Na Cidade de Goiás, 4ª Semana Dom Tomás Balduino começa com análise sobre lutas e resistências
Dia 2 de maio teve início a 4ª Semana Dom Tomás Balduino, um dos fundadores da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que administra a diocese de Goiânia há mais de 3 décadas.
Texto e imagens por Elvis Marques
Publicado originalmente em: Setor de Comunicação da Secretaria Nacional da CPT
Neste dia 2 de maio, quando completaram-se quatro anos da Páscoa de Dom Tomás Balduino, um dos fundadores da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Conselho Indigenista Missionário, pessoas e mais pessoas lotavam o auditório da Universidade Estadual de Goiás (UEG), na Cidade de Goiás, a 140 quilômetros de Goiânia. O motivo? A 4ª Semana Dom Tomás Balduino, que teve início da tarde desta quarta-feira na Diocese administrada pelo dominicano por mais de três décadas.
Carlos Alberto Libânio, ou como é muito conhecido, Frei Betto, foi o responsável por analisar a “luta dos povos e a conjuntura atual de resistência”. A mesa de abertura contou ainda com as presenças da professora e prefeita da Cidade de Goiás, Selma Bastos (PT), Dom Eugênio Rixen, bispo da Diocese de Goiás, e a diretora da UEG, professora Débora Magalhães. A medição ficou por conta dos professores Murilo Mendonça de Oliveira, da UEG, e Iara Jaime, da Universidade Federal de Goiás (UFG). E crianças e jovens indígenas do Povo Xavante, do Mato Grosso, da Aldeia São Marcos, apresentaram algumas de suas danças e cantorias tradicionais.
“A universidade é um espaço aberto, e ela só se justifica se for para manter um diálogo com aquilo que é desejo da sociedade. E é importante trazermos tudo aquilo que foi praticado por alguém que foi extremamente visionário, por alguém que foi um entusiasta e constante educador como Dom Tomás”, expressou a diretora da UEG. Já a chefe do Executivo local destacou que ela “é fruto da luta de Dom Tomás. E eu costumo muito dizer que a política só tem sentido na vida da gente se for para servir, fazer o bem e garantir direitos”.
“Todos são bem-vindos, Fora Temer”, iniciou, por volta das 16 horas, Frei Betto, que foi seguido pelo público presente: “Fora Temer”. Em sua análise de conjuntura, o religioso abordou o avanço da direita Brasil, e também contextualizou o processo histórico que desencadeou isso não apenas em nosso país, mas no mundo. E quais foram os erros e acertos dos governos de esquerda e/ou ditos populares progressistas? E os golpes que atingiram a América Latina, e o que está por trás deles? Entrentando, ao longo de sua fala, que durou cerca de 1h15 minutos, Frei Betto enfatizou, por diversas vezes, “a necessidade das organizações, entidades e as pessoas se voltarem para o trabalho de base”.
Confira abaixo alguns dos temas abordados por Frei Betto:
“Nós estamos vivendo uma conjuntura brasileira e mundial de avanço da direita” – A direita saiu do armário e a esquerda entrou. O que acontece é que, durante muito tempo, a esquerda teve uma forte hegemonia no cenário mundial através dos países socialistas. E desde que o Muro de Berlim [na Alemanha] desabou, em 1989, a direita passou a ter uma grande ofensiva, até porque o mundo, que era bipolar, dividido em dois grandes sistemas econômicos, capitalismo e socialismo, se transformou em um mundo ‘unipolar’. E essa ‘unipolaridade’, apelidada do fenômeno equivocadamente chamado de globalização, por que equivocadamente? Porque na verdade não existe uma globalização que seria aí internacionalização dos diferentes perfis étnicos existentes no nosso planeta. O que existe é uma ‘globocolonização’, a imposição ao planeta de um único modelo de sociedade, que é o modelo anglo-saxônico, de caráter consumista, esse é o modelo imposto a ferro e fogo, que todos nós aqui, conscientes ou inconscientemente, aspiramos quando nos expomos às mídias tradicionais e às mídias digitais, também equivocadamente chamadas de sociais, porque nem sempre criam sociabilidades.
Esse fenômeno do desabamento do socialismo no Leste Europeu foi cedido com a descaracterização do socialismo chinês, vietnamita, que na verdade foi transformado quase que num capitalismo de Estado. A única identidade propriamente socialista preservada ainda é Cuba.
“Tudo isso fez com que houvesse um recuo dos setores de esquerda” – Muitos desses setores, principalmente na Europa, no Leste Europeu, e também na Europa Ocidental, onde haviam fortes partidos comunistas. Para vocês terem uma ideia, o Partido Comunista da Itália era o mais forte partido comunista de todos os países fora do âmbito da União Soviética e da China, e praticamente desapareceu.
No Brasil, também nós temos fenômenos de recuo das forças de esquerda, principalmente das mais tradicionais, como setores comunistas, e praticamente quem restou ainda questionando o sistema capitalista e propondo outros mundos possíveis foram os movimentos populares vinculados com a causa dos mais pobres. O que nos leva a uma conclusão bastante óbvia: é muito difícil você manter uma coerência política se você não tem vínculo com os mais pobres, se você não tem vínculo com a periferia. Esse esquerdismo acadêmico, de universidade, de leitura de grandes teóricos, de livros, de discussão, infelizmente ele é como flor de plástico, muito bonito, mas não tem vida e nem raiz. Daí tem o PSDB por exemplo, que vem de uma tradição de esquerda, mas de uma esquerda da USP [Universidade de São Paulo]. Uma esquerda acadêmica. Uma esquerda de ‘não me chame no fim de semana para fazer reunião em periferia, porque eu tenho de tomar whisky na beira da piscina do meu sítio’. Enfim, esse tipo de tradição da esquerda fracassou totalmente, porque mostrou que é uma esquerda em busca de um projeto de poder, e não em busca de uma causa popular, essa é a diferença. Na medida em que o poder pela veia da esquerda se tornou inviável, então custou-se a via do centro e da direita, etc.
“Um governo você derruba, e um povo você jamais derruba” – Apesar desse recuo do cenário internacional, houve um fenômeno novo na América Latina, fenômeno que como todos os outros foram semeados ao longo de muitos anos. Eu diria que, só por uma razão didática de mudanças significativas na América Latina, se situa na Revolução Cubana de 1959. Todos os analistas julgavam absolutamente impossível o êxito dos Guerrilheiros de Sierra Maestra, até por uma razão muito simples, a distância entre Havana [Cuba] e Miami [EUA] é a mesma entre Rio de Janeiro e São Paulo, ou seja, em 45 minutos de voo você vai de uma cidade para a outra.
E como é que uma ilha tão próxima dos EUA iria resistir à pressão do Imperialismo Estadunidense, que depois, muito depois, veio a derrubar o governo do Iraque, da Líbia, do Afeganistão, e que hoje tenta derrubar o governo da Síria. E, no entanto, os Guerrilheiros de Sierra Maestra foram vitoriosos, e por uma razão muito simples: porque eles tinham o apoio popular, o que explica porque os EUA depois da fracassada tentativa de derrubar o Governo Revolucionário de Cuba, através da Baía dos Porcos, com 10 mil soldados mercenários, foram derrotados pelos cubanos, e diga-se de passagem que esses mercenários tinham aviões da Força Área Americana como apoio, e Cuba tinha mais aeronaves do que pilotos. E, no entanto, eles venceram. E nunca mais os EUA tentaram invadir Cuba. E por que não tentaram? Porque os EUA aprenderam nessa derrota, em 1961, e aprenderam no Vietnã, que um governo você derruba, e um povo você jamais derruba. Você só derruba governos que não têm apoio popular.
No Vietnã, por exemplo, primeiro foram os franceses e depois os americanos, todos derrotados pelo povo camponês plantador de arroz, convicto de que ‘nossa pátria será independente e não terá estrangeiro imperialista que mandará em nós’.
“Primeira vez que realmente esses governos governavam atentos à pauta prioritária da maioria do povo” – Um segundo momento marcante na América Latina foi a Revolução Sandinista em 1979, na Nicarágua. Aliás, primeira vez que no processo revolucionário os Cristãos participaram ativamente em aliança com os comunistas. Inclusive, no governo Sandinista, três sacerdotes participaram como ministros, isso porque muitas pessoas preparadas na Nicarágua eram a favor da ditadura, e com a revolução muitas pessoas foram embora do país. Então, não era fácil você encontrar pessoas capacitadas para ocupar cargos importantes no governo, era um número muito pequeno de pessoas que tinham qualificação profissional para ocupar esses cargos. O padre Miguel D’Escoto, por exemplo, foi ministro das Relações Exteriores da Nicarágua. Ele falava diversos idiomas, então ele era a pessoa adequada, e você não podia improvisar.
Bom, posteriormente houve a ascensão dos governos populares progressistas, começando com o governo [Hugo] Chaves, em 1998 na Venezuela. A partir daí, o desencadeamento de uma série de governos progressistas como o Lula no Brasil, Evo Morales na Bolívia, [Pepe] Mujica no Uruguai, o Rafael Correa no Equador, os Kirchner na Argentina, a [Michelle] Bachelet, que não é tão avançada, mas foi uma novidade no Chile. Enfim, tudo isso representou uma nova etapa na América Latina. Primeira vez que realmente esses governos governavam atentos à pauta prioritária da maioria do povo, os mais pobres, e não em prol das grandes oligarquias, e, principalmente, sem submissão aos EUA e a União Europeia.
::. Confira a programação completa da 4ª Semana Dom Tomás Balduino
Mas o que permitiu essa ascensão dos setores populares mais progressistas, uns mais à esquerda e outros menos, mas majoritariamente favoráveis às causas populares? O que permitiu isso foi um trabalho político de base durante muitos anos nesses países. Uma vez eu estava na Cidade do México e um grupo de militantes de esquerda me perguntou: ‘Frei Betto, a gente gostaria de formar aqui no México algo parecido ao PT [Partido dos Trabalhadores]. Conta para nós como é que foi esse fenômeno no Brasil que, inclusive conseguiu eleger um operário metalúrgico, sem diploma universitário, presidente da República?’ Falei: ‘Bem, há 40 anos […]’. Mas quando eu falei 40 anos, é isso, para o Lula chegar na presidência havia 40 anos de trabalho de base. E o grupo me respondeu: ‘Não, a gente quer é uma receita para 4 anos’. Eu falei: ‘Eu não conheço’. Agora, se você quer saber como no Brasil nos organizamos a partir das Comunidades Eclesiais de Base, e, a partir dos anos 1970, os movimentos populares pelo Brasil afora. A partir de 1975 aí que surge Lula graças a volta do sindicalismo combativo. No fim dos anos 1980, a derrubada da ditadura e a volta dos exilados, a reformulação partidária no país, com novas representações, como o PT, e também o surgimento das grandes organizações de massa, o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], a CUT [Central Única dos Trabalhadores], a Central de Movimentos Populares, e outros. Ou seja, Lula não foi eleito presidente por causa daquela carta aos brasileiros, que na realidade, na minha opinião, uma carta aos banqueiros, mas foi eleito porque atrás da eleição de 2002 havia 40 anos de trabalho de base e luta social. E esse acúmulo é que permitiu o aparecimento desse fenômeno da eleição do Lula.
“Chegamos ao governo, não necessariamente ao poder” – Quem está no governo necessariamente não está no poder. E nem sempre o poder quer estar no governo. E os governos populares progressistas agora desabam. E nós precisamos avaliar porque isso ocorre. Porque, por exemplo, a população da Nicarágua foi para a rua pedir a queda de Daniel Ortega [da linha Sandinista], que propôs uma reforma da Previdência de fazer inveja à proposta do [Michel] Temer. Muito pior do que o Temer propôs aqui no Brasil, porque além de aumentar a contribuição de 4 para 12%, ainda retirava 5% do salário. Felizmente aquele povo reagiu. Mas é uma vergonha para nós de esquerda ter de reconhecer isso.
Eu fiz dois livros sobre os 13 anos do governo do PT – Mosca Azul e Calendário do Poder, que é meu diário do [Palácio do] Planalto, sobre os dois anos que trabalhei como assessor especial do presidente Lula. Na minha opinião, os 13 anos do governo do PT foram os melhores anos da nossa história, e a gente ficaria aqui até o resto da noite só apontando tudo de positivo que os governos Lula e Dilma fizeram internamente, para o povo brasileiro, e externamente. Cotas, não criminalização dos movimentos sociais, chega para lá nos EUA, Minha Casa Minha Vida, Luz Para Todos, a reposição do Salário Mínimo anualmente com taxas acima da inflação, agricultura familiar, a demarcação de Terras Indígenas – claro, as vezes muito aquém do que a gente gostaria, porque queríamos mais, mas muita coisa foi feita. Eu participei muito de perto da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, que eu conto nesse livro ‘Calendário do Poder’, quando enfrentamos muita luta dentro do Planalto.
E hoje, todos estão vendo como o Congresso Nacional é importante. Não vamos ficar só falando de eleição presidencial. Se nós não mudarmos o perfil desse Congresso, se não tiramos de lá esses corruptos, coitado, pode ser o Lula o presidente de novo que vai ficar de mãos atadas. Então nós precisamos trabalhar muito na questão dos nossos deputados federais e senadores. Isso é fundamental por causa do poder que hoje o Legislativo tem no Brasil.
Com todos esses avanços desses 13 anos do PT no poder, alguns equívocos nós cometemos, a prova maior é que nós fomos derrotados. A Dilma [Rousseff] foi derrubada em um golpe, e isso é uma derrota para nós. Claro que isso faz parte de uma trama mundial, e na América Latina, por exemplo, ocorreu a derrubada do presidente de Honduras, depois do presidente do Paraguai, e a da presidenta do Brasil. E, hoje, forças comandadas pelo capital mundial atuam em todos países progressistas da América Latina para sabotarem seus governos.
Eu apontaria três grandes equívocos que nós cometemos. Primeiro, nós demos mais valor ao povo brasileiro chegar aos bens pessoais, como os carros. Vejam como nossas ruas estão abarrotadas de carros. Demos isenção fiscal para as indústrias automobilísticas. Foi investido muito dinheiro para as empreiteiras construírem viadutos, pontes, para facilitar os carros. E abrimos créditos em 90 meses para comprar um carro. Isenção para a chamada linha branca. Mas isso tudo foi incentivo a bens pessoais, ou seja, nós devíamos ter priorizado o acesso aos bens sociais, como saneamento, educação, transporte, saúde e etc. Resultado é que nós criamos uma nação de consumistas, e não de cidadãos conscientes.
A outra questão é que nós não fizemos o trabalho que Paulo Freire tanto falou e se debruçou: a alfabetização política do nosso povo. Nosso povo todos os dias, horas seguidas, é ‘desalfabetizado’ politicamente em frente à televisão. E a política está em tudo. E o terceiro equívoco foi a mídia, pois poderia ter reforçado a mídia alternativa. E, por fim, o envolvimento de alguns de nossos companheiros na corrupção.
“Nós temos de partir para o futuro. E o que significa isso hoje?” – Voltar ao trabalho de base. Voltar a reforçar os movimentos sociais, todos! Indígenas, negros, mulheres, crianças, artes, LGBTodos e Todas, movimentos de ONGs, de defesa étnicas, movimentos de defesa da qualidade do ensino brasileiro e contra essa aberração da ‘Escola Sem Partido’, que na verdade é a escola submissa as ideias da direita.
Em segundo: hoje nós temos uma figura emblemática no Brasil que está presa, que é o ex-presidente Lula. E tenho certeza que todos nós aqui somos a favor ao combate à corrupção, o problema é que a Operação Lava Jato se descaracteriza e se desmoraliza no momento em que ela assume uma atitude partidária, ou seja, os perseguidos têm endereço. São só esses. Os outros a gente cozinha em banho maria, mas não leva para a cadeia. E o mais grave, o promotor que é responsável por acusar, o [Deltan] Dallagnol, disse para a nação inteira escutar quando perguntado: ‘O senhor tem provas?’ Ele disse: ‘Não tenho provas, mas tenho convicções’. E você em nome de convicções não pode nem prender alguém, muito menos prender e submeter, em plena democracia, e pressupõe que ainda estamos numa certa democracia, o Lula ao cárcere privado, em sela solitária e proibido de receber visitas. Eu, preso na ditadura, nunca deixei de receber visitas.
E precisamos centrar as nossas atividades nas eleições desse ano, mas sem achar que isso é a salvação da Pátria. Nosso trabalho, precisa ser de novo, a longo prazo. E é um trabalho que precisa começar desde agora, mostrar para as pessoas que nós precisamos mudar o perfil desse Congresso, mostrar para as pessoas que elas precisam escolher governadores, deputados estaduais e federais também condizentes com suas posições, mas, sobretudo, impedir que o Brasil seja legalmente ocupado na Presidência da República por um governo antidemocrático, que dê prosseguimento a esse golpismo, que cada vez mais retira direitos sociais do povo brasileiro e que criminaliza os movimentos sociais. Vamos voltar às bases e trabalhar profundamente, e guardar o pessimismo para dias melhores.