelectuais, somos apresentadas como esposas e não como pessoas com trajetórias próprias. É um grande desafio para as mulheres poderem viver todas as dimensões de suas vidas. Pensemos, por exemplo, sobre a Presidência da República, antes do golpe de 2016. Lula e Fernando Henrique tinham mulheres que lhes davam todo suporte: Penso na imagem de Marisa Letícia acompanhando Lula em todas as batalhas, lembro da cena, que me pareceu amorosa, dela raspando seus cabelos e barbas, por conta do câncer. E pergunto: Quem deu suporte a Dilma? Eu não sei como ela se sentiu, mas me pareceu que foram tempos de solidão no poder.
Quem sustenta todas as mulheres para que estudem, trabalhem, participem da política? Quem as incentiva? Em regra, outras mulheres.
Reconhecer avanços (tenho orgulho do PSOL pela paridade de gênero na Câmara Federal) e esforços de alguns companheiros homens não nos exime de reconhecer que, em geral, não há incentivo da participação das mulheres nos espaços públicos.
Poderíamos pensar que não escolhemos a quem amar, mas penso que escolhemos sim, de certa maneira, pois é preciso primeiro disponibilidade. Quando era criança, em Monte Alegre, gostava de jabuticabas, goiabas e mangas. As crianças das cidades grandes, em geral, não gostam dessas frutas, porque não as conhecem e não se dispõem a conhece-las. Então, o gosto não é livre. O amor também não é. Ele é filtrado pelas nossas lentes. As lentes brasileiras, em geral, são machistas, racistas, elitistas, capacitistas, geracionistas. Não amamos gente, amamos uma ideia de amor, romântico. E nela não cabem as negras, não cabem as gordas, não cabem as velhas, não cabem as feias (lembrando que feias na nossa sociedade são as pobres), não cabem as mães (enquanto que para os homens ter filhos pode ser um charme), não cabem as mulheres com deficiência, não cabe quase mulher nenhuma…
Tem uma campanha feminista que diz que o primeiro amor é o próprio. Seria bom que assim fosse, mas para quem cresceu, como a maioria das meninas, sendo desestimuladas a pensar sobre o seu valor é difícil construir uma autoestima positiva. Então um grande projeto feminista é dizer a cada menina que ela é capaz, que ela é linda como é, que ela só merece ser bem tratada, para que assim qualquer mulher que não seja bem tratada em um relacionamento possa buscar condições para sair dele.
Que cada mulher tenha amigas que digam a ela sobre seu valor, sobre o seu direito de existir.
Eu sou do signo de peixes e dizem que piscianas são românticas. A vida real é mais dura. Ela nos impõe pensar sobre esse ideal de relacionamento na sociedade em que vivemos, que diz para o homem que ele será feliz “pegando” todas e que diz à mulher que ela só será feliz se estiver em um relacionamento monogâmico. Há de haver outras formas de pensar e viver o amor.
Desejo que todas nós sejamos amadas. Por nós, pelas outras, pelos outros, como quisermos, se quisermos.
Mas o amor será um longo caminho. Ele passa por superação de desigualdades e opressões.
“A nossa luta, como mulheres, é todo dia! Somos mulheres e não mercadoria”. Que a gente possa ser feliz, apesar de tudo isso e lutando contra tudo isso. Que o socialismo não se faça apenas nas condições materiais da vida, mas incluamos na nossa pauta o desejo e luta por uma subjetividade não opressiva. Eu estou nessa luta. Vamos juntas? Vou procurar aquela mulher da festa e pensar com ela outros amores possíveis e outra forma de organizar a vida.
Com amor, Jorgê.