Com a abolição da escravidão no país, como prática legalizada de hierarquização racial e social, outros foram os mecanismos e aparatos que se constituíram e se reorganizaram como forma de garantir o controle social, e os privilégios baseados na supremacia racial, tendo como foco determinados grupos sociais.

Vivemos em uma sociedade marcada pela lógica, hoje, neoliberal, e desde sua fundação, racista e com desigualdades de gênero. São opressões estruturais e estruturantes da constituição de uma sociedade que surge, para o mundo ocidental, pela exploração colonialista e ainda marca, em todos os seus processos, relações e instituições sociais, as características da violência, usurpação, repressão e extermínio daquele período. Como sempre nos alerta o jurista e prof. de Direito Silvio Almeida, pouco discutimos, na profundidade, o 14 de maio. E é preciso, mais do que nunca, destrinchar os reordenamentos estatais-estruturais que se estabeleceram para garantir a manutenção de um sistema de desigualdades baseado em hierarquias raciais.

A escravidão moderna viabilizou-se pela violência e bárbara repressão de elementos fundamentais para a sujeição e subjugação dos sujeitos. No caso das mulheres negras, a dimensão do processo de escravização invade o campo da sexualidade e da criação simbólica de sujeitas e corpos que sentirão a carga da estereotipação e subalternização nas opressões de raça e gênero. E vemos os reflexos desta relação ainda nos dias atuais e na dinâmica das relações sociais, seja no nosso vocábulo, seja na vida diária e da estruturação de lugares sociais para um grupo alvo e minorizado. Ou seja, constrói-se um lugar social para as mulheres negras em que se tenta impor códigos sociais muito bem determinados e que quando são afrontados pelas mulheres negras, tem uma resposta social aberta e profundamente violenta.

As mulheres negras tem sido historicamente estereotipadas e chegaram a ser animalizadas como instáveis, incapazes para o trabalho intelectual, quentes, lascivas, desconfiadas, brutas, impacientes, braçais, bravas. Um discurso alicerçado na constituição de uma sociedade escravocrata, em que os corpos das mulheres negras eram violados para o prazer dos homens proprietários e pelo ódio e ciúmes das mulheres brancas. Com isso, o rebaixamento e subalternização destes corpos se torna uma constante. Ao passo que, no processo escravocrata, mulheres negras eram consideradas unidades de trabalho, era também neste processo que sofriam abusos sexuais e violações de todo tipo. A postura dos senhores em relação às escravizadas era regida pela conveniência: quando era lucrativo explorá-las como se fossem homens, eram vistas como desprovidas de gênero; mas quando podiam ser exploradas, punidas e reprimidas de modos cabíveis apenas às mulheres, elas eram reduzidas exclusivamente à sua condição de fêmeas.

Estes processos de desumanização e objetificação marcam os corpos e sujeitos negros. Este passado histórico se faz presente na memória social. Pelo corpo-memória, que precisa se restabelecer e reconstruir dinamicamente. Este processo, ao bloquear a capacidade de se ver sujeito, bloqueia também as relações com o outro e, consequentemente, as relações sociais que serão estabelecidas. As características físicas e os aspectos culturais são hierarquizados neste sistema para garantir a subalternização destes povos por um discurso que contorna todas as esferas: moral, política, social, econômica e jurídica. Os discursos sobre o corpo e a moral da população negra foram fundamentais na constituição do racismo nas Américas e foram cruciais e determinantes para o sucesso da empreitada de hierarquia política e social no novo continente.

E estes discursos e ações tem consequências até hoje nos altos índices de violência aos quais a população negra é submetida, especificamente as mulheres negras ao enfrentarem a violência doméstica porque, pela intersecção das opressões de raça e gênero, seguem sendo vista duplamente como objetos e propriedades.

Contudo, sendo o corpo este espaço em que se aplicam as imposições subalternizantes, é também nestes corpos que constroem-se resistências, que se afronta o sistema e se apresentam outras propostas de representação e narrativa. Uma identidade negra que se constitui também marcada pelo corpo e que busca uma nova imagem, ou até mesmo reconfiguração, de uma imagem apagada e roubada pela diáspora. Neste sentido, o corpo pode ser entendido como uma janela também cultural, como memória, reconhecimento e posicionamento, como espaço de lutas, possibilidades e resistências, como um documento vivo e em constante movimento. Ou seja, corpo não é apenas uma tábua de inscrições, mas um espaço de lutas constantes.

E por que, então, falar de corpo para falar de violências, mulheres negras e pós-abolição? Porque estes processos de constituições discursiva e políticas tem implicações nas vidas de mulheres negras até hoje.

Segundo a pesquisa “Retratos da Desigualdade”, realizada pelo IPEA, enquanto que as mulheres brancas tinham a expectativa de vida em 73,8 anos, as mulheres negras tinham esta expectativa reduzida para 69,5 anos. Na diferenciação de inserção no mercado de trabalho, as mulheres negras também estão em desvantagem, sendo 66% das mulheres brancas inseridas no mercado, ao passo que 61% de mulheres negras estão inseridas (IBGE). Mas a diferenciação também ocorre na qualidade destes postos de trabalho. Dos 6 milhões de pessoas ocupando o trabalho doméstico, 92% são mulheres, destas, 61% são mulheres negras. (IBGE, 2011). Não é preciso dizer que a maioria deste contingente trabalha de modo informal.

As desigualdades aumentam e aprofundam os riscos de violência. 59, 4% dos registros de violência doméstica na Central de Atendimento à Violência – Ligue 180 são de mulheres negras (2013). 62,8% das vítimas de morte materna são negras, uma situação que poderia ser perfeitamente evitada com acesso à informação e atenção no pré-natal e parto. (SIM/MS, 2012). A maioria das mulheres que afirmam ter passado por algum tipo de violência obstétrica também são mulheres negras, compondo 65, 9% dos dados (2014). Ainda, as mulheres negras têm duas vezes mais chances de serem assassinadas do que as mulheres brancas (MJ/2015), entre 2002 e 2013 houve um aumento de 54,2% dos homicídios de mulheres negras (ONU Mulheres e SPM/2015) e entre 2000 e 2014 houve crescimento de 567% da população carcerária feminina, sendo 68% de mulheres negras e em situação de prisão por crimes que poderiam, sem dúvidas, ter utilizadas alternativas penais que não o cárcere (MJ/2015).

Por isso, ser mulher negra é um processo de reencontro cotidiano, de reconstrução da identidade que nos foi tomada e negada. Uma mulher negra afrontar estes processos e estereótipos é uma potência extremamente transformadora. Romper com este lugar social determinado pela estrutura machi-racista significa, portanto, afrontar hierarquias, chacoalhar estruturas sócio-raciais da sociedade brasileira.

Escrever um artigo como este em um 14 de maio, dia que completa-se 2 meses do assassinato de Marielle Franco é pesaroso e que traz responsabilidade. Porque Marielle Franco foi uma mulher negra que, justamente, afrontou e rompeu com todos os lugares sociais pré-determinados pela sociedade racista em que vivemos. Ao ousar sonhar e lutar por liberdade de outras mulheres, a resposta da estrutura racista em pleno funcionamento foi extremamente violenta. À mulher negra que rompe, que afronta, recai o julgamento moral, social e racial repletos de ódio. Romper com a lógica de perfil criminoso, subalterno, subserviente coloca em risco interesses patrimoniais e isso, ao balançar um sistema de desigualdades baseado em hierarquias raciais, faz que estruturas e interesses se mobilizem para garantir que tudo continue como sempre foi.

O historiador e ativista pelos direitos humanos, W.E. Du Bois, apresentava que a população negra, mesmo no pós-abolição, nunca foi economicamente livre nem politicamente autônoma. A lógica sistêmica historicamente se reordenou para que, assim abolido a instituição da escravidão, corpos e vidas negras fossem precarizadas, criminalizadas, encarceradas e exterminadas. Cruelmente exterminadas.

Se em 13 de maio de 1891, o Ministro das Finanças de então, Rui Barbosa, ordenou e executou a queima de todos os arquivos ligados ao comércio de escravizados e à escravidão no Brasil, seguido de uma série de mudanças legislativas e de ordenamento jurídico e policialesco em relação a pessoas negras, hoje o apagamento histórico e de futuro permanecem com o genocídio da população negra em andamento, matando milhares de jovens negros por ano no Brasil; na negação de Saúde, de moradia e de saneamento à população negra; na ausência de políticas públicas interseccionadas que tem como consequência o aumento em mais de 55% do feminicídio de mulheres negras, ao passo que há queda do feminicídio de mulheres brancas em pouco mais de 10%; na ausência de seriedade do Estado no enfrentamento à violência doméstica porque são mulheres pobres e notadamente negras que mais precisam de uma rede articulada pelo Estado para desvencilhar-se deste ciclo de violência a que estão submetidas; na execução cruel de mulheres negras que ousam ocupar e disputar a política, no enfrentamento real e radical da criminalização das precaridades as quais a população negra e periférica é submetida.

Discutir o 14 de maio, portanto, significa refletir e produzir estratégias políticas e de ação para que rompamos e afrontemos na raiz as questões estruturais que seguem barrando de ascensão e aprisionando pessoas negras. Não há como discutir Brasil sem discutir as consequências da experiência colonial e a perenidade da ideologia racista em nosso país. Discutir o 14 de maio é uma emergência por nossas existências. Aquilombemos.

#MarielleVive